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architexts ISSN 1809-6298


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português
Leia o artigo de Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima que tem como objetivo de estudar o impacto dos arranha-céus no imaginário dos intelectuais e arquitetos europeus, impacto este registrado em textos

english
Read Adson Lima'a article that intend to study the skyscraper's impacts on intelectuals and architects's imaginary. Those impacts were registered in some of their texts

español
Lea el artículo de Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima que tiene como objetivo estudiar el impacto de los rascacielos en el imaginario de los intelectuales y arquitectos europeos, impacto este registrado en textos


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LIMA, Adson Cristiano Bozzi Ramatis. O fascínio do Novo Mundo:. Arquitetos e intelectuais europeus e os arranha-céus de New York. Arquitextos, São Paulo, ano 10, n. 109.04, Vitruvius, jun. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.109/47>.

1. Introdução

No século XVIII os europeus das classes sociais mais favorecidas faziam o que se chamava, na época, de Grand Tour, que, como o nome indica, era uma viagem. No entanto, não se tratava de uma viagem qualquer, mas de uma viagem de formação, Isto é, associava-se à educação formal e literária um conhecimento empírico que, na maioria das vezes, era clássico, entendendo-se este termo como relativo à Antigüidade Greco-Romana (1). Todavia, no fim do século XIX algo novo, e surpreendente novo, seduziu e fascinou os viajantes europeus; não se tratava mais de procurar uma melancólica fruição estética em antigas ruínas da Grécia e da Itália, mas de se deixar impressionar, tal qual uma película fotográfica, pelas luzes do Novo Mundo.

Se, no século XVIII, as ruínas do antigo fausto de civilizações pretéritas eram difundidas e se faziam conhecer através de pinturas e ilustrações, nos séculos passados os filmes e as fotografias eram os meios responsáveis por despertar a curiosidade e provocar o desejo do deslocamento. Mas no imaginário europeu já não havia mais ruínas para inspirar o talento de algum Piranese, as imagens eram diferentes: saíam de cena anfiteatros e templos e ensaiavam agora o seu papel as construções verticais das cidades norte-americanas, os emblematicamente chamados “arranha-céus”. Hubert Damish, no prefácio de um livro cujo tema central é, justamente, o fascínio dos europeus face a este fenômeno norte-americano apresenta a questão da seguinte maneira:

“O arranha-céu permanece profundamente ligado à América, na sua essência como na sua aparência, apesar de todas as tentativas de transplante, de aclimatação e de hibridação das quais ele foi objeto: em Milão, em Paris, em Frankfurt, ou em Tókio, um edifício alto [immeuble de grande hauteur] seja de concepção americana (como o é a Tour Monparnasse) não é um arranha-céu, mas uma torre”.(2)

Ora, o nosso autor, escrevendo no final do século XX, coloca os limites estritos para toda experiência estética urbana: não basta a presença apenas do elemento, mas da presença do elemento in situ. Dito de outra maneira, se um francês desejar ir além das torres do bairro parisiense Défense deve fazer o seu Grand Tour indo aos Estados Unidos da América. Pode-se, igualmente, depreender da leitura desta citação que esta experiência estética, nascida, como nos ensinam os manuais de História da Arquitetura, na cidade de Chicago, e confirmada pelo bairro nova-iorquino de Manhattam, jamais cessou de seduzir e fascinar os europeus. Cito, novamente, o nosso autor: “(...) é necessário convir que não teria e não haveria como ter arranha-céus senão na América, (...). (3) Façamos as malas, então...

A hipótese levantada pelo nosso autor é facilmente confirmada por uma leitura específica, os “relatos de viagem”, isto é, textos produzidos após uma viagem e que são responsáveis por narrá-la. Não poucos viajantes europeus ― à maneira, é sempre importante lembrar, dos viajantes dos séculos XVIII e XIX ― narraram em texto as peripécias e aventuras das suas viagens aos Estados Unidos da América. Estes textos, que podem, inclusive, ter um caráter ficcional, são determinantes para que possamos apreender o imaginário que os europeus se formaram a partir de uma paisagem urbana tão diferente ― e, sobretudo, que é o que importa determinar, sentida como diferente ― daquela com qual eles estavam habituados. Como foi observado acima, não se trata de perceber um elemento urbano isolado, mas de conhecer o conjunto destes elementos no seu devido contexto. Nas linhas a seguir exporemos a maneira pela qual viajantes europeus, e, mais precisamente, franceses, narraram a sua experiência imediata com os arranha-céus americanos.

Mas estes, como é fácil de concluir, não foram os únicos intelectuais franceses a cruzar o Atlântico em direção ao Novo Mundo; o romancista Ferdinand Céline visitou, igualmente, algumas cidades americanas, e a sua experiência urbana foi decisiva na escritura de, ao menos, um romance, o célebre Voyage au bout de la nuit, publicado pela primeira vez em 1932. Neste texto o protagonista principal, Ferdinand Bardamu, viaja a cidade de Nova York e depois a Detroit, onde trabalha em uma unidade da fábrica Ford. Pela sua denúncia explícita ao nacionalismo e ao capitalismo e pelo fato de sido escrito em um registro de linguagem muito próximo ao oral, o livro causou escândalo e frisson nos meios literários, tendo quase recebido o Prêmio Goncourt (perdeu por apenas dois votos de diferença).

Não foram, no entanto, apenas os romancistas e filósofos a fazer a sua peregrinação aos Estados Unidos da América, os profissionais da arquitetura e do urbanismo o fizeram em quantidade expressiva, e não poucos se deixaram influenciar por sua paisagem urbana. Le Corbusier viajou aos Estados Unidos em 1936 (a bordo do Graf-Zeppelin) e deixou as suas impressões registradas no livro Quand les cathédrales étaient blanches ― voyage au pays des timides (4). E foi justamente neste texto que o arquiteto franco-suíço narra a polêmica entrevista na qual ele afirmou serem os arranha-céus de New York “pequenos demais”.

Os supracitados textos destes autores, um romancista e um arquiteto, compõem um corpus significativo o suficiente para o estudo da apreensão por parte dos europeus e, como já foi dito, estamo-nos referindo aos franceses deste fenômeno estético particular, e, a julgar pelo que afirmou Hubert Damish, particularmente norte-americano. Seria importante, igualmente, verificar se as diferentes perspectivas profissionais aludidas na frase anterior teriam moldado as suas impressões de viagem. Se é um tanto óbvio que a apreensão de Le Corbusier foi a de um arquiteto, esta questão não está tão claro no que se refere a Céline.

2. Método: imagologia e literatura comparada

Como se está propondo o estudo de textos, é importante deixar claro as especificidades literárias de cada um deles. O texto de Céline é um “romance autobiográfico” narrado na 1ª pessoa do singular, e isto deixa claro seu caráter ficcional. Já o texto de Le Corbusier, ao menos nos capítulos dedicados à viagem aos Estados Unidos da América, é autobiográfico, no qual um profissional da arquitetura faz uma crítica tanto à arquitetura norte-americana quanto ao seu modelo de cidade. Além disto, há a questão da recepção dos textos, que é diferente pelas suas próprias diferenças internas ― Céline fazia literatura enquanto Le Corbusier escrevia mais um manifesto. Assim, deve-se reconhecer que o leitor de um manifesto em arquitetura coloca-se em uma perspectiva bastante diversa daquele que lê um romance, posto que são escrituras diferentes com regras próprias. E Le Corbusier escrevia para um público de profissionais que, de alguma maneira e em níveis diferentes, tinha um envolvimento com a arquitetura e o urbanismo. Como se pode perceber, os dois textos apresentam as suas especificidades próprias a todo texto, mas há um fator determinante que os aproxima: ambos podem ser compreendidos desde a rubrica de “relatos de viagem”.

Posto isto, faz-se necessário acrescentar que há toda uma tradição na Crítica Literária de estudos de “narrativas de viagem”, e, mais especificamente, o olhar de um viajante sobre uma paisagem que lhe é estrangeira. A sub-área da Literatura Comparada, denominada Imagologia, é justamente o campo de atuação que desvenda e apreende este olhar. É o que afirma Daniel-Henri Pageaux (5), a respeito da importância dos textos literários na reconstituição dos componentes de uma dada sociedade:

“Multiplicando este gênero de interrogações, é possível, para o comparatista, de reconstituir, a partir unicamente de textos literários, um verdadeiro quadro, mais ou menos sincrônico, das opiniões, das atitudes mentais de uma época, de uma sociedade: é o que nós já anunciamos assinalando que a imagem do estrangeiro, estudada sob um certo ângulo era um potente desvelador das opções, isto é, das clivagens que atravessam e estruturam uma sociedade em um dado momento”. (6)

Esta citação é importante porque acentua a importância de textos literários para o estudo de questões que não são nem da Poética nem da Retórica, mas do domínio da História e das Ciências Sociais. Ora, o que pensa um dado segmento de certa sociedade tem que se cristalizar em algum meio, e, muitas vezes, este meio é textual: cartas pessoais, processos jurídicos, manuais escolares e reportagens jornalísticas, certamente, mas igualmente romances, contos e poemas. É a sobrevivência e a persistência no tempo deste conjunto de textos que nos permitem apreender modos de vida, hábitos e costumes que já não existem mais. É o que propomos realizar neste artigo, estudar a apreensão, por parte de viajantes estrangeiros, de elementos urbanos que lhes são estranhos, posto que não existem em seu meio urbano de origem. Neste sentido, e a partir do que expusemos, é tão pertinente o estudo de textos realizados por profissionais da arquitetura ―neste caso Le Corbusier quanto daqueles produzidos por romancistas. Trata-se, na realidade, de compor um quadro um pouco mais amplo e mais variado, e dir-se-ia mesmo heteróclito, uma vez que, como já foi aqui escrito, são evocadas diferentes representações: romance autobiográfico e manifesto arquitetônico.

No entanto, o tema não se esgota na apreensão do outro, mas, como observa Daniel-Henri Pageaux, há uma espécie de contra-movimento: “Não há dúvidas de que a imagem do estrangeiro pode dizer igualmente da cultura de origem (o país espectador [pays regardant no original] para retomar uma categoria cara à literatura comparada), naquilo que às vezes é difícil de conceber, de exprimir, de articular e de confessar.” (7) Isto significa, para além do mais óbvio, que seria a simples afirmação que todo olhar comporta uma ideologia, ou melhor, que é ele mesmo conformado por uma ideologia, que não se pode compreender uma cultura estrangeira senão a partir da sua própria cultura, limite instransponível de todo pensamento; ou, em uma admirável fórmula do nosso autor: “Eu quero dizer o Outro (e, freqüentemente, por complexas e imperiosas razões) e em dizendo o Outro eu o nego e me digo eu mesmo.” (8)

Como se sabe, todo método implica uma clivagem, na medida mesmo em que se escolhe um caminho em detrimento de todos os demais, e é interessante a clivagem proposta por Pageaux: “Do conjunto dos testemunhos sobre o estrangeiro, isolemos os textos que puderam reagir ou simplesmente confortar uma opinião sobre o estrangeiro, aqueles que puderam formar uma atitude mental ou aqueles que se limitaram a reproduzir uma imagem já identificada do estrangeiro.” (9) O autor determina algumas opções possíveis para o pesquisador em Imagologia: há os textos que reagem a uma opinião sobre o estrangeiro, aqueles que confortam esta opinião, outros que a inauguram, e, finalmente, os textos que reproduzem esta opinião. No entanto, torna-se extremamente difícil buscar o texto inaugural, uma vez que seria um estudo de ordem genealógica: qual foi o texto ― ou o conjunto de textos ― que iniciou uma tradição ideológica que acabou por conformar uma imagem sobre o outro? Mais factível seria buscar na repetição de idéias, de imagens e de expressões lexicais o fluxo constante de uma tradição que não está já formada, mas que se forma continuamente na medida em que cada repetição é um ato de diferença. Esta última asserção encontra a sua justificativa no simples fato de que, apesar de o inelutável fato de todo escritor encontrar uma estrutura cultural já preparada por sua sociedade, não se deve jamais desprezar o individual, isto é, o singular. Ora, sabe-se que os termos “Escola” ou “Movimento” subsumem, na realidade, um conjunto em nada homogêneo de criadores e de criaturas.

Neste sentido, procuramos em nosso corpus discernir as imagens sobre os arranha-céus americanos na medida em que elas se repetem, sem, no entanto, nos preocuparmos com a sua originalidade. E é justamente na medida em que elas se repetem ― e se repetem não apenas porque isto é socialmente aceitável, mas também porque esta é uma estratégia do escritor face ao seu público receptor ―, que se pode dizer que há uma imagem cristalizada sobre o estrangeiro, como uma espécie de pano de fundo a partir do qual se pode pensar, se espantar e enunciar. Ou, pelo prisma da Antropologia: “Pensar por antecipação o Selvagem era erigi-lo em protótipo, ou, mais exatamente, em um arquétipo suscetível de permitir uma avaliação visual (mental) procedente de um julgamento de conformidade ou de não-conformidade, com o modelo fabricado aqui mesmo, em todo caso antes do encontro”. (10) Dito de outra maneira, o espanto diante do outro, seja um ameríndio ou uma paisagem urbana, tem boa parte de premeditação...

Ora, se os nativos do continente americano foram compreendidos, isto é, interpretados, como “bons selvagens” pelo público europeu, isto se deveu ao já aludido “filtro cultural”: era uma possibilidade, entre outras, para pensá-los. É a partir desta ótica que devemos compreender a irônica frase de Koolhaas: “Os arranha-céus de Manhattan são os índios de Le Corbusier” (11). Esta provocativa asserção tem o mérito de mostrar que a compreensão do outro não se dá senão a partir de uma realidade já existente e já conhecida: Le Corbusier certamente já conhecia a paisagem urbana de Manhattam, mas só podia conhecê-la a partir da sua própria cultura urbana. Nas páginas a seguir abordaremos o tema central deste artigo, a saber, a reação de espanto ─ um espanto “premeditado” e “calculado”, certamente ─ de dois europeus face aos arranha-céus de Manhattam, sempre tendo em mente as questões elencadas e discutidas neste sub-capítulo.

3. New York, cidade vertical

Em um livro publicado pela primeira vez no ano de 1936, Le Corbusier assim definiu a sua impressão que teria experimento ao conhecer a grande metrópole norte-americana: “New York é uma cidade em pé [debout no original], sob o signo dos tempos novos.” (12) Ou, ainda: “Eu não  posso esquecer New-York, cidade em pé, porque eu tive a felicidade de vê-la lá, erguida no céu.” (13) Mesmo que os arranha-céus de Manhattam não tenham sido nominados nestas frases, mas penas aludidos, fica claro que são eles que formam a paisagem que parece ter impressionado tanto o arquiteto franco-suíço, uma vez que são eles os responsáveis por fazer com que a cidade seja percebida como “erguida no céu”. Estas frases confirmam, de alguma maneira, o provocativo estudo de Koolhaas que foi, intitulado, muito propriamente, Delirius New York. Ao chegar em Manhattan, o arquiteto franco-suíço já havia visto esta “cidade erguida” a partir das suas imagens icônicas, e aludimos aqui aos inúmeros filmes e fotografia difundidos pelos meios de comunicação de massa. Ora, se os arranha-céus norte-americanos não eram, no imaginário de Le Corbusier, os “bons selvagens” aos quais se fez referência no sub-capítulo anterior, eram, ainda, selvagens que deveriam ser devidamente “civilizados”. Ora, não foi isto o que pretendia a cité redieuse e os seus arranha-céus cartesianos? Uma Manhattan domesticada e “mais ao gosto europeu”?

Mas deve-se insistir em um ponto: as críticas corbusianas ao modelo de cidade da metrópole norte-americana só foi possível devido ao seu conhecimento prévio através das imagens icônicas. No que se refere à difusão dos arranha-céus pelos filmes, muitos exemplos poderiam, à guisa de ilustração, serem elencados: a vista noturna de New York em Lights of New York, de 1928, o Empire State Bulding que ganha acentos dramáticos em King Kong, de 1933. E há, evidentemente, as acrobáticas cenas de Harold Lloyd sobre os arranha-céus nos seus filmes dos anos 1920, e que marcaram toda uma geração de cinéficos, nos Estados Unidos da América como no resto do mundo (14). A lista apresentada não pretende ser exaustiva, mas apenas indicar a difusão que a paisagem norte-americana conheceu a partir das imagens criadas pelos diretores de Hollywood.

Feitas estas considerações, já se pode apresentar um outro caso específico de encontro com a alteridade, que aqui significa, mais especificamente, a descoberta da paisagem urbana de Manhattan por um europeu. No romance de Céline, o já citado Voyage au Bout de la nuit, encontra-se uma designação semelhante àquela emitida por Le Corbusier, anunciada pelo protagonista (15): “Imaginem que era em pé [debout no original] a cidade deles, absolutamente reta. New York é uma cidade em pé.” (16) Não se trata de uma simples coincidência, mas de um fenômeno relativamente comum: uma vez que ambos os viajantes pertencem ao mesmo ambiente cultural ― a cultura clássica francesa ― e a mesma época ― os anos 1930 ―, os “filtros” a partir da qual a paisagem urbana norte-americana é “purificada”, isto é, compreendida e assimilada, são semelhantes. Volta-se, então, à questão apresentada no capítulo anterior, isto é, assimila-se o desconhecido pelo que já é conhecido. E se esta asserção é correta, qual seria o já era conhecido pelos dois viajantes? Isto é, o que teria moldado a sua visão para apresentar a cidade de New York como estando “em pé”? Ora, a única realidade possível neste caso é a cidade européia... (17) A julgar por Damisch as cidades européias não possuem ― e nem podem possuir ― arranha-céus; são, então, “cidades horizontais”, ou, ainda, “cidades deitadas”.

Pode-se afirmar, ainda, que estamos diante de uma imagem que se repete e que é veiculada através de textos. Ou, como afirmou Pageaux: reproduz-se “uma imagem já identificada do estrangeiro”, que é, neste caso, os arranha-céus de New York. Isto significa que os viajantes já conheciam a dimensão vertical das cidades norte-americanas, como nos assevera Jean-Louis Cohen:

“O tema da construção em altura, se é tão constante quanto evidente até mesmo além dos meios profissionais da construção, entre os viajantes e os leitores da imprensa popular, está bem longe de ser único. Em todos os processos de idealização ou de modelização, as imagens desempenham um papel principal, a tal ponto que a descoberta da América moderna pareceria ter sido realizada não pela fotografia, mas pela sua difusão”. (18)

Se a voga estética chamada chinoiserie foi difundida na Europa por artífices os mais variados, em um movimento que alimentava a si mesmo, na medida em um produto era a publicidade de si e do movimento estético que encarnava, a americomania (19) foi difundida a partir dos meios de comunicação de massa, entendendo esta expressão, no contexto do fim do século XIX e no início do século passado, como a imprensa popular ilustrada e, naturalmente, o cinema. Compreende-se, então, como o termo “cidade em pé”, usado para definir o bairro de Manhatam em New York, pôde ser encontrado em dois diferentes textos: a imagem física cria e difunde a imagem mental, e esta, por sua vez, continua como texto a tarefa da reprodução.

À guisa de conclusão (20) pode-se retomar a questão do espanto anunciada no sub-capítulo dedicado ao método. Afirmou-se, então, que todo espanto diante de uma dada realidade tem um grau de premeditação, uma vez que cada conhecimento é, em boa parte, um reconhecimento. Tanto no romance de Céline quanto no texto de Le Corbusier encontra-se o espanto e a surpresa diante dos arranha-céus de New York:

“Para uma surpresa, foi uma. Era tão espantoso o que se descobria de repente através da bruma que nós nos recusamos inicialmente a acreditar, e depois quando estivemos de cara com aquilo, todos os viajantes que nós éramos começamos a rir, vendo aquilo, direto na nossa frente”. (21)

A personagem, diante de uma paisagem urbana inexistente na Europa, tem um misto de surpresa e de riso. Esta reação, segundo o crítico literário francês David Ravet, deve ser compreendida a partir do “mito americano” que gerações inteiras de europeus se formaram, que é aquele do “progresso” e da “modernidade”, antípodas da marca da perenidade e da tradição européias. O espanto e a surpresa, assim como o riso, enfatizam este mito ─ uma cidade “moderna”, com os seus arranha-céus que são a marca do “progresso” ─ e, ao mesmo tempo, o confrontam: por que rir, se a reação mais esperável seria a admiração? Não se deve esquecer que o romance de Céline, que é muitas vezes compreendido como uma triste ode a denunciar a civilização ocidental e o capitalismo industrial, nada tem de apologético em relação ao país norte-americano. De qualquer sorte, é sempre oportuno lembrar como, neste caso, a cidade encarnou um país, a sua economia e a sua cultura.

Um outro europeu, mas desta feita um personagem “de carne e osso”, Le Corbusier, e a sua maneira, também demonstra espanto diante daquelas imagens as quais, e é sempre importante repetir, ele já conhecia (22): “A América não é pouca coisa! Face ao velho continente ela instalou, há vinte anos, a escala de Jacob dos tempos novos. Um choque na barriga na qual se encaixa um furacão.” (23)

No seu estilo hiperbólico de hábito, o arquiteto franco-suíço manifesta a sua surpresa e o seu choque pela escala titânica das cidades e das construções norte-americanas. O que ele havia tentado fazer sem lograr sucesso na Europa, isto é, inscrever o seu modelo de cidade em altura, “radiosa” ou não, os arquitetos norte-americanos realizavam sem que isto lhes custasse muito. Mas, como se sabe, se Le Corbusier, diante de Manhattan, não deu risadas como Bardamu, não deixou, no entanto, de manifestar a sua discordância: “Eles são pequenos demais”... Esta frase, dita em uma entrevista concedida aos jornalistas norte-americanos e publicada no New York Times Magazine, torna evidente a sua reação, um misto de admiração e desencanto por uma cidade “em pé” que não era “radiosa”.  

Mas é oportuno que se pergunte pelo motivo que teria levado a esta atitude, tanto da personagem de Céline quanto de Le Corbusier. A resposta a esta questão já está colocada desde o princípio: quando se fez referência ao mesmo “filtro” cultural que ambos partilhariam, implicitamente denominaram-se cidades e arquitetura. Foi a experiência urbana do Velho Mundo, com as cidades que Sartre denominou de “cidades-museu” (24), que forjou tanto a surpresa de Ferdinand Bardamu quanto o choque de Le Corbusier, assim como o termo “cidade em pé”. Ora, para quem se acostumou a deambular em ruas que margeiam canais, entre ruínas romanas e catedrais góticas, sobre pontes cujas pedras foram talhadas há mais de cinco séculos, a paisagem urbana de Manhattam só poderia ser conhecida sob o signo da alteridade: cidades novas, selvagens e incultas e as suas “construções em desordem”.

Para concluir, convém ressaltar que estes textos reproduzem e difundem uma imagem, os arranha-céus de Manhattan, na medida mesmo em que reagem a esta, seja pela ironia do “pequeno demais” seja pelo riso face a uma realidade julgada talvez grotesca, e, certamente, extravagante. Neste sentido, pode-se afirmar, retomando a fórmula de Pageaux, que tanto Bardamu quanto Le Corbuser disseram o outro pela surpresa e pelo choque, e como um viajante à beira de um abismo, recuaram e negaram-no pela ironia e pelo riso, e, ao menos quanto a Le Corbusier, dizendo ele mesmo: a cité radieuse.

notas

Fonte das imagens:Cohen, Jean-Louis. Scènes de la vie futur: l’architecture européenne et la tentation de l’Amérique 1893-1960. Paris: Flammarion/Centre Canadien de l’Architecture, 1995

1
“Do século XVI ao XIX, a idade de ouro das viagens, nos caminhos da Europa, não só se encontram os ‘pícaros’ levados pela fome, mas também todos os que foram impelidos pela sede de aprender e contemplar as maravilhas da Antigüidade. Roma é a terra prometida dos humanistas que não tiveram a sorte de nascer italianos: Rabelais e Du Bellay para lá se dirigem com um entusiasmo religioso; Montagne com curiosidade; depois vários poetas da primeira metade do século XVII – Saint-Amant, Maynrd, Sacrrón –, sem falar de Tallemant des Réaux e do futuro Cardeal de Retz.” BRUNEL, P., PICHOIS C., ROUSSEAU, A. M.. O que é literatura comparada? São Paulo: Perspectiva, 1995.

2
Prefácio ao livro de Jean-Louis Cohen, Scènes de la vie futur: l’architecture européenne et la tentation de l’Amérique 1893-1960. Paris: Flammarion/Centre Canadien de l’Architecture, 1995, p. 11. Tradução nossa do Francês para o Português.

3
Ibidem
.

4
Trata-se de experiências sensoriais diferentes, comtemplar a paisagem urbana de Manhattam desde o porto ou a partir de um zepelin, mas deseja-se enfatizar que, ao menos neste caso, o efeito é o mesmo, o espanto e a surpresa.

5
Professor da Paris III – Nouvelle Sorbonne.

6
PAGEAUX, Henri-Daniel. Recherche sur l’imagologia: da História Cultural à Poética. Em: Revista de Filología Francesa. Madrid: Universidade Complutense, 1995, p. 138. Tradução nossa do Francês para o Português.

7
Ibidem
, p. 140.

8
Ibidem
, p. 141.

9
Ibidem
, p. 139.

10
LENCLUD, Gerard. Quand voir, c’est reconnaître: les récits de voyage et le regard antropologique. Em: Terrains de l’enquête, nº 01, Marselha; Editions Parenthèses. Tradução nossa do Francês para o Português.

11
KOOLHAAS, Rem. Delierio de Nuova York. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2006, p. 266

12
LE CORBUSIER. Quand les cathédrales étaient blanches. Paris: Plon, 1936, p. 51. Tradução nossa do Francês para o Português.

13
Ibidem
, p. 54.

14
Retiram-se estes exemplos do seguinte livro: RAMIREZ, Juan Antonio. Architecture for the screen; a critical study of set design in Hollywood golden age. Carolina do Norte: 2004.

15
É sempre complicado comparar um autor de um texto não-ficcional com uma personagem literária de um texto ficcional, no entanto, ambos fazem parte do mesmo ambiente cultural, posto que a personagem é uma criação de um escritor que também participa deste ambiente.

16
CELINE, Ferdinand. Voyage au bout de la nuit. Paris: Gallimard, 1970, p. 186. Tradução nossa do Francês para o Português.

17
Referindo-se ao romance de Céline o crítico literário francês David Ravet afirma: “A cidade [New York] é percebida em oposição às cidades da Europa por sua espacialidade em altura. Este contraste espacial se inscreve em um sistema metafórico que associa uma cidade à posição de uma mulher face ao desejo masculino. (...) New York aparece como uma cidade de repulsa ao desejo, como oposta a uma cidade e de uma mulher sedutora”. Tradução nossa do Francês para o Português. RAVET, David. New York chez Céline et Hopper: une esthétique de la démythification du rêve américain. In: Astrolabe, nº 2, Junho de 2006.

18
COHEN, Jean-Louis. Scènes de la vie futur: l’architecture européenne et la tentation de l’Amérique 1893-1960. Paris: Flammarion/Centre Canadien de l’Architecture, 1995, p. 16. Tradução nossa do Francês para o Português.

19
Ibidem
.

20
Este texto é um work in progress, sendo o primeiro desenvolvimento da tese de doutoramento que desenvolvemos na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).

21
CELINE, Ferdinand. Op. cit., p. 186. Tradução nossa do Francês para o Português.

22
Um outro grande viajante, o filósofo francês Jean-Paul Sartre, por exemplo, conhecia os arranha-céus de New York não apenas através dos filmes, mas, igualmente, pela literatura: “Céline dizia de New York: ‘É uma cidade vertical’.” Tradução nossa do Francês para o Português. New York ville coloniale, Villes d’Amérique. Paris: Editions du Patrimoine, 2000, p. 35.

23
LE CORBUSIER. Op. cit., p. 59. Tradução nossa do Francês para o Português.

24
SARTRE, Jean-Paul. New York ville coloniale, Villes d’Amérique. Paris: Editions du Patrimoine, 2000.

bibliografia complementar

LIMA, Adson Cristiano Bozzi Ramatis. Sartre na América ou memórias de umbourgeois épaté. Em: Cadernos de Arquitetura e Urbanismo― PUC, Belo Horizonte: PUCMG, 2006.

sobre o autor

Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima, arquiteto graduado pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Mestre Em Estudos Literários pela UFES, Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Professor Assistente do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Maringá, autor do livro Arquitessitura: três ensaios transitando entre a Filosofia, a Literatura e a Arquitetura.

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