No início de abril de 2009 a Escola de Pós-Graduação em Design (GSD – Graduate School of Design) da Universidade de Harvard, em Cambridge, organizou uma conferência para discutir o que é, quais os rumos, e o que pode significar Urbanismo Ecológico no futuro (1). Foram disponibilizadas 180 inscrições que se esgotaram quase imediatamente. Participantes e palestrantes de inúmeros países estiveram presentes.
A conferência reuniu um número expressivo de renomados cientistas, pesquisadores, profissionais e estudantes de diversos campos do conhecimento, como: planejadores urbanos e regionais, urbanistas, arquitetos, paisagistas, ecólogos, engenheiros, especialistas em saúde pública e economistas. Participaram também políticos locais.
O evento começou com duas palestras introdutórias, sobre a situação da vizinha cidade de Boston. A primeira, dada por Alex Krieger, abordou a história da ocupação do estuário do Rio Charles e os impactos ambientais que causou. Em seguida foi feita a apresentação de um “Plano Verde” para renovar Boston. O plano deverá ser implementado nas próximas décadas. Para isso, foi lançado no dia 30 de março o plano “Renew Boston” (Renova Boston) e o Boston Climate Action Leadership Commitee (Comitê de Liderança para Ações Climáticas de Boston), com a presença de Al Gore. O plano é inovador, conta com parcerias público-privadas e um investimento federal inicial de 6, 5 milhões de dólares que deverá transformar a cidade em referência de desenvolvimento sustentável. O prefeito Thomas Menino abriu os trabalhos da conferência no dia 3 de abril. Vale ressaltar que o primeiro projeto paisagístico com cunho ambiental que visava sustentabilidade urbana foi feito e parcialmente implementado por Frederick Law Olmested, ainda no século XIX.
A apresentação de projetos para enfrentar os problemas causados pelas mudanças climáticas e aumento do nível do mar dominou as discussões, que foram distribuídas em mesas redondas, painéis e palestras individuais. Na abertura da conferência Mohsen Mostafavi, diretor da escola, enfatizou o comprometimento de Harvard em estar na pesquisa de ponta da sustentabilidade das cidades, das paisagens e das infraestruturas. Com especial atenção à questão ambiental para mitigar problemas existentes e os que serão causados pelo aquecimento global em áreas consolidadas, além de discutir novas possibilidades de ocupação sustentável para áreas de expansão. Levantou também como o urbanismo ecológico pode contribuir para espaços democráticos, que acomodem conflitos e discordâncias. Afirmou ainda que, para ser ecológico o urbanismo deve respeitar o passado, planejar e projetar espaços urbanos que respondam às necessidades de sustentabilidade da sociedade atual.
A tônica da interdisciplinaridade do evento foi dada logo na mesa redonda inicial. Diversas áreas do conhecimento foram representadas por renomados profissionais e cientistas: Literatura – Prof. Lawrence Buell, procura compreender através de metáforas questões históricas e ambientais; Ecologia da Paisagem – Prof. Richard Forman, é referência mundial nessa área, tem focado na ecologia da paisagem de diferentes regiões urbanas do mundo; História – Prof. Lizabeth Cohen, enfoca o consumo e o meio ambiente, como a cultura influencia a história política e como as cidades podem se sustentáveis para se viver, trabalhar e divertir; Economia – Prof. Ed Glaeser, pesquisa como as cidades podem ser economicamente sustentáveis; Saúde Pública – Prof. Nancy Krieger, enfoca a saúde igualitária onde o ambiente físico e social tem importância ecológica fundamental, holística; Arquitetura – Toshiko Mori, desenvolve projetos de edifícios verdes em diversos países; Religião – Donald Swerer, professor e pesquisador de Estudos Budistas, defende que valores e ética façam parte da agenda da sustentabilidade. Alex Krieger, planejador e designer urbano, foi o mediador da mesa.
A discussão alguns caminhos indicados pelas discussões para o Urbanismo Ecológico foram: a densificação em grande parte das situações, pois possibilitam áreas permeáveis com vegetação arbórea de preferência nativa, para favorecer a biodiversidade; espaços muito projetados em geral são barreiras ao desenvolvimento de biodiversidade; baixas densidades podem ser interessantes para áreas de transição com ecossistemas preservados; espaços urbanos de convivência são essenciais para congregar as pessoas; políticas públicas têm a função de induzir as pessoas a fazer escolhas que causem menos danos ecológicos.
Segundo Krieger, densificação é a chave para sustentar as cidades ao longo do tempo. Proporciona o aproveitamento da infra-estrutura, espaços livres, comércio e serviços para atender um maior número de pessoas. Diminui a necessidade de transporte individual. A diversidade de usos e grupos sociais e étnicos é um fator relevante para o Urbanismo Ecológico.
Rem Koolhaas e Homi Bhabha foram os convidados para fechar o primeiro dia. Atraíram uma enorme audiência que lotou o auditório e a sala externa de exposição. Koolhaas foi buscar as origens do pensamento ecológico nas cidades, citou Vitruvius, a Mitologia Grega e Buckminster Fuller, pensador e arquiteto autodidata que trabalhou durante toda a vida para contribuir com objetivo de melhorar as condições de vida de toda a população do planeta – pai das idéias: “Spaceship Earth” (Espaçonave Terra) e do “One-Town Planet” (o Planeta é uma só Cidade). Koolhaas defendeu que a sustentabilidade das cidades pode estar fora delas, como no caso da geração de energia eólica no mar do norte (NordZee), que irá suprir energia a uma extensa região do noroeste europeu.
Homi Bhabha, indiano, Diretor de Humanidades de Harvard, foi mais filosófico. Abordou o tempo, o agente e o urbanismo ecológico. O equilíbrio no tempo, nas intervenções, no equilíbrio relacional entre o social, cultural, ambiental, econômico e o geopolítico. Em países “colonizados” como a Índia, o tempo da burocracia deve ser considerado. Os agentes são as pessoas, entidades e demais instituições que interagem para que a cidade se desenvolva. Deu ênfase ao espaço “não construído”... ”que é o tempo para a reflexão ecológica” de como usar esse espaço: “é o momento para se pensar em construir ou não”. Enfocou também questões relativas à globalização, migrações, refugiados e minorias dentro da sua própria cidade, e a relação de dependência econômica entre os novos empreendimentos com edifícios para classes mais abastadas e as vizinhas favelas remanescentes.
Duas palestras individuais foram instigantes de formas diferentes. Bill Dunster da ZEDfactory, empresa baseada em Londres apresentou os projetos que vem desenvolvendo para residências, complexos e bairros com emissão zero de carbono. São trabalhos arrojados e inovadores, empolgou pela criatividade e técnica. Propôs soluções para áreas consolidadas, onde foi feita a adaptação de tipologias “vernaculares” que consomem muita energia de forma a transformá-las em edificações “verdes”. Propôs também, que uma nova estética seja adotada em sintonia com os processos naturais de ventos, insolação e águas, com a introdução de áreas produtivas (agriculturáveis) entre as áreas construídas e o sistema viário. Enfatizou o lado econômico como o grande motivador para repensar a indústria da construção. Apresentou com humor o bar ZED, e defendeu que para ser ecológico não precisa ser sério. Salientou que é preciso buscar soluções específicas para cada caso, não existem modelos replicáveis para qualquer sítio.
Em contraste, o arquiteto e designer italiano Andrea Branzi, fez uma palestra sensível, poética e polêmica. Apresentou sete sugestões para uma “Nova Carta de Atenas”, onde propõe que a cidade seja flexível e permeável nos espaços e usos; integre valores e funções sagradas e agrícolas (produção de alimentos e criação de animais como vacas, galinhas, carneiros); seja menos antropocêntrica, e se inspire no oriente (Índia) para que a convivência seja cósmica. Propõe que a cidade seja adequada às questões atuais, que reutilize edificações existentes, que as grandes transformações ocorram através da refuncionalização das microestruturas e que as instalações possam ser reversíveis, adequáveis a situações não previstas e não programadas. Destacou que a cidade é feita de coisas sem importância que devem ser consideradas como fundamentais: cultura, arte e música, por exemplo.
O tema do primeiro painel foi Ambientes Urbanos Produtivos. Foram apresentados e discutidos projetos produtivos implementados e propostos em diversos países e situações. Hortas urbanas perpassaram diversas apresentações não apenas nesse painel. Foram feitas propostas em todas as escalas, desde canteiros, tetos, ruas e lugares abandonados, até como parte de planejamento urbano ambiental, social e economicamente sustentável. Salientou-se o seu papel como possibilidade de educação sobre as fontes dos alimentos e sobre os impactos ambientais gerados (agrotóxicos X orgânicos, irrigação), além do potencial de melhoria do convívio social e do cultivo e criação local, com baixo custo e eliminação de transporte. A produção de alimentos dentro das cidades é uma forma de reconectar as pessoas urbanas com os processos naturais. Cuba foi citada como exemplo, diversas vezes. Mitchell Joachim, do MIT (Massachussets Institute of Techonology) apresentou projetos utópicos provocativos. Criticou a sociedade alienada e consumista americana, e propôs a “Ecotransologia” que integra a cidade, a ecologia e o transporte: com carros e casas orgânicas que crescem, são empilháveis (ocupam pouco espaço) e biodegradáveis.
A defesa dos recursos naturais foi o tema do painel seguinte: “Curating Resources” (Curadoria de Recursos). As idéias convergiram para o reconhecimento dos processos naturais, geológicos e hídricos como fundamentais para lidar com as questões urbanas de forma ecológica. Energia limpa, não poluente pode ser gerada de diversas formas, através não apenas do sol e dos ventos, mas também da disposição de resíduos orgânicos. O aquecimento em países de clima temperado já está sendo feito através da energia gerada pelos resíduos orgânicos, que também podem ser compostados e utilizados como fertilizantes na produção agrícola e na recuperação de solos degradados. A coleta de águas das chuvas e a sua reciclagem nos processos produtivos industriais são fontes para diversos usos secundários residenciais, comerciais e industriais.
Herbert Dreiseitl, paisagista alemão, mostrou projetos realizados em diversos países como Solar City, na Áustria, Potsdamer Platz, em Berlim, Parque de Stuttgart, na Alemanha, entre outros. Focou num que fez para Singapura, que tem muitas similaridades com problemas urbanos brasileiros. Argumenta que: as cidades têm muita chuva, mas não estocam e estão virando desertos que precisam importar água; a biodiversidade está sendo extinta nas cidades; existe desconexão entre as cidades e seus corpos d’água; as terras dividem povos e vizinhos, as águas unem, pois não conhecem fronteiras; as águas deveriam orientar os planos e projetos paisagísticos, urbanos e de infraestrutura. Através de projetos ecológicos é possível proteger e recuperar ambientes degradados aquáticos e terrestres dentro das cidades.
Dilip da Cunha e Anuradha Mathur, indianos, apresentaram o seu projeto para uma área úmida ocupada informalmente em Mumbai. Discordam de mapas e projetos que tomam como base a linha da terra como limites de intervenção. Acreditam que os limites deveriam ser dados pelas linhas de oscilação natural das águas, dos fluxos e áreas de inundação. Destacaram o papel de Patrick Geddes como um inovador que teve pouca atenção em sua época. Procuram, como Geddes, através de exposições sensibilizar e educar as populações para a mudança para o novo paradigma. Mathur alertou que devemos ter um olhar renovado sobre as águas e sobre a possibilidade de produzir alimentos em hortas urbanas como forma de restabelecer contato entre os seres humanos urbanos e os processos naturais.
Mobilidade, infraestrutura e sociedade foram temas do terceiro painel. Foram apresentadas propostas de veículos de emissão zero de carbono. Federico Parolotto apresentou seu projeto de mobilidade para Masdar, cidade projetada por Foster+Partners, totalmente artificial que está sendo construída ao lado de Abu Dabi. É uma ilha de zero carbono cercada pela cidade que mais emite carbono no planeta. William Mitchell, do MIT, causou grande impacto com a apresentação do projeto de mobilidade urbana sustentável. Consiste num sistema integrado não poluente, de veículos movidos por baterias elétricas. Foram concebidos em três tipos: bicicleta motorizada, scooters (mini-moto) e micro-carros (para duas pessoas) que são chamados “Smart City Cars”. O projeto prevê estações onde é possível alugar o veículo, em um local e deixar em outro. A recarga de energia elétrica gerada por captação solar é feita nas estações. Deverão estar conectadas com transportes de massa locais. A idéia é que as pessoas possam utilizar o veículo que atenda às suas necessidades do momento, sem precisar possuir um. Os carros são ágeis, fazem manobras completas, giram em torno de si mesmos. São dobráveis e empilháveis, não ocupam muito espaço para estacionar nem para circular. A fabricação do “City Car” é simples, de alumínio fundido, não utiliza plástico. É dirigido por “Joy Sticks” como um vídeo-game. São também chamados de USV – Ultra Small Vehicules, ao contrário dos atuais SUV – Sports Utility Vehicules, que são grandes consumidores de combustíveis fósseis e muito poluentes.
A discussão gerada pelo painel de “Ecologias de Escala” foi muito interessante ao fazer a conexão entre o urbanismo sustentável e os processos naturais em todas as escalas. Spiro Pollalis afirmou que os mais ricos causam maiores impactos no planeta, viajam mais, consomem mais. É uma questão de justiça que todos tenham acesso aos confortos dos ricos, mas como isso será possível? Stefano Boeri defendeu que a natureza é a medida, e que os impactos do que é artificial devem ser reduzidos. Acredita que a noção de sustentabilidade está em desenvolvimento, que é a reconciliação com a natureza. Citou Branzi para afirmar que acredita que a agricultura é a interface entre o natural e o construído, é um possível modo de redução dos impactos. A natureza toma conta de lugares abandonados, lembrou de Gilles Clément que propôs “un tiers Paysage”. Boeri acredita que os projetos urbanos devem mimetizar os processos naturais, combinar artificial e vegetal para reduzir os impactos, e que as cidades devem sair do antropocentrismo, ser mais criativas para atender suas próprias necessidades básicas.
Walter Hood apresentou a metodologia que utiliza: pesquisa os traçados dos cursos naturais das águas, anteriores à ocupação, e os utiliza como base para os projetos. Acredita que todas as cidades atuais são muito parecidas, que são estruturadas pelas vias e autoestradas. Não se vê rios. Enfatizou que é preciso reconectar as pessoas com sua paisagem.
O último painel foi bastante técnico, cujo tema foi Ecologia da Engenharia. Foram feitas diversas proposições que estão sendo implementadas e que podem ser consideradas como experimentos. A mais polêmica é a “cidade” de Masdar que está sendo construída com os petrodólares ao custo estimado de 22 bilhões de dólares. Foram feitos estudos de insolação e ventilação para o desenvolvimento do projeto. Masdar será uma cidade que emitirá zero carbono. Seu desenho é um quadrado inserido no deserto, com tudo construído para dar conforto térmico e possibilidades de circulação para os 50.000 residentes, e a população flutuante que irá trabalhar e visitar. É cercada por estacionamentos. A sua sustentabilidade foi questionada por inúmeras razões, como: não buscar nas próprias cidades do deserto, referências de projeto que estivesse em sintonia com a paisagem; os enormes custos ambientais de transformar o deserto em jardim; suas formas geométricas cartesianas não respeitam os fluxos naturais; vai gerar um grande fluxo de visitantes que irão causar grandes impactos; o acesso será feito por veículos de todos os tipos, entre outras.
A estética proposta por Iñaki Ábalos é a estética da geometria cartesiana, também. Os projetos que apresentou contemplam as técnicas de desenho arquitetônico, porém não possuem interação com os processos naturais e com a biodiversidade. Propõe edifícios com hortas verticais, cemitério vertical e se inspira no modernismo para a criação de edifícios com usos múltiplos.
O fechamento da conferência perguntou “What Next?” (o que depois?). A pergunta foi respondida de formas criativas, em tempo muito reduzido, por 9 profissionais de diferentes áreas de atuação. O consenso foi que o Urbanismo Ecológico deve procurar caminhos nos ecossistemas naturais, nas interelações das paisagens através da interdisciplinaridade, em novas maneiras de realizar “coisas”.
Kongjian Yu foi enfático ao afirmar que o urbanismo que se preocupa com a estética e a inutilidade copia modelos externos de consumo rápido e fácil, é gigantesco, acima das necessidades das pessoas, deforma a cidade e leva à gentrificação. Esse urbanismo tem levado a maioria das grandes cidades do planeta a sofrer com a desertificação, deslizamentos e inundações, poluição de toda sorte, perda de biodiversidade. Clamou que agora é a “hora de mudar!!”. “O urbanismo ecológico é a arte da sobrevivência”. O urbanismo para ser ecológico deve: ser produtivo e funcional; valorizar o simples e reciclar o existente; ser amigável com as inundações renaturalizando os corpos d’água; ajudar a natureza a trabalhar e se recuperar. As cidades devem ter uma infraestrutura ecológica, “ter uma nova estética baseada na natureza e ética ambiental, transformar a desordem e o rústico em estético”.
Uma provocativa exposição de propostas com soluções ecológicas e utópicas em diversas escalas foi montada em conjunto com a conferência. A idéia foi discutir se é possível que o urbanismo venha a ser de fato ecológico e de que maneiras. Drew Gilpin Faust, Presidente de Harvard, deu um conselho “Move from urban sprawl to smart growth” (mude de expansão urbana para crescimento inteligente).
notas
1
Conference “Ecological Urbanism. Alternative and Sustainable Cities of the Future”. Harvard Graduate School of Design of Harvard University, 3-5 abr. 2009 <http://ecologicalurbanism.gsd.harvard.edu/>.
sobre o autor
Cecilia P. Herzog, administradora de empresas e paisagista, mestranda em urbanismo, membro do Núcleo IVE-URB, Infraestrutura Verde e Sustentabilidade Urbana, localizado no Rio de Janeiro, e integrante da OSCIP "Amigos do Parque Nacional da Tijuca".