Introdução
A pesquisa original, que dá origem ao presente artigo, objetivou esclarecer a relação histórica entre as realizações do campo profissional e o ensino de Arquitetura no Brasil e buscar a resposta para a questão de reproduzir-se, recorrentemente, a idéia de uma relação frágil entre ambos, parecendo o ensino sempre defasado em relação às demandas do mercado profissional (1). Abordou-se o desenvolvimento dos projetos acadêmicos ao longo do período estudado, elegendo-se o Projeto de Diplomação como o produto mais típico do ensino, por emular expectativas relativas à disciplina arquitetural, aos requisitos acadêmicos para sua aprovação e, ainda, às possibilidades reais ou imaginárias de inserção do egresso no mercado de trabalho.
Foram analisados projetos de diplomação elaborados por estudantes entre 1966 e 1996, anos de efetiva vigência das disposições dos “Currículos Mínimos”, substituído pelas “Diretrizes Curriculares” em 1994. Também foram comparados os diversos Planos de Ensino da Disciplina e entrevistados arquitetos formados pela UFRGS, do mesmo intervalo de tempo, cujas informações e depoimentos subsidiam diversos conteúdos da pesquisa.
Desenvolvimento da Disciplina do Projeto de Diplomação
A disciplina de "Projeto de Diplomação" é um instrumento introduzido pioneiramente pela Faculdade de Arquitetura da UFRGS, em sua reforma de ensino de 1962. Na proposta, este projeto é chamado de "trabalho-tese", numa equiparação ao sistema de avaliação individual final de então em outras áreas acadêmicas. (2)
Examinando Planos de Ensino e entrevistando arquitetos formados no período, pode-se perceber que, na primeira década de sua efetiva vigência, 1966 a 1976, a disciplina incentiva a autodeterminaçãodo estudante. De acordo com o Programa de Ensino de 1966, fora criada para ser “a síntese final do conhecimento e capacidade adquiridos e desenvolvidos durante o curso, tem por finalidade possibilitar a verificação da aptidão integral do estudante para o trato de problemas da arquitetura e estabelecer a transição para a vida profissional”. O tema de projeto é proposto pelo aluno, que deve caracterizá-lo e justificar sua escolha, definindo o grau de detalhamento que atingiria e um plano de trabalho individual, considerando a exigência da disciplina de que supere, em complexidade funcional, aos temas tratados nas disciplinas de projeto anteriores.
Esta orientação está de acordo com a pedagogia da arquitetura moderna, que considerava a liberdade de criação como peculiar à atividade artística e condição para definição de autoria no trabalho do arquiteto (3). Mas, principalmente, o desenvolvimento do trabalho emula uma situação profissional. Em contraste com as disciplinas de projeto anteriores, em que haveria “assessoria e orientação constante por parte dos professores”, neste “deixa de existir a figura do professor orientador, sendo o trabalho de inteira responsabilidade e compromisso do aluno”. O acompanhamento periódico pelo Coordenador da Disciplina, principalmente quando a freqüência ao ateliê começa a rarear a princípios dos anos de 1970, é percebido como necessário para comprovar o cumprimento do cronograma e também a autenticidade da autoria do trabalho. Quando constata que o projeto já está solucionado, encaminha-o para uma “Orientação Final”, submetendo-o à crítica da “Comissão Julgadora”. A apresentação final frequentemente assume a forma de enfrentamento: o projeto deve ser defendido individualmente perante a mesma Comissão, podendo o aluno optar por sua apresentação oral antes do questionamento. (4)
Entre 1977 e 1980 transcorre uma etapa que se identificou como de transição à orientação individualizada. A disciplina acolhe um contingente discente mais numeroso e heterogêneo socialmente, conseqüência da ampliação de vagas das Universidades Públicas e implantação do Vestibular Unificado através da Reforma Universitária de 1968. Ocorre o abandono gradativo da prática de desenvolvimento de exercícios nos ateliês da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, devido à sobreposição de turmas de graduação nestes espaços e, conforme testemunho de professores da época, também há uma possível perda de qualidade dos projetos acadêmicos.
Os Programas de Ensino da disciplina procuram incorporam dispositivos que estabelecem, expressamente, um acompanhamento mais sistemático por parte do professor orientador e a obrigatoriedade de freqüência pelo menos semanal ao ateliê. São padronizadas etapas de trabalho e expressos detalhadamente os elementos que devem constar nas entregas correspondentes a cada etapa. Também é criada uma apresentação intermediária do projeto em desenvolvimento perante a "Comissão de Avaliação", ocorrendo então duas chamadas "entrevistas pessoais" durante o semestre, uma delas ainda antes da entrega final, além dos encontros regulares com o orientador.
Pode-se perceber certo desconforto diante da necessidade de maior controle dos processos e pela conseqüente e possível interferência no processo criativo: no Plano de Ensino do 1º semestre de 1978 define-se o expresso papel de “conselheiro” ao professor orientador, a quem o estudante deveria manter informado sobre o andamento do trabalho e suas eventuais modificações.
De 1981 a 1991, há um processo de consolidação da orientação crítica individualizada, na qual os professores da disciplina atuam como os orientadores oficiais e constituem também a Comissão de Avaliação. Já se admite a co-orientadores externos à disciplina, provavelmente por demanda dos estudantes, que parecem manter então mais afinidade com o plantel de professores jovens que ingressam na instituição na década de 1980. Em 1984 se inclui uma terceira entrevista individual, ao final do semestre, e, em 1988, as entrevistas intermediária e final se transformam em sessões de apresentação e crítica abertas a todos os estudantes matriculados na disciplina, os chamados painéis.
A prática de discussão do trabalho dos estudantes através do método do painel já ocorria desde meados da década de 1980 nos demais ateliês de projeto, como parte da mudança do paradigma educacional exercitado por aqueles professores mais jovens e mais atualizados. Há, de parte destes, uma clara determinação em definir-se a arquitetura como uma Disciplina, ou seja, um corpo de conhecimentos e métodos de projeto sistemáticos e transmitidos através de processos pedagógicos explícitos, em antítese à idéia de criatividade inata. E em definir-se critérios de avaliação mais objetivos, cuja exposição se oportuniza durante as sessões abertas de apresentação e crítica dos trabalhos acadêmicos.
Entre 1991 e 1996 entra-se em uma etapa de transição ao TFG, quando ocorre a completa renovação do plantel docente da disciplina, dada através da gradativa aposentadoria dos professores mais antigos. Imediatamente se elaboram e adotam novas orientações e procedimentos na disciplina, cujo programa passa a ser bastante detalhado. As apresentações intermediária e final se tornam públicas, ou seja, abertas a todos os interessados. Os programas da disciplina desta etapa mostram que aumenta o grau de exigência sobre a capacidade teórico-reflexivo dos estudantes, e, ainda, sobre a expressividade gráfica dos trabalhos, que devem adequar-se aos fins de exposição pública.
As questões divergentes entre estas gerações de professores ficariam claras no plano da disciplina de 1991, ano em que seria, ainda, regida pelo último professor remanescente da equipe “histórica”, que se aposentaria logo depois. O Plano da Disciplina, assinado por este professor, apresenta uma extensa introdução, em que discorre sobre suas próprias idéias a respeito da educação de arquitetos:
“A educação consiste em cultivar a inteligencia, não é verdade? Há inteligencia quando não se tem medo. (...) Quando se tem medo, sempre a tendencia [é] imitar. Já notaram? Pessoas que tem medo imitam a outras, se apegam à tradição, aos pais, às esposas, aos irmãos, aos maridos. E a imitação destrói a iniciativa própria. (...) Isto é muito importante — tentar transmitir o significado daquilo que se vê, e não meramente copiá-lo, pois neste caso começa a despertar o processo criativo (5). E, para isto, é necessário ter a mente livre, ter uma mente que não esteja endividada com o peso da tradição, da imitação. (...) Vocês necessitam insistir em ter o tipo de educação que estimule o livre pensamento sem medo, que ajude a inquirir, a compreender; vocês devem exigí-lo de seus professores.”
O texto expressa a natureza das divergências existente entre os professores “modernos” e os “pós-modernos”, como eram então identificados superficialmente pelos estudantes, e que correspondiam, respectivamente, à antiga e à nova geração de professores. O tom exortativo expressa que, para os professores “antigos/modernos”, a batalha já estava perdida.
A experiência de orientação crítica individual, porém socializada através de painéis críticos públicos e que requeriam a construção de um corpo teórico mais sólido por parte de estudantes e professores, está completamente consolidada em 1994. Um conceito bastante similar à que criou a disciplina de “Projeto de Diplomação” da FA-UFRGS é incorporado pelo MEC às novas Diretrizes Curriculares, neste ano, e que passam a vigorar a partir de 1996. Estas determinam, entre outras coisas, a criação de um mesmo e único instrumento de avaliação final, o TFG, para fins de obtenção do grau de arquiteto em todas as Faculdades, Escolas e Cursos de Arquitetura existentes no país.
Os Projetos de Diplomação
Para os fins deste artigo, destaca-se algumas das categorias utilizadas na análise dos projetos finais de graduação elaborados entre 1966 e 1996, no período de efetiva vigência dos “Currículos Mínimos”.
Temas, programas e perspectivas formais de Projeto
Considerando os temas escolhidos para o projeto de graduação, pode-se concluir pela continuidade de algumas propostas ao longo do tempo. Como as que buscam a reabilitação ou integração de áreas marginadas no processo de desenvolvimento urbano. No caso da cidade de Porto Alegre, em geral, estas são as áreas remanescentes de aterros e grandes obras de infra-estrutura urbana que ocorreram nas décadas de 1960 e 1970, respectivamente.
Também é freqüente a busca de inovação, seja de caráter programático, técnico-construtivo ou de linguagem, principalmente nas três primeiras etapas da disciplina (de 1962 a 1991). Algumas propostas de novos programas desenvolvidas no interior da FA-UFRGS chegam mesmo a ser concretamente implementadas, como a dos Centros Sociais Urbanos na década de 70. Há um intercambio intenso entre as instâncias acadêmicas e o poder público nesta época, em que a expansão do sistema geral de planejamento emprega recursos humanos provenientes dos quadros universitários. Grande parte das propostas de inovação tecnológica ocorre também neste período; estas se referem quase exclusivamente à concepção de sistemas de pré-fabricação, podendo formar parte deste mesmo esforço em contribuir para solução dos problemas ao desenvolvimento nacional então projetado.
Lembremos que a década dos 70 foi a de consolidação do Regime Militar, que empregou métodos coercitivos a fim de garantir a ordem e prevenir a sublevação popular, processo que atingiu alunos e professores da FA-UFRGS e de outros cursos do País e a sociedade civil de modo geral. Os fatos políticos, porém, não impediram a categoria de continuar colaborando com o governo militar, empenhado em grandes projetos de desenvolvimento, mostrando o sentimento que parece permear estas linhas de continuidade: uma atitude tributária do desejo de afirmação social que secundou o surgimento da profissão no Brasil, um habitus, como diria Bourdieu (1992) (6), que parece definir que o importante é que a Arquitetura realize sua vocação progressista, seja qual for o contexto.
As inovações na linguagem arquitetônica, ao contrário, parecem ser fruto de embates internos ao campo e aparecem mais tardiamente. Com um alto poder hegemônico no princípio do período estudado, a Arquitetura Moderna fornece os argumentos plásticos pelos quais se pautam os projetos acadêmicos até meados dos anos 70. Sinais de ruptura aparecem mais frequentemente em projetos de diplomação realizados a partir de 1980, em que se retomam princípios de composição clássica, como a hierarquia, simetria e ritmo e o esquema “base-corpo-coroamento” ou, ainda, se fazem referências à arquitetura vernácula. Estes referências são acompanhadas, em seguida, pela citação mais ou menos explícita à determinada obra ou arquiteto, numa clara menção a nova etapa da disciplina do Trabalho de Diplomação que, mais do que a originalidade, se pauta pela emulação de exemplos paradigmáticos e bem sucedidos, atitude predominante nos anos 90.
Perspectivas funcionais
Ao longo de todo o período persistem alguns elementos da teoria funcionalista nos projetos analisados, principalmente o da aceitação de uma correspondência direta entre um objeto arquitetônico e sua função. Num exercício acadêmico de 1976, um Hospital Geral nas imediações de Porto Alegre, as plantas baixas mobiliadas e equipadas chegam a chamar-se de “diagrama de fluxos”. Mas o exemplo do que seria quase uma expressão literal do fluxograma ou do diagrama funcional nos oferece um trabalho de 1969, uma Escola para Surdos em Porto Alegre (figs. 2 e 3).
Progressivamente surgem espaços que flexibilizam o programa proposto e, a partir de meados dos anos 70, se começam a desenvolver partidos mais abertos, que enfatizam espaços integradores ou de “encontro” – possível reação ao clima político de repressão da época. Um dos trabalhos de 1977 pode sintetizar, simbolicamente, as condições ambivalentes nas quais então se desenvolvia a arquitetura: um Centro Administrativo Municipal para a cidade de Campo Bom/RS, programa que correspondia à realidade da expansão do Estado brasileiro e favorecia o desenvolvimento de programas monumentais. Os volumes arquitetônicos do conjunto são reunidos por uma grande plataforma elevada ao gosto moderno, mas cuja forma remete a um anfiteatro central, palco de possíveis manifestações populares (fig. 1). O Plano de Ensino da disciplina deste ano define claramente um dos itens de avaliação: que “a solução formal” seja “coerente com a natureza da edificação do espaço proposto”.
A partir de fins dos anos 70 os espaços propostos já não aparecem tão estritamente destinados à realização de determinadas funções, mas sim concebidos como cenários da ação humana. Aparecem espaços de significado polissêmico, às vezes configurados ao modo de ruas/praças urbanas, internas ou externas, que articulam os diversos elementos do programa, como o do Terminal de Transporte Urbano proposta para Região Metropolitana de Porto Alegre, de 1984 (fig. 12). Esta tendência se confirma pela progressiva substituição dos programas unifuncionais, como temas do trabalho de diplomação, por programas com previsão de funções e atividades complementares. Também de forma crescente se propõem temas de conjuntos multifuncionais, frequentemente solucionados como blocos individuais unidos por uma pauta comum, como exemplificado pelo projeto de um Centro Esportivo para o Colégio Padre Anchieta, em Porto Alegre, de 1966 (fig. 4).
Projetos típicos
Na etapa de autodeterminação do estudante (1966 a 1976), as propostas constituem produtos e elementos gráficos bastante heterogêneos, ainda que coincidentes em outros aspectos. Como na preeminência da função: os programas correspondem a esquemas funcionais bem definidos e mínimos, que produzem objetos de uso controlado e específico. As propostas, em grande parte dos casos, contam com situações futuras de implantação ou modificação do contexto imediato, mas apenas fazem menção aos espaços exteriores, que não são detalhados.
As formas destas primeiras propostas sublinham o valor estático dos edifícios, mesmo quando usam linhas diagonais ou planos que se interceptam em ângulos diferentes de 90º. São repetidas soluções da arquitetura moderna brasileira, bastante influenciada pelo chamado "Brutalismo Paulista". As composições são compactas ou são percebidas como volumes únicos, e buscam efeitos monumentais. Temos o exemplo do projeto proposto para o Centro de Processamento de Dados do Complexo Portuário de Rio Grande/RS, de 1972, que se integra às metas do II Plano Nacional de Desenvolvimento e trata de uma inovação tecnológica apenas introduzida no Brasil (figs. 5 e 6).
Na segunda etapa, de transição para o sistema de orientação individualizada (1977 a 1980), começam a aparecer preocupações com o entorno, cultural ou natural, e com o impacto causado pela nova edificação. Introduzem-se sistemas estruturais mistos, que configuram recintos e criam seqüências integradoras e multifuncionais, nas quais o espaço externo é parte integrante, abandonando-se uma tendência anterior de concepção de novos sistemas de pré-fabricação. A apresentação gráfica dá mais importância aos aspectos perceptivos e descritivos da proposta. Um projeto exemplar é o da Estação Mercado do Trensurb em Porto Alegre, de 1979 (figs. 7 e 8).
A etapa de orientação crítica individualizada (1981 a 1991) apresenta propostas de conteúdo mais variado e mais dispostas a aplicar criticamente as lições das realizações simultâneas do campo profissional, principalmente internacional. Introduzem-se as composições aditivas e os volumes escalonados, articulados entre si ou interseccionados. A utilização de ângulos diferentes de 90º busca fluidez espacial e, em alguns casos, reinterpretar formas arquetípicas de correntes arquitetônicas passadas, vernáculas ou modernas. Os detalhes deixam de privilegiar linhas horizontais e o volume arquitetônico, de refletir a estrutura. A permeabilidade do objeto se dá mais como recurso expressivo do que por necessidade funcional. As propostas típicas de esta época mostram a revisão dos postulados modernos em curso, como o projeto de um Teatro-Escola na Ponta do Gasômetro em Porto Alegre/RS, de 1985 (fig. 9).
No final desta terceira etapa aparecem, ainda, temas correntes do mercado imobiliário local, representados por edifícios de apartamentos ou condomínios horizontais de alto padrão, substituindo os temas de habitação social trabalhados anteriormente. Como o projeto para um Condomínio Horizontal em Caxias do Sul/RS, de 1990 (fig. 10). O resultado final se aproxima de uma arquitetura residencial corrente, de filiação vernácula, propagada a partir das moradias serranas de férias. O aspecto banal do tema é compensado pelo extremo cuidado e realismo dos detalhes de projeto, que tem a preocupação de definir sua perfeita factibilidade.
A quarta etapa, a de transição ao TFG (1991 a 1996), desenvolve-se em uma época em que já desapareceram os programas de perspectiva público-institucional, os muito especializados, os de infraestrutura e os de desenho urbano. Se os Planos de Ensino a partir de 1983 já não estimulam a originalidade do tema, nesta etapa também se deixa de incentivar os programas de muita complexidade. Tampouco se busca a experimentação formal, mas recomenda-se a aplicação crítica de tipos e esquemas compositivos já testados pelo campo. A chamada “pesquisa” inicial torna-se estudo de casos e busca de referências formais, deslocando-se o foco de avaliação para a pertinência da solução adotada.
Desta etapa destaca-se o projeto do Apart-hotel e Centro de Convenções em Porto Alegre/RS, de 1994, que busca integrar-se na volumetria do entorno e cuja composição alude ao edifício Sulacap, de Arnaldo Gladosch (1903-1954), construído na mesma cidade na década de 40 (fig. 11). Menções à determinadas obras ou arquitetos podem constar, inclusive, no memorial escrito que acompanha o projeto, como é o caso do Centro Esportivo de 1966, já comentado acima (fig. 4). O texto destaca o Ginásio do Lehman College, de Rafael Viñoly, construído em 1994 em New York, do qual são evidentes as referências formais utilizadas.
Temas, contexto e identidade profissional
Ainda que o trabalho de diplomação se realize dentro de certos limites, a liberdade de eleição do tema se manteve por todo o período, desde sua inclusão no currículo em 1962. A situação físico-geográfica e o terreno são reais, mas as propostas simulam uma dada circunstância que pode ter mais ou menos correspondência com contextos sócio-profissionais reais ou com o entorno imediato, e que servem como parâmetros para as decisões de projeto.
Tomou-se como pressuposto que a condição liminar do estudante de diplomação agrega um conteúdo de espontaneidade na eleição do tema de projeto, capaz de revelar a idéia que este tem de sua concreta inclusão social como um profissional especializado. Por outro lado, pode representar a última chance que ele teria de exercer o que considera ser suas verdadeiras atribuições ou as capacidades potenciais da arquitetura.
O resultado da análise dessas imagens da realidade profissional ou de Arquitetura explícitas ou implícitas nos projetos recolhidos mostra uma tendência a enfatizar temas de interesse social no início do período, ancorados em empreendimentos promovidos pelo poder público. Esta se desloca progressivamente para temas focados em demandas do mercado imobiliário ou promovidos por empresas privadas ou, no máximo, que admitem operações concertadas entre os setores público e privado.
Inicialmente aparecem temas de Planejamento Urbano e/ou Regional nos projetos de diplomação, que reivindicam a competência do arquiteto em diagnosticar situações urbanas complexas e em propor soluções para as mesmas, evidenciando a crença na capacidade de planos e projetos no controle de condições ambientais e do desenvolvimento urbano. Os temas de planejamento deixam de ser apresentados em 1973, quando passam a ser considerados inviáveis de desenvolvimento dentro da disciplina.
Desde o início do período e até meados dos anos 70 aparecem também temas em que o arquiteto aparece como agente modernizador dos costumes, introdutor de conceitos de vida mais avançados ou desejáveis. E até princípios dos anos 80, os projetos concebem e desenvolvem novas tecnologias construtivas, com vistas à racionalização e pré-fabricação, ou incorporam progressos técnicos na configuração de estilos de vida modernos, como a informática ou a energia nuclear.
Nesta época os projetos analisados se dedicam com freqüência à elaboração de programas inéditos e especiais, pretendendo identificar demandas reprimidas e atender à demandas potenciais. Como expresso na memória do projeto de 1969 (Escola para Surdos), o arquiteto “projeta o mundo como este deveria ser”. Podem-se configurar situações ou relações sociais ideais ou utópicas ou manifestar inconformismo com determinada situação dada. Esta característica antecipadora e visionária aparece algumas vezes mais até o final do período estudado, revelando um traço amortecido, mas não de todo superado. O mesmo ocorre com a capacidade de o arquiteto promover valores associados a espaços e edifícios, ajudando a transformar o significado cultural dos mesmos.
No final dos anos de 1980, os temas de projeto começam a associar a atividade profissional com a promoção do desenvolvimento social e a melhoria da qualidade de vida da população, a partir de determinadas e concretas situações. O arquiteto parece então capaz de transcender as realidades dadas, configurando situações futuras ideais. Nesta época ainda se trabalha com programas sugeridos pelos planos de desenvolvimento do governo nos setores estratégicos de educação, infra-estrutura, equipamentos sociais e administrativos, a que o campo profissional aderira com entusiasmo na década anterior. O súbito desaparecimento de estes temas dos trabalhos de diplomação nos anos de 1990 provavelmente se deve, a partir da redução dos investimentos públicos nestas áreas, a não mais se considerarem futuras oportunidades profissionais concretas.
Mas desde princípios da década de 1970 a preocupação com a elaboração de novos programas vem cedendo para a formulação de novas alternativas para programas existentes, atitude que acaba por predominar a partir do início dos anos de 1990. O estudante se mostra crescentemente sensível a demandas culturais ou sociais manifestas em lugar de propor-se a antecipá-las, ao mesmo tempo em que aumenta o respeito pelo entorno e a preocupação em compatibilizar os projetos com as preexistências. A ênfase transformadora se desloca para o apoio e otimização das tendências de uso observadas.
A partir de 1983 o plano de ensino da disciplina enfatiza esta tendência, recomendando programas concretos para clientes reais. Ou seja, o programa passa a ser um elemento definido a priori, um ponto de partida dado, no qual não se perde muito tempo e para cuja formulação se recomenda utilizar o acervo de programas das propostas anteriores dos trabalhos de diplomação. O objetivo da medida parece ser que as propostas se concentrem mais nos aspectos propriamente arquitetônicos, e passam a ser valorizados aspectos da capacidade de análise, interpretação e síntese em lugar do incentivo à originalidade que predomina na etapa anterior.
Ainda que as temáticas de perspectiva social e cultural continuem presentes na maioria dos casos estudados, estas se vão substituindo por temáticas do mundo empresarial, opção ancorada tanto em uma visão pragmática do mercado de trabalho, como na nova orientação da disciplina. Mas persiste a idéia de que o trabalho de diplomação tem um caráter singular, cujo significado, ao longo do período estudado, se desloca da originalidade do tema à complexidade do programa e, deste, às grandes superfícies de projeto.
O legado do Projeto de Diplomação na FA-UFRGS
No decorrer do período estudado, os procedimentos na disciplina do Projeto de Diplomação na FA-UFRGS assumem características bastante distintas, senão opostas. Em um processo que inicia no corpo de disciplinas intermediárias de projeto e acaba por impor-se na totalidade do curso, desmistifica-se a imponderabilidade do processo criativo, ampliando-se progressivamente a faceta teórico-crítica do processo projetual e relacionando-o com a aquisição de cultura propriamente arquitetônica.
Em paralelo, o contexto sócio-produtivo conhece a euforia desenvolvimentista, a recessão econômica que marcou o fim dos governos militares, o fracasso dos planos de recuperação econômica que os sucedem e assiste à assunção das idéias neoliberais e à transformação da construção em um bem de mercado. No final do período, está conformado um contexto que valoriza menos a qualidade arquitetônica que a remuneração do capital e em que a criação de novas Escolas considera antes a demanda educacional que o mercado de trabalho. Como conseqüência se intensifica a competição entre os profissionais e se favorece a dissolução dos vínculos corporativos.
As entrevistas com egressos da FA-UFRGS revelaram que a última geração de arquitetos formados no período de transição ao TFG, já na nova fase da disciplina “Projeto de Diplomação” (1991-1996), parecem aceitar com menos conflitos pessoais o não-protagonismo da Arquitetura nas novas condições do mercado de trabalho. Inclusive com um discurso justificativo mais sofisticado e postura empresarial, identificada com o contexto produtivo. Não há somente uma mudança ideológica radical, mas uma lição de como opera a meta-teoria da Arquitetura (7) para fazê-la sobreviver em uma realidade em transformação, mantendo-se a auto-estima profissional.
Entre o messianismo dos ideais modernos e o pragmatismo neoliberal, percebe-se o surgimento de uma nova postura, que se pode classificar de mais equilibrada e realista, e que define objetos menos abstratos para a ação do arquiteto na sociedade. A ênfase nos aspectos disciplinares do ofício fornece novos recursos identitários, que valorizaram a construção da continuidade no campo profissional mais do que o pertencimento a um grupo de criadores originais e, inclusive, um pouco extravagantes, que estão nos fundamentos da história da Arquitetura do século XX.
O estudo realizado analisou dados relativos a arquitetos formados na Faculdade de Arquitetura da UFRGS entre 1962 e 1996. A partir de então ocorreram mudanças significativas, tanto no contexto educativo, como no contexto social e econômico brasileiro, que vem atravessando um período historicamente inusitado de estabilidade econômica e prosperidade. Ainda que a educação de arquitetos se faça de acordo com as variadas lógicas institucionais e de acordo com os paradigmas próprios ao campo da arquitetura, estas mudanças continuarão a se refletir, necessariamente, nos produtos acadêmicos.
notas
1
SALVATORI, Elena. De la originalidad a la competência: la enseñanza de arquitectura em la UFRGS, Porto Alegre, Brasil – 1962 a 1994. Barcelona, tese de doutorado, DCA-ETSAB-UPC. 2006. Disponível em <www.tdx.cat/TDX-0427107-101700>.
2
ARAÚJO, Cláudio Luiz; MARQUES, Moacyr Moojen; MENTZ, Luiz Frederico. Programa de ensino 1966: ciclo de preparação básica, formação profissional, trabalho de diplomação. Comissão de redação final, FA-UFRGS, arquivo pessoal Arq. C. L. Araújo. 1966. [mimiografado]
3
JANTZEN, Sylvio Arnoldo Dick. Por uma pedaggia da arquitetura: formação crítica e tradição da profissão. Porto Alegre, Programa de Pós-Graduação em Educação FACED-UFRGS. 2001. [tese de doutorado]
4
Secretaria do Departamento de Arquitetura. Normas da disciplina Projeto de Diplomação do curso de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. FAU-UFRGS, Porto Alegre. 1971. [mimiografado]
5
Sublinhado no original.
6
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Ed. Perspectiva. 1992.
7
Ou os “modos pelo qual a Arquitetura se justifica como atividade útil”, segundo HILLIER, Bill. “Au-delà du fonctionnalisme: réflexions sur l’architecture social-démocrate en Grande-Bretagne’’ In: Partisans. Maspero, março-abril, 1971:117-130.
sobre o autor
Arquiteta, Mestre em Antropologia Social pelo PPGAS-UFRGS e Doutora em Teoria e História da Arquitetura pela ETSAB-UPC, é professora da FA-UFRGS.