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architexts ISSN 1809-6298


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Tendo como foco a presença do sacrifício em nossa cultura digital, o ensaio de José Cabral Filho apresenta cinco aforismos que buscam problematizar e expandir a discussão da inter-relação entre a tecnologia digital, o corpo e o espaço


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CABRAL FILHO, José dos Santos. Sacrifício digital – 5 aforismos sobre o corpo no espaço tecnológico. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 104.07, Vitruvius, jan. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.104/86>.

Um anjo sábio, correto e magnífico

Cena 1 - Um dia, num passado não muito remoto de nosso imaginário, Deus ordena a Abraão que sacrifique seu filho Isaac como prova de obediência suprema à vontade divina. A ordem absurda ganha tons cruéis ao lembrarmos que Isaac, o filho, era filho único e que Sarah, a mãe, o concebera aos noventa anos, fruto de um milagre da própria divindade que agora ordenava o sacrifício do rebento. Na seqüência da história, como é sabido, temos um relutante Abraão conduzindo Isaac, perplexo e de olhos vendados, ao lugar do sacrifício, previamente indicado por Deus. No instante da degola a história atinge seu clímax, quando um anjo, sábio e exato, surge e, segurando a lâmina suspensa no ar, propõe a substituição do rapaz por um cordeiro. Como aponta o psicanalista mineiro Everardo Oliveira, este ato transforma o que seria apenas mais um ato de violência em nome de Deus, num marco do processo civilizatório da cultura ocidental, ao indicar a possibilidade de simbolização da violência.

Cena 2 - Num passado bem mais recente, mas também já parte de nosso imaginário, outra imolação acontece: Alan Turing, matemático inglês, considerado um dos pais do computador (e que com suas descobertas computacionais ajuda a por um fim à Segunda Guerra), se suicida, pressionado pelo conservadorismo da sociedade inglesa incomodada diante de sua homossexualidade. Desta vez nenhum anjo, sábio ou exato, surge para segurar no ar a maçã envenenada no momento em que Turing a morde, e a despeito da sobrevivência de Isaac a história da barbárie humana se mostra perpetuada, fazendo com que a ‘revolução digital’, racional e tecnológica, vá nascer sob a égide do sacrifício.

Cena 3 - Após a imolação de Turing suas idéias são desenvolvidas e temos então a completa implementação das máquinas computacionais preconizadas e descritas teoricamente por ele. Nas décadas seguintes a tecnologia digital vai se disseminar rapidamente e permear todos os campos da cultura. De forma especial a tecnologia digital vai atingir incisivamente a nossa existência corporal, permitindo uma nova e profícua relação com o corpo, e nos dando um extenso domínio sobre o mesmo, tanto no âmbito funcional quanto simbólico e estético. Como retorno a esta dádiva do ‘deus tecnologia’ alguns corpos são eleitos para serem oferecidos em um sacrifício digital, onde, reduzidos à qualidade de objetos, são invadidos, manipulados e, de alguma forma, escravizados. Sábios e exatos, nenhum de nós acredita mais em anjos.

Tendo como foco esta presença do sacrifício em nossa cultura digital, este ensaio apresenta cinco aforismos que buscam problematizar e expandir a discussão da inter-relação entre a tecnologia digital, o corpo e o espaço.

1. O corpo desejante é uma construção do sujeito, portanto trespassado pela linguagem e passível de modelamento

O corpo e sua carnalidade talvez fosse o último lugar onde aplicaríamos a idéia de construção. Pensar o corpo como construção causa estranhamento especialmente pelo fato de o mesmo, em sua organicidade e carnalidade, ser um aparente reduto da imediaticidade: ele é tudo o que temos e é através dele que apreendemos e vivemos a realidade. Mas o corpo só vai se caracterizar como algo realmente vivo quando tomado como um corpo desejante. Visto assim, não apenas como algo imerso na trama do desejo, mas como o lugar mesmo do desejo, o corpo desejante é fruto de uma construção, pois ao superar a dicotomia objetivo/subjetivo inclui em si todas as topografias do inconsciente em sua complexa relação com a linguagem, conforme nos apontou Lacan.

Mas como não somos apenas sujeitos ao inconsciente, mas principalmente sujeitos do inconsciente, podemos ser sujeitos atuantes na construção desse corpo, ou seja, nosso corpo é neste sentido aberto ao modelamento; um modelamento simbólico certamente, mas que vai ter ecos precisos e incisivos na configuração carnal/objetual do corpo. Assim, já que o corpo é essa construção trespassada pela linguagem e como o sujeito falante é um sujeito que se faz e se desfaz no discurso, podemos dizer que o corpo desejante, por estar ancorado na linguagem, está sempre em processo de construção. Ao se inserir na cena dialógica do discurso onde sempre comparecem o outro e o seu desejo, este corpo incompleto, ‘corpo em obras’, é um corpo deslizante, expressão de uma ‘identidade’ intercambiante, ou o vir a ser de um sujeito vivente.

2. O universo virtual contemporâneo se constrói em função do corpo e seu vínculo com a morte

Apesar de usualmente associarmos a ‘revolução digital’ que estamos presenciando à culminação da racionalidade e da tecnicidade de nossos tempos, uma investigação mais cuidadosa nos mostra o contrário. As complexas injunções econômicas, culturais e técnicas vão se permear sempre de recursos metafóricos que, em sua origem, vão nos remeter a estruturações míticas. Desde o início do desenvolvimento dos primeiros computadores -‘cérebros eletrônicos’ - o uso de metáforas antropomórficas indicava já a presença de uma forte carga de subjetividade atrelada à tecnologia digital. É curioso que chamar de ‘cérebro eletrônico’ uma mera máquina de cálculo nos parece risível hoje, mas todos nós ainda usamos sem constrangimento termos da mesma categoria metafórica, como por exemplo ‘memória’, ‘placa-mãe’, ‘inteligência artificial’, etc.

É verdade que tais metáforas antropomórficas são um meio de dar consistência e tatibilidade às operações elétricas intangíveis do universo da computação, mas acima de tudo elas indicam o quanto o computador está impregnado das sutilezas da psique humana. A ânsia pela simulação/reprodução do nosso mundo, que aparece com freqüência nos filmes de ficção científica e nos discursos de nossos cientistas da computação, vai sempre apontar para o caráter mítico deste empreendimento. Ao que tudo indica o impulso que move a revolução digital é mesmo um impulso mítico: é um impulso de desvendar o enigma do mundo natural, é um impulso de nos aproximar, ou nos assemelhar a Deus, é um impulso de superar a angústia da finitude de nosso corpo, a angústia da morte. Paul Virilio vai dizer que “a noção de transcendência é algo complexo, mas é verdade que existe algo de divino nesta nova tecnologia. A pesquisa sobre ciberespaço é uma busca de Deus. De ser Deus. De estar aqui e lá simultaneamente” (1). Na mesma linha de pensamento, Baudrillard vai completar dizendo que “é exatamente (a) imortalidade que é o sonho último de nossas tecnologias” (2).

Não é surpresa que este ânsia de imortalidade vá se ligar ao digital: sabemos que os números, em sua beleza abstrata, não morrem e que o teorema de Pitágoras, com sua certeza irrefutável, alcança uma validade intersubjetiva. A questão então se coloca: será que digitalizar-me, tornar-me número, é inscrever-me na eternidade? Será que tornar-me uma representação numérica é atingir o graal da pura objetividade que me garanta o sossego e o conforto para lidar com a inconstância entre as subjetividades? Será que tornar-me número e submeter-me às previsibilidade das regras da aritmética é por fim à angústia do acaso? Apesar de serem estas as premissas que, acredito, tem levado a humanidade a depositar grandes quantidades de esperança e recursos financeiros no desenvolvimento da tecnologia digital, esta fantasia da imortalidade, da pura objetividade e da eliminação do acaso esbarra no simples fato de que a inexorabilidade do mundo não se entrega à representação digitalizada. Definitivamente o acaso não se dá ao digito: nas representações computadorizadas ele é sempre baseado em uma tabela pré-determinada (!) de números aleatórios, ou então, alternativamente, através do uso de ruídos dos próprios circuitos eletrônicos como fonte de incerteza. Mas neste caso já estamos de volta ao aleatório do mundo exterior à representação, o que nos retorna ao nosso ponto de partida, ou seja, a imortalidade continua sendo um atributo incômodo dos deuses e vampiros.

De qualquer forma esta busca pela imortalidade através das técnicas do digital vai situar o corpo como elemento central de todo o empreendimento de criação de espaços tecnológicos. Isto vai nos levar ao paradoxo de termos um universo virtual descorporificado que tem como referente, por apologia ou negação, a própria idéia de corporeidade. Assim a ubiqüidade de nosso universo virtual vai estar calcada na ilusão de que seria possível criar um corpo sem matéria, sem carne, que poderia circular e se perpetuar nos circuitos digitais, ou então na não menos ilusória fantasia da superação do orgânico pelo eletrônico, naquilo que seria a criação de próteses órfãs, próteses que prescindiriam da sua contraparte orgânica.

Esta tentativa de ‘matar a morte’ através da duplicação da mente ou do corpo, como se eles pudessem ter uma existência independente, não leva em consideração que a mortalidade é o preço que pagamos por nossa individualidade. Como James Lovelock nos lembra “[a] decadência e a morte são certas, mas isto parece ser um pequeno preço a se pagar pela vida e a possibilidade de se ter uma identidade individual. (...) A família vive mais que cada um de nós, as tribos vivem mais que as famílias, e as espécies vivem mais que as tribos” (3).

3. A estetização do espaço tecnológico transforma o corpo num ciborgue sacrificial

Se aceitarmos a idéia de que a revolução digital tem um fundamento mítico, e sabendo que as construções míticas de alguma forma se articulam em torno do sacrifício, é de se esperar que haja uma forma sacrificial na atualidade ligada às tecnologias da informação e comunicação. Acredito que esta forma sacrificial esteja ligada à invasão do corpo pelas tecnologias recentes de manipulação, ensejadas e viabilizadas pelas técnicas do digital. E se pensarmos a estética num sentido quase kierkegaardiano, não como a relação com a beleza, mas sim como a relação com o mundo dos objetos, podemos dizer que há uma estetização do espaço tecnológico, ou em outras palavras, há uma tentativa de reduzi-lo às suas qualidades meramente objetuais, como se não houvessem nele implicações simbólicas. É no bojo desta estetização do espaço tecnológico, ou da ilusão de sua possível estetização, que vamos encontrar o reaparecimento da forma sacrificial na atualidade.

Mas será que toda manipulação do corpo hoje guarda um vínculo com a idéia primitiva de sacrifício? Se excetuarmos a clonagem, que seria uma categoria especial e radical de manipulação, por se constituir num modelamento do código mesmo que dá origem ao corpo, podemos nomear 3 categorias de modelamento tecnológico que nos mostram abordagens diferentes do corpo: (I) de ordem funcional, (II) de ordem artística e (III) de ordem estética.

A manipulação de ordem funcional (ou a manipulação para a solução de problemas) seria caracterizada pelas intervenções cirúrgicas (também uma forma de remodelamento) e por instalação de próteses ‘operacionais’ que visam corrigir, re-educar, reparar ou mesmo efetuar uma manutenção orgânica. Colocação de marcapassos, obturações dentárias, cirurgias oftalmológicas, transplante de órgãos, transfusão de sangue, etc, são manipulações que se tornaram cotidianas, perderam o impacto simbólico e habitualmente são discutidas apenas do ponto de vista da técnica. Esta manipulação funcional, socialmente aceita e por princípio inquestionável, na verdade busca uma otimização corporal que pode ser vista como um retorno ao natural paradisíaco, a um estado natural do corpo, em suma uma busca tecnológica do que deveria ter sido o paraíso - a ausência da dor, do acidente e da morte.

A manipulação artística assume de forma radical a idéia do corpo como construção e trabalhando na fronteira entre arte, medicina e novas tecnologias vai usar o corpo como suporte mesmo da expressão, como se não houvesse mais mediação entre o artista e sua obra. Atuando sobre o universo simbólico de forma mais direta, a manipulação artística é transgressiva e conseqüentemente desveladora. Trabalhando no espaço entre a performance (que busca questionar uma visão de mundo estabelecida) e o ritual (que busca reafirmar uma visão de mundo) tais artistas vão nos fazer experimentar os limites de nossas noções de corpo e assim fazer ressurgir um estranhamento frente ao natural. É verdade que existe a ilusão de alguns artistas de que ao eliminarem a distância entre o autor e o suporte da obra ganhariam uma espécie de objetividade, recuperando a materialidade do corpo – a corporeidade contraposta à uma construção psíquica. O paradoxo está no fato de que ao atuarem sobre o corpo evidenciam a idéia do corpo como construção, por extensão como representação, onde, quer se queira ou não, todas as questões colocadas pela psicanálise estão rebatidas.

A manipulação de ordem estética, que poderíamos chamar também de ordem cosmética, compreenderia as intervenções cirúrgicas e os programas de treinamento (apoiados ou não por substâncias químicas) que, visando a um modelamento da imagem do corpo em função de um pretensa inclusão sócio-cultural, terminam por impor a anulação do sujeito e sua objetificação. Este modelamento e estas próteses da ordem estética são sempre impostos por forças externas ao sujeito, demandadas pelo outro, seja por um modelo de perfeição imposto pela mídia ou por uma conjunção cultural que estabelece tendências e modismos. Aparentemente uma resposta ao desejo do próprio sujeito, esta manipulação tem em última instância a pretensão de escapar às tramas lingüísticas onde o corpo e o desejo se enredam, como se o desejo mesmo pudesse ser fixado e objetivado.

Assim, como defende Katherine Heyles em seu livro How We Became Post-Humans (4), todos nós somos de uma forma ou de outra ciborgues pela aceitação da invasão tecnológica sobre nossas vidas e dificilmente conseguiríamos dissociar nossos corpos das intervenções tecnológicas sobre eles. Porém os ciborgues da ordem estética, eu não consigo vê-los senão como ciborgues sacrificiais: reduzidos à categoria de objetos são oferecidos em sacrifício a um ‘deus tecnológico’ ou midiático. Na ausência de um cordeiro para poder ser sacrificado, nós optamos por produzir um ciborgue que se preste ao sacrifício. E a idéia do sacrifício não se liga aqui tanto ao caráter visceralmente violento das estratégias das manipulações cosméticas (pense no processo de lipoaspiração), mas muito mais à violência simbólica nelas implícita – a supressão da dimensão lingüística do sujeito e sua conseqüente redução à categoria de objeto – este sim o verdadeiro sacrifício.

Talvez os verdadeiros ciborgues sacrificiais tenham existência apenas no espaço tecnológico mediatizado, como se eles não tivessem uma vida real. Difícil acreditar que Xuxa ou Michael Jackson possuam um cotidiano longe da mídia. Temos a sensação de que no instante em que as câmaras se afastam eles entram em estado de hibernação ou suspensão. E se o teórico canadense Arthur Kroker, propõe que Michael Jackson seja considerado o cordeiro de Deus da era digital, não seria ir longe propor que a Sasha, a filha de Xuxa, seja considerada o Menino Jesus do universo midiático brasileiro: a criança-propaganda de uma ideologia, predestinada desde o instante da concepção a ser sacrificada ao vivo, on-line e em cadeia nacional.

Certo é que a possibilidade do sacrifício em nossa época vai ser dissimulada pela ausência de ritos, pois como diz Baudrillard “[e]staríamos (…) continuando a viver de um modo sacrificial, sem querer assumir isso. Ou melhor, sem poder assumi-lo, porque sem os rituais, sem os mitos, não temos mais os meios para tal” (5). Mas talvez possamos argumentar que há sim ritos e mitos, mas que por alguma razão não conseguimos encará-los. Creio vir daí o estarrecimento geral diante das ações de artistas como Orlan e Stelarc, que através de suas ações artísticas, nos fazem ver o caráter ritual das cirurgias plásticas e de todas as operações de modelamento cosmético do corpo.

Mas para que serviriam estes sacrifícios hoje? Talvez pudéssemos interpretá-los do mesmo modo como George Bataille via o sacrifício dos astecas: uma oferenda em retorno à benevolência do sol que oferece diariamente seu calor e sua luz. Do mesmo modo como “[t]oda a base da sociedade asteca parece ser fundada no entendimento de que o sol de fato requeria algo a ser dado de volta em retorno à sua generosidade” (6), também Abraão retribui a generosidade divina que o concedera um filho. Talvez pudéssemos interpretar o sacrifício em nossa era digital como sendo da mesma ordem destas oferendas a uma entidade que nos concede algo fundamental para nossa existência. Como retribuir, senão com o sacrifício, ao recebimento de tantas maravilhas tecnológicas que viabilizam a otimização de nosso cotidiano de uma forma inédita na história humana e nos acenam com a possibilidade de retorno ao paraíso do qual fomos irremediavelmente expulsos?

4. A Arquitetura, espaço tecnológico por excelência, é construída como expansão do corpo

Quando pensamos em espaço tecnológico de imediato nos vem a mente conceitos como ciberespaço e realidade virtual, ou seja, os espaços criados pelas tecnologias do digital. No entanto há um espaço fundamentalmente tecnológico que já é conhecido pela humanidade desde remotas eras: o espaço arquitetônico. Artificial e arbitrária, a Arquitetura em sua essência é o espaço tecnológico primordial. Ela não chega a se confundir com a própria técnica, mas guarda uma estreita relação com a mesma. O arquiteto alemão Mies van der Rohe, um dos pais da arquitetura moderna, gostava de dizer que “toda vez que a tecnologia atinge um determinado patamar ela se transforma em Arquitetura.” Foi assim com a cerâmica, com a siderurgia, e não há razão para não acreditarmos que deverá acontecer também com a técnica do digital.

Mas se por um lado a Arquitetura se atrela à tecnologia, por outro ela também se vincula, desde sua origem, ao corpo. O corpo é o mito fundacional da Arquitetura, quer seja como metáfora, quer seja como elemento de medida, como elemento ordenador de proporção, e também pelo fato de o espaço arquitetônico ser construído em função direta do uso pelo corpo. Se se diz da roupa como a segunda pele, por sua contigüidade ao corpo, também se pode falar da Arquitetura como uma expansão do corpo, na verdade uma das mais arcaicas expansões tecnológicas do corpo humano, uma das mais ancestrais próteses.

Se o corpo era praticamente tudo o que o homem tinha para se relacionar com os seus iguais e com a natureza, com a invenção da Arquitetura ele passa a ter um novo elemento para mediar estas relações, ou seja, o espaço construído vem servir de elemento articulador com o mundo natural e com os outros homens, constituindo-se assim em uma das primeiras interfaces projetadas na história humana. É interessante notar que, exatamente por não se confundir com o corpo, a Arquitetura vai poder servir de interface entre ele e o mundo. E é enquanto interface que a Arquitetura vai se transformar em um instrumento ético (7) - este objeto que, por ser a expressão materializada da ética humana, propicia e protege as relações sociais.

5. A convergência entre tecnologia digital e Arquitetura pode aliviar a imposição de um sacrifício sobre o corpo

Se considerarmos o sacrifício contemporâneo – a redução estética do corpo a um objeto e a sua conseqüente invasão pela tecnologia digital – parece claro que estamos ainda oferecendo o corpo da mesma forma que se oferecia o corpo antes de Abraão (a rigor talvez não estejamos nem ofertando o corpo como o ofertava Abraão, pois não o imolamos em toda a sua complexidade e abrangência, mas sim um corpo empobrecido em seu simbolismo, reduzido a mero objeto). Deveríamos aprender com a lição bíblica e efetuar um deslocamento simbólico, e oferecer um corpo representado e não o corpo real. Parece que estamos ainda à espera do anjo a nos indicar o cordeiro que substituirá o corpo da oferenda. Sem querer arvorar-me de anjo, proponho que, se a forma suprema de sacrifico, como na quase imolação de Isaac, é aquela de ofertar de volta à divindade um pouco daquilo mesmo que ela generosamente nos propiciou, talvez devêssemos ofertar ao ‘Deus Tecnologia’ um pouco da própria tecnologia que ele nos permitiu – o espaço tecnológico do objeto arquitetônico. E se há alguma exigência de que esta oferenda deva ser a de um corpo, basta lembrar que a Arquitetura, quer em sua fundação mítica ou em sua essência pragmática, sempre foi tomada como metáfora e extensão do corpo. Se já temos este ‘corpo tecnológico’, artificial e cultural, porque não oferecê-lo ao sacrifício ao invés do próprio corpo?

Este sacrifício aqui proposto não diz respeito a um extermínio da Arquitetura, mas tão somente à sua entrega como oferenda, pois o que importa no sacrifício é menos a morte e mais a oferenda – quantos animais morrem sem que isto ganhe qualquer significado ritualístico pelo simples fato de não haverem sido ofertados. A morte só comparece no sacrifício por ser ela a forma mais radical de oferenda, a entrega da vida em si. E além de tudo, de alguma forma, a Arquitetura desde sua origem já vem sendo objeto do sacrifício em substituição ao sacrifício do corpo, seja quando o protege das intempéries seja quando evita a violência das relações viabilizando-as através de acordos éticos.

Assim, a despeito da resistência da maioria dos arquitetos em aceitar uma incorporação radical das tecnologias digitais de informação e comunicação nas arquiteturas criadas por eles, este seria o passo mais avançado na história da Arquitetura desde a invenção das unidades de vizinhança na idade do bronze. Se a Arquitetura foi inventada para servir de interface entre o ser e o mundo, transformando-se num instrumento de materialização e expressão da ética das sociedades, o espaço tecnológico, com suas avançadas possibilidades de re-combinação e de interação, pode ser pensado como a mais radical forma de Arquitetura para nossa atualidade; talvez a única forma de Arquitetura que dê conta do complexo estado de constante mutação de nossa cultura. Se o objetivo de toda tecnologia é tentar reconstruir o paraíso de onde fomos um dia expulsos, a convergência entre tecnologia digital e Arquitetura pode significar a invenção de um paraíso pelo qual buscamos ansiosamente – o paraíso da incompletude e da incerteza, onde o corpo poderia se realizar na mágica mistura visceralmente conceitual de carne e linguagem.

notas

1
WILSON, Louise. “Cyberwar, God And Television: Interview with Paul Virilio”, in: KROKER, Arthur and Marilouise (Editores). C-THEORY. Articles: A020, 12/01/1994 <www.ctheory.net/text_file.asp?pick=62>.

2
BAUDRILLARD, Jean. Senhas. Tradução de Maria Helena Kuhner, Rio de Janeiro, DIFEL, 2001.

3
LOVELOCK, James. “Gaia - Um Modelo para a Dinâmica Planetária e Celular” (Gaia - A Model for Planetary and Cellular Dynamics), in: THOMPSON, William I. (Ed). Gaia - Uma Teoria do Conhecimento. São Paulo, Editora Gaia, 1990, p. 90.

4
HAYLES, N. Katherine. How We Became Posthuman: Virtual Bodies in Cybernetics, Literature, and Informatics. University of Chicago Press, 1999.

5
BAUDRILLARD, Jean. op. cit., p. 21.

6
RICHARDSON, Michael. George Bataille. Londres, Routledge, 1994, p. 79.

7
CABRAL FILHO, J. dos Santos. Formal Games and Interactive Design - Computers as Formal devices for Informal Interaction Between Clients and Architects. Tese de PhD na School of Architectural Studies / Sheffield University - Inglaterra, UK, 1996.

sobre o autor

Arquiteto, mestre e PhD pela School of Architectural Studies - Sheffield University (Inglaterra). Professor Adjunto da Escola de Arquitetura da UFMG. Coordenador do LAGEAR – Laboratório Gráfico para a Experiência Arquitetônica (EAUMFG). Membro fundador do IBPA (Instituto Brasileiro de PerformanceArquitetura)

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