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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O texto analisa a publicação da produção arquitetônica brasileira na revista francesa Architecture d'Aujourd'hui nos anos 80, seu contexto histórico e suas implicações


how to quote

LIMA, Adson Cristiano Bozzi Ramatis. Architecture d’hier: o seqüestro da arquitetura brasileira dos anos 1980 pela revista AA. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 104.04, Vitruvius, jan. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.104/83>.

1. Introdução

As revistas especializadas sempre tiveram um importante papel no estabelecimento de um debate de conceitos e de idéias em um dado meio profissional.  No que concerne à arquitetura, pode-se afirmar que, em muitos casos, arquitetos, estudantes, historiadores e críticos se informam sobre a produção contemporânea através de revistas especializadas; além disto, o exame atento de publicações passadas permite a reconstituição ― em parte e sempre com o verniz da ideologia do presente, posto que toda narrativa já implica uma seleção ― de certo panorama arquitetônico. Estas asserções, todavia, não representam nenhum dado novo, uma vez que isto já se tornou quase um “senso comum” entre críticos e historiadores, afinal, ninguém desprezaria ou ignoraria os periódicos de arquitetura em um estudo sobre, justamente, arquitetura (1).

O tema que pretendemos abordar, no entanto, não tem uma relação direta com a importância dos periódicos na área de pesquisa, intentamos tratar de uma questão mais pontual: a publicação da produção arquitetônica brasileira em certo lapso temporal em uma revista estrangeira. A revista em questão é a francesa Architecture d’Aujourd’hui e o lapso aludido é o anos 80 do século passado. Como já foi tantas vezes repetido, todo recorte tem a sua razão de ser, sem deixar, no entanto, de ser arbitrário; caberia, então, explicitar as nossas razões. 

Inicialmente, convém dizer que há algumas revistas de arquitetura cuja representatividade e importância são notoriamente internacionais (2), e, dentre estas, caberia citar, justamente, a revista francesa Architecture d’Aujourd’hui, a qual, durante muito tempo, se apresentou como “a primeira revista de arquitetura moderna do mundo”. Este último termo não significaria apenas que a sua leitura se daria para além das fronteiras da França, mas indicaria mesmo um engajamento com a arquitetura produzido no exterior, afinal, não se trata de publicar qualquer tipo de arquitetura, mas a “arquitetura moderna do mundo”. De fato, desde a sua fundação no ano de 1930, a política editorial da aludida revista sempre foi pluralista, contemplando tanto as tendências mais conservadoras e moderadas, incluindo, neste caso, tendências próximas ao Neoclassicismo, quanto o movimento chamado, então, de Racionalismo (3). Tratava-se de combater o academicismo da Ecole des Beaux-Arts e de tentar instaurar um ambiente propício ao debate (4). No entanto, a sua mais notável inovação foi o fato de ter apresentado ao público profissional europeu um panorama da arquitetura internacional, e não apenas da arquitetura realizada na França. Este fato a tornou distinta das revistas francesas já existentes, como L’Architecture e La Construction Moderne, que estavam restritas à produção doméstica.

Neste sentido, é interessante acrescentar que desde a sua criação a Architecture d’Aujourd’hui possuía correspondentes no exterior, e, vale a pena enfatizar, não apenas em países centrais, cuja produção arquitetônica seria suscetível de despertar um interesse maior no público francês, como a Alemanha e os Estados Unidos da América, mas, igualmente, em países periféricos, como a Polônia e a recém criada Tchecoslováquia. Ao longo da década de 30 o número de países com correspondentes se ampliou notavelmente, e no fim desta década o número de correspondentes no exterior já chegava a trinta (5). Em 1936 o Brasil passa a contar com um correspondente da revista francesa, o engenheiro Eduardo Pederneiras, responsável pelo projeto arquitetônico do Hotel Glória no Rio de Janeiro, e, certamente, um integrante das “tendências mais conservadoras e moderadas” aludidas acima. Todavia, a presença de tantos correspondentes em tantas partes do mundo ― na China, no Japão e na colônia francesa da Indochina, assim como na Nova Zelândia e na Palestina ― não seria garantia de publicação e de divulgação de obras locais. Durante a década de 30 houve poucos artigos específicos sobre a arquitetura brasileira, e apenas em 1939, e nenhum sobre a Nova Zelândia ou sobre o México, apesar da presença na “rede” internacional de correspondentes locais: no Brasil o já aludido engenheiro, na Nova Zelândia P. Pascoe e Mario Pani no México (6). Este “silêncio” pode ter sido o resultado de razões meramente circunstanciais ― problemas de comunicação, por exemplo ― ou pode ter sido fruto das próprias políticas editoriais da revista. Esta questão, contudo, não será objeto de nosso interesse neste ensaio. Como já nos referimos, propomo-nos lançar luz sobre um fenômeno que nos é mais próximo: a representação da arquitetura brasileira dos anos 1980 nesta revista. Ora, se o nascimento da arquitetura brasileira do movimento moderno não foi registrado nas páginas da Architecture d’Aujourd’hui (7), a arquitetura brasileira dos anos 1980 o foi sob uma ótica, como veremos, muito “particular”. Teremos a oportunidade de apresentar a questão e de discuti-la nas próximas páginas, além de precisar o que entendemos pelo termo “particular”.

Posto isto, pode-se considerar que a escolha de nosso objeto de estudo já está, de alguma maneira, justificada: o passado internacional da revista francesa nos autorizaria tal recorte. No entanto, ainda resta uma questão a responder: porque os anos 1980? Ora, se a própria divisão em “décadas”, que se iniciam no seu suposto primeiro ano para se findar nove anos depois, já é uma convenção, o que não dizer da eleição de uma década particular em detrimento de todas as outras... Porém, dentro de limites não precisos, isto é, fluidos e variáveis, ninguém ousaria negar o caráter comum e homogêneo que possuem certos períodos de tempo. Negar isto seria, simplesmente, invocar a absoluta singularidade dos fatos recusando que um determinado conjunto de objetos, fenômenos, produções, hábitos, etc., possa ser compreendido e subsumido desde um conceito geral. No limite, seria recusar a possibilidade de comunicação e a própria intersubjetividade. Neste sentido, deve-se conceder que é possível apreciar um determinado período de tempo desde um conceito que lhe seria, digamos, “exterior”, como o conceito de década. No entanto, mesmo que possamos considerar como corretas as nossas asserções, ainda não conseguimos justificar devidamente a razão de ser do nosso recorte ― volto à questão: por que os anos 1980?

Na França, assim como em boa parte da Europa, os anos 1960 e 70 foram um período de intensa efervescência cultural e política. Bastaria citar uns poucos eventos decisivos para que esta última asserção encontre a sua justificativa: Maio de 68, o Estruturalismo, a publicação do influente A sociedade do espetáculo, de Guy Débord, a liberação sexual, principalmente por parte das feministas e dos homossexuais, e o movimento denominado de “Contra-Cultura”; este inventário, como é facilmente observável, é certamente bastante parcial, mas na economia da nossa exposição é suficiente aludir os eventos mais espetaculares, e, a este título, mais conhecidos. Como sabemos, não há fenômeno social que possa ser compreendido de maneira isolada; ora, estamos longe de pleitearmos um “marxismo fácil”, isto é, uma leitura platte de Marx e marxianos, como se fosse suficiente evocar o fim das “Trinta Gloriosas” para explicar toda a transformação social ocorrida na Europa. Defendemos apenas que fenômenos que são considerados em um dado momento como “artísticos” ou “culturais” não podem ser estudados sem que sejam levados em consideração outros fenômenos que também fazem parte da mesma sociedade em questão. Isto equivale a dizer que os eventos já aludidos podem, de alguma maneira, estar relacionados a outros eventos. Como terão percebido os leitores deste ensaio, estamos referindo-nos à arquitetura e as suas intricadas relações sociais. À guisa de ilustração permitir-nos-emos citar um trecho de Bernard Huet, em um editorial da revista Architecture d’Aujourd’hui de Setembro de 1974: “Não se trata [...] de lutar pela defesa de uma forma de arquitetura moderna nostalgicamente ligada as sua origens, mas de tirar as conseqüências do fracasso das vanguardas e de ver se é possível colocar em termos claros as condições de uma prática arquitetônica contemporânea” (8). Pode-se depreender no texto ― e de maneira até um tanto óbvia ― uma nítida oposição entre “arquitetura moderna” e “arquitetura contemporânea”, sendo que esta última surge como uma possível aspiração, enquanto a primeira representa, no discurso, o fator negativo que coloca em movimento o processo dialético.

De fato, a partir dos anos 1960 há uma miríade de transformações na arquitetura francesa, com experiências já muito distantes da arquitetura do movimento moderno; seria desnecessário, no entanto, citar no espaço deste ensaio estas manifestações que já são bem conhecidas pelo público brasileiro que se interessa por arquitetura; mais importante seria ressaltar que não se tratava de fenômenos pontuais como o Centre Georges Pompidou e les Halles, mas de uma “efervescência”; e, lembramos, quem se utiliza deste termo está indicando sempre um estado coletivo e geral.

Posto isto, e para evitar o risco de que a discussão acima seja compreendida como uma mera digressão, é sempre oportuno retornar aos anos 1980 no Brasil. Ora, sabe-se que esta década foi marcada por uma transformação social extremamente importante e que esta foi responsável por provocar tantas outras: o processo político conhecido por “redemocratização”. A eleição do primeiro presidente não militar e pertencente a um tradicional partido de oposição (9), Tancredo Neves, e a posse do candidato a Vice-Presidente, José Sarney, se não foram nenhuma revolução, permitiram, ao menos, que forças sociais, antes fortemente reprimidas, encontrassem meios de expressão. Neste contexto o retorno do exílio de políticos e intelectuais de esquerda, assim como o fim da censura, representaram uma mudança no panorama político-social do Brasil (10). Assim, de acordo com o que tentamos estabelecer linhas acima, a saber, a correspondência ― ainda que não “exata” ― entre diferentes fatos sociais e artísticos, devemos refletir se teria havido modificações semelhantes em outras áreas no País. Ora, que o retorno de intelectuais e artistas de esquerda ao Brasil teria tido importantes implicações na produção artística brasileira, ninguém negaria; restaria refletir, então, se o mesmo processo de transformação teria ocorrido em nossa área específica de interesse, a arquitetura. Pode-se afirmar, de antemão, que o retorno à cátedra dos professores universitários que teriam sido afastados devido a suas posições políticas teve conseqüências no ensino universitário, e o caso mais emblemático, ao menos no campo da arquitetura, é o de Vilanova Artigas. No entanto, para além da Academia há uma questão crucial e que se refere diretamente à produção arquitetônica do País: a revisão do Modernismo.

Se, de uma maneira geral, na Europa a arquitetura do movimento moderno enfrentou as suas primeiras críticas e revisões nos anos 1960, e na esteira de outros processos sociais, foi apenas na década de 1980 que este processo ocorreu no Brasil. E talvez a supracitada correspondência entre os diferentes domínios sociais seja a chave conceitual que nos permita compreender esta questão.

Retomando o nosso fio condutor, é importante que se afirme que a revisão do movimento moderno em todo o mundo se deu tanto por complexas razões sociais quanto pelo desaparecimento daqueles arquitetos cujas obras, tão diferentes umas das outras, já não podiam impressionar como outrora. Perdendo a força de encanto restava, ao menos, o poder de evocação: a Unité d`Habitation foi subssumida pela Grande Motte de Jean Balladur (esta evoca aquela com motivações, funções e aspirações completamente diversas), assim como, no Brasil, o modelo de Grand Ensemble do BNH foi reiteradas vezes contestado. Se acreditarmos que todo movimento artístico não é uma simples coleção de formas classificadas como semelhantes, mas a resposta de alguns artistas a certas condições sociais, e que desaparecidas ou transformadas estas condições, deveriam desaparecer igualmente a resposta, então o Movimento Moderno ― no Brasil e no resto do mundo ― teve uma “morte natural”.

2. Architecture D’hier: hoje as publicações de ontem

Estabelecidas estas questões, resta-nos delinear o tema primeiro deste ensaio: a publicação da arquitetura brasileira dos anos 1980 nas páginas da revista Architecture d’Aujourd’hui. O título deste capítulo que é, certamente, irônico, remete-nos ao cerne da questão: ora, se o nascimento da arquitetura brasileira do movimento moderno não foi registrado pela revista francesa (11), teria sido o seu ocaso? E em que termos? Teremos, finalmente, condições de explicitar o que foi dito no capítulo anterior, a saber, a ótica nomeada de “particular” da publicação da arquitetura brasileira dos anos 1980 por parte da revista francesa.

Nos anos 1980 Architecture d’Aujour’hui apresentava uma rubrica intitulada Actualités em que a produção arquitetônica estrangeira era apresentada ao público; e era justamente nesta rubrica que a produção dos países periféricos era publicada. Conseguimos recuperar os seguintes números com matérias sobre a arquitetura brasileira: o número 210, de Setembro de 1980, com uma matéria sobre a Sede do Partido Comunista Francês, em Paris, obra de Oscar Niemeyer; o número 219, de Fevereiro de 1982, com uma matéria sobre o Memorial Juscelino Kubitschek, em Brasília, obra de Oscar Niemeyer; o número 228, de Setembro de 1983, com uma matéria sobre a Casa da Cultura do Havre, de Oscar Niemeyer; o número 232, de Abril de 1984, com o Sambódromo do Rio de Janeiro, obra de Oscar Niemeyer. Após uma ausência de alguns anos, 1988 teve três números com matérias sobre o Brasil: o número 256, de Abril, com uma matéria sobre autoconstrução na Índia e no Brasil, o número 257, de Junho, com uma matéria sobre a Exposição no Rio de Janeiro que teve como objeto o arquiteto francês do século anterior Grandjean de Montigny, e o número 259, de Outubro, com uma matéria assinada por Lauro Cavalcanti intitulada “Niemeyer pior, modernismo popular dos subúrbios brasileiros”. No ano de 1989 houve duas edições com matérias sobre a arquitetura brasileira: o número 262, de Abril, com uma matéria sobre Burle-Marx, e o número 264, de Setembro, cuja matéria tinha como tema o Memorial da América Latina, de Oscar Niemeyer. A esta lista faltaria apenas acrescentar a edição de número 251, de Junho de 1987, dedicada exclusivamente à produção arquitetônica brasileira.

É importante, por outro lado, observar não apenas o que foi publicado, mas como o foi, uma vez que nem tudo foi publicado na rubrica Actualités. A exposição de Grandjean de Montigny, por exemplo, foi publicada em uma nova rubrica dedicada exclusivamente a promover as exposições, tanto na França quanto no exterior. A matéria sobre autoconstrução, por sua vez, foi publicada sob o título, hoje anacrônico e naquele período já pejorativo, de “Terceiro Mundo”. Aludimos na Introdução deste ensaio que a AA foi uma das primeiras revistas de arquitetura a manter uma rede de correspondentes no exterior, seria ainda assim no período por nós aludido? Não há nas revistas da década de 1980 nenhuma alusão, nem mesmo implícita, a uma rede de correspondentes no exterior. O foco principal recai sobre uma rede de difusão comercial com escritórios no exterior para assinatura. Sinal dos tempos...

Abordando, neste momento, o que foi publicado na AA ver-se-á que é necessário levantar uma questão que apenas aparentemente é banal; ora, viu-se que a Architecture d`Aujourd`hui publicou, na maioria das vezes, a obra de um arquiteto já muito conhecido do público especializado europeu: Oscar Niemeyer (12). Sem dúvida trata-se da opção pelo mais fácil, isto é, pelo canônico ― neste sentido, pode-se pensar em uma atualização de referenciais, e não em uma descoberta.

Pode-se explicar este fato argüindo-se que se tratava de um simples desinteresse dos críticos franceses de arquitetura por uma arquitetura de um país considerado “exótico” e periférico e que enfrentou, ao longo da década de 1980, uma série de dificuldades financeiras e alguns entraves econômicos. Por outro lado, o marco arquitetônico e urbanístico que foi Brasília não tinha sido apagado da memória dos europeus, e nem as discussões que aqui se travavam em torno do tema chegaram ao Velho Continente ― a capital brasileira ainda era para eles o que tinha ido para nós nos anos subseqüentes a sua inauguração. Não se deve esquecer, ainda, que Oscar Niemeyer passou grande parte do seu exílio na França e ali forjou reações de amizade com alguns intelectuais.

Se as questões elencadas acima podem, ao menos em parte, explicar a quase monotemática publicação da arquitetura brasileira dos anos 1980 na revista francesa, pode-se sempre lamentar esta política editorial naquilo que ela tem de mais reprovável: o seu flagrante conservadorismo. Na década em que uma quase secular instituição cultural européia mudava completamente a sua política, a Academia sueca responsável pela atribuição do Prêmio Nobel de literatura a revista francesa continuou com a sua prática de publicar o canônico (13). Havia, certamente, um hiato considerável entre o que a crítica especializada discutia e o que se produzia como arquitetura no Brasil e que foi publicado na AA na mesma época. Como ilustração deste fato, pode-se citar o livro do arquiteto Hugo Segawa, intitulado Arquiteturas no Brasil 1900-1990, e publicado pela primeira vez no ano de 1998. Neste livro, no capítulo dedicado à arquitetura brasileira da década de 1980, não há sequer uma única menção à arquitetura de Oscar Niemeyer (14). Mas neste caso não se trata de uma transgressão ou de uma ruptura com o “princípio de autoridade”, devemos ter sempre em mente que toda obra crítica é o resultado intelectual do seu próprio tempo, o limite instransponível do pensamento: onde e quando se pensa. Portanto, Segawa destacou o que instigava o público brasileiro naquela década: os regionalismos, principalmente as obras de Severiano Porto e do grupo mineiro. Assim, parece que estamos diante de uma completa cesura entre o que importava para o público especializado brasileiro, que nos anos 1980 fazia ― finalmente ― a sua revisão do movimento moderno, e a publicação francesa.

No entanto, devemos retornar àquilo que havíamos, linhas acima, anunciado: a edição monográfica sobre a arquitetura brasileira, publicada em Junho de 1987. Neste dossiê há o cuidado de perceber o Brasil não mais como o país de uma arquitetura e de um urbanismo do movimento moderno, cuja realização máxima teria sido, naturalmente, Brasília. Na sua abertura lê-se: “A arquitetura [brasileira] não oferece mais esta imagem homogênea e fascinante de antes, estranha mistura de modernidade e de sensualismo. Ela é diversa, eclética, dispersa.” O autor destas frases, provavelmente o enviado especial ao Brasil, o escritor suíço Jean-Pierre Cousin, parece propor uma “atualização” ao público europeu do panorama arquitetônico brasileiro. E é interessante e significativo que nesta matéria os arquitetos Oscar Niemeyer, Lina Bo Bardi e Severiano Porto tenham recebido o mesmo tratamento e a eles tenha sido dedicado o mesmo espaço editorial; ora, no momento em que escrevemos estas linhas isto pode parecer um absurdo, ou, ao menos, um importante contra-senso, todavia, não o foi, em 1987, nem para o público brasileiro nem para Jean-Marie Cousin. E este último, de alguma maneira, o confessa ao listar as motivações da sua seleção de arquitetos e obras, sem, evidentemente, citar nomes: “A preocupação de atualidade frequentemente favoreceu arquitetos mais jovens, ou obras que uma crítica sábia poderia considerar como menores: é esta a diferença entre uma antologia e uma ação de informação” (15). Assim, além dos já citados arquitetos, temos em destaque na supracitada edição, entre outros: Lelé (mas publicado pelo seu nome, João Filgueiras Lima), Luis Caldas Zanine, João Toscano, Marcos Acayaba, Carlos Bratke, o escritório “Croce, Aflalo e Gasperini”, Luis Paulo Conde, Eduardo Longo, e, finalmente, o grupo mineiro: Eólo Maia, Sylvio de Podestá e Josefina de Vasconcelos (tratados como “os dissidentes de Minas Gerais”) (16). Como se pode perceber, trata-se de arquitetos que facilmente poderiam ser publicados nas revistas brasileiras Projeto e AU, como, aliás, o foram em diversos momentos dos anos 1980.

Devemos, neste sentido, apontar uma cesura: as matérias ordinárias da AA que têm por objeto a arquitetura brasileira desconsideram a sua “dispersão” e o seu “ecletismo”, escolhendo o canônico; por outro lado, no momento em que dedicam um número especial ao Brasil, o que era considerado extraordinário passa a ordinário, e o ignorado em conhecido. Talvez seja esta a aludida diferença entre “antologia e ação de informação”.

3. Últimas considerações: a anatomia de um seqüestro

Estas questões nos remetem, necessariamente, ao subtítulo deste ensaio, isto é, o “seqüestro” da arquitetura brasileira os anos 1980 por parte da revista Architecture d`Aujourd`hui, a qual, no entanto, nos foi devolvida por Jean Cousin em 1987. Observa-se que estamos diante de duas situações radicalmente diferentes: a opção pelo canônico em matérias que, pensando-se desde o contexto geral da revista Architecture d’Aujourd’hui, são de pouca importância, e a seleção variada e eclética que coincidiu com o que era publicado na imprensa especializada em arquitetura no Brasil. É necessário fazer uma espécie de “conciliação” destes fatos, isto é, realizar uma síntese, uma vez que se trata da mesma revista. Além disto, deve-se observar que, após a edição especial de 1987, a arquitetura brasileira voltou a ser publicada pela AA cinco vezes, e arquitetura do movimento moderno surge duas vezes, com Burle-Marx e Oscar Niemeyer, isto é, retorna-se à opção pelo canônico e pela tradição. E é curioso observar que em livro do arquiteto Segawa cujo objeto de investigação é justamente a arquitetura brasileira dos anos 1980, intitulado Arquiteturas no Brasil/anos 80, não faz menção ao Memorial da América Latina, que, todavia foi publicado pela AA em Setembro de 1989...

É sempre possível elencar algumas hipóteses para este desajuste entre o que foi considerado, em termos de arquitetura, digno de atenção no exterior, e, mais precisamente, na França, e o que interessava ao público doméstico; no entanto, se pensarmos esta questão após as comemorações dos 100 anos do arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer, o que se torna flagrante é a sua relativa pouca importância no panorama da divulgação da produção arquitetônica brasileira naquela época. A divulgação da produção arquitetônica nos anos 1980 no Brasil foi marcada pela emergência dos regionalismos (referimo-nos com o uso deste termo aos casos já aludidos do “grupo mineiro” e de arquitetos como Severiano Porto) e pela revisão do movimento moderno, assim como pela crítica dos modelos de cidade criados a partir da experiência urbana de Brasília e pela busca de uma linguagem que fosse compatível com a situação e a realidade brasileiras; e convém acrescentar a este panorama a recepção positiva no Brasil da obra de arquitetos estrangeiros como Michael Graves, Charles Moore e Aldo Rossi, tão distantes de qualquer herança do movimento moderno (17). Estavam todos no Brasil tão preocupados em aprender com Las Vegas que esqueceram que Oscar Niemeyer estava atuante e produtivo, e hoje a sua produção arquitetônica realizada no período por nós abordado é tratado pela crítica especializada retrospectivamente.

Não caberia, todavia, nenhum julgamento depreciativo em relação à atuação neste período dos críticos brasileiros de arquitetura, posto que todo julgamento realizado a posteriori é sem sentido. Assim como fora já realizado no resto do mundo Ocidental ou à Ocidental, o Brasil dos anos 1980 estava fazendo o seu “acerto de contas” com a tradição do movimento moderno. De qualquer sorte, é no mínimo curioso observar como, pensando estas questões à maneira de Galileu (e referimo-nos ao adágio “O senhor da razão é tempo, e não a autoridade”), a revisão do movimento moderno que, certamente, foi fecunda e criativa, além de inevitável, findou-se no enaltecimento da obra do arquiteto que, justamente, foi o maior representante deste movimento.

notas

1
Para esta questão, ver: Segawa, Hugo; Crema, Adriana; Gava, Maristela. Revistas de arquitetura, urbanismo, paisagismo e design: a divergência de perspectivas. Brasília, v. 32, n. 3, p. 120-127, set./dez. 2003.

2
Não são poucas, as revistas Domus, Architectural Review, Casabella e Architectural Forum poderiam ser elencadas, aqui, à guisa de ilustração.

3
JANNIÈRE, Hélène. Politiques éditoriales et architecture « moderne ». Paris : Edition Arguments, 2002, p. 179.

4
A este propósito, há um fato assaz “anedótico” narrado por Jannière (2002: p. 180): convidado à Sala Pleyel em 1931, pela Architecture d'Aujourd’hui, Le Corbusier foi vaiado pela platéia composta por estudantes da Ecole de Beaux-Arts. Este acontecimento ilustra de maneira admirável o ambiente intelectual e político dos anos trinta na Europa, frequentemente dividido em facções antagônicas e radicais.

5
JANNIÈRE, Hélène. Op. cit, p. 186-187.

6
Idem, ibidem, p. 186.

7
E é necessário fazer a seguinte ressalva: é difícil precisar exatamente o momento em que se dá o surgimento de uma escola artística ou de um movimento, uma vez que, na maioria das vezes, é somente à posteriori que um determinado conjunto de obras são compreendidos desde o mesmo conceito.

8
Architecture d’Aujourd’hui.
Nº 174. Setembro,1974, p. 246 ― tradução nossa do Francês para o Português

9
A letra “P” que os dirigentes do partido foram constrangidos a adotar diante da tradicional sigla MDB não apagou, certamente, a sua longa trajetória de oposição ao regime militar.

10
O último filme censurado no Brasil, Je vous salue Marie, obra do cineasta francês Jean-Luc Godard, data já do período de redemocratização, porém, não havia mais condições sociais de levar a cabo a censura, a qual foi, aliás, largamente ― e às claras ― desrespeitada. Este filme foi exibido em sessões especiais com ampla cobertura da imprensa, e mesmo alguns membros da alta hierarquia da Igreja Católica, responsável pelo pedido de censura, afirmaram que não gostariam de tolher o direito dos “intelectuais” de ter acesso ao filme francês.

11
Ver nota 07.

12
Voltaremos em breve à edição especial de 1987 a qual, possuindo um caráter monográfico e tendo sida dedicada principalmente à produção arquitetônica brasileira, apresenta uma abordagem panorâmica, e, a este título, variada.

13
A política de premiação mudou radicalmente, justamente, a partir de meados dos anos 1980. Importava, então, para a academia sueca, “fazer justiça” com aqueles que, historicamente, sempre foram relegados a um papel cultural secundário. Ora, não é coincidência que “desconhecidos” tenham recebido o Prêmio Nobel de Literatura e que escritores conhecidos tenham tido a sua candidatura desconsiderada. É, certamente, a política da “aposta”: escolhem-se alguns nomes na expectativa de que o Prêmio Nobel baste para tornar o agraciado lido e reconhecido. Algumas vezes, neste processo, conseguiu-se instituir uma espécie de “cânone”, ou quase, como no caso do português José Saramago, do mexicano Otavio Paz, e, talvez, da americana Toni Morrison.

14
“Criticar Niemeyer e Brasília, negar validade às teses de Vilanova Artigas tornaram-se pontos de vista correntes e dominantes. Antes, a referência a eles era um recurso de legitimação; hoje, parece que uma ligação com esses mestres é um atestado de maus antecedentes” (Segawa, 2002: p. 197). O que é válido, certamente, para o Brasil, mas não para as páginas da Architecture d`Aujourd`hui.

15
Architecture d’Aujourd’hui
. Nº 257 - edição monográfica sobre a arquitetura brasileira. Junho, 1987, p. 11.

16
Silvio de Podestá, além de Raul di Pace e de Maria-Luiza de Carvalho, esta última editora da revista Módulo, colaborou na edição. 

17
Já foi observado por críticos, todavia, que esta recepção positiva por parte de profissionais brasileiros de arquitetura não durou a totalidade da década que aqui analisamos.

bibliografia complementar

1. Architecture d’Aujourd’hui. Nº 210. Setembro, 1980.

2. Architecture d’Aujourd’hui. Nº 219. Fevereiro, 1982.

3. Architecture d’Aujourd’hui. Nº 228. Setembro, 1983.

4. Architecture d’Aujourd’hui. Nº 232. Abril, 1984.

5. Architecture d’Aujourd’hui. Nº 256. Abril, 1988.

6. Architecture d’Aujourd’hui. Nº 257, Junho, 1988.

7. Architecture d’Aujourd’hui. Nº 259, Outubro, 1988.

8. Architecture d’Aujourd’hui. Nº 262, Abril, 1989.

9. Architecture d’Aujourd’hui. Nº 264, Setembro, 1989.

10. Segawa, Hugo. Arquiteturas no Brasil/anos 80. São Paulo: Projeto, 1988.

11. ___. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. São Paulo: Edusp, 2002.

12. Segawa, Hugo; Crema, Adriana; Gava, Maristela. Revistas de arquitetura, urbanismo, paisagismo e design: a divergência de perspectivas. Brasília, v. 32, set/dez 2003.

sobre o autor

Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima, arquiteto e urbanista, Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo, Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Autor do livro Arquitessitura ― três ensaios transitando entre a filosofia, a literatura e arquitetura. Professor Assistente da Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Arquitetura e Urbanismo

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