Quase tão surpreendente quanto a sua realização foi a divulgação rápida de seu resultado. Mal soubemos que estava ocorrendo um concurso de ideias para o novo Museu da Imagem e do Som e já anunciou-se o vencedor: Diller Scofidio + Renfro.
A informação (1) sobre o concurso me chegou exatamente no dia em que acabara de ocorrer a primeira sessão de apresentação de projetos com ninguém menos de que Daniel Libenskind, Diller Scofidio, Bernardes Jackobsen, Brasil Arquitetura. No dia seguinte, “ninguém menos” do que Shigeru Ban estaria, entre outros, apresentando sua proposta. Pouca informação sobre o júri, sobre a seleção das equipes, sobre os envolvidos, e tudo o mais. No espaço de cerca de uma semana, porém, a mídia (impressa e televisiva) cobriu o evento com surpreendente constância para matérias relativas à área de arquitetura (só Oscar Niemeyer merecera tal deferência).
O local escolhido não poderia ser mais vistoso: o calçadão mais famoso do Brasil, a praia de Copacabana. Apesar da fama internacional, o bairro enfrenta, já há algumas décadas, um processo de franca decadência e nada mais sintomático dessa degradação urbana do que as atividades duvidosas – leia-se turismo sexual – da casa de diversões que ocupa o endereço que abrigará o futuro MIS, e que por isso está em processo de desapropriação.
Ligado à Secretaria de Estado da Cultura, o projeto do novo MIS conta com a participação da Fundação Roberto Marinho. O governo do Estado, segundo a imprensa, dispõe já de cerca de R$ 13 milhões para a desapropriação do terreno da discoteca Help (cerca de 13 mil m²), outros R$ 50 milhões serão captados para a construção. A inauguração do museu está prevista para o primeiro semestre de 2012.
Nesse misto atordoante de irrealidade e concretude em que os eventos se sucedem e são simultaneamente anunciados em velocidade midiática, constatamos dolorosamente nosso alheamento dos assuntos ligados à cidade. E o pior, daquilo que envolve nossa área de atuação: a arquitetura.
O Rio de Janeiro finalmente se rendeu à arquitetura do espetáculo. Na vitrine turística de Copacabana o futuro Museu da Imagem e do Som: a mercadoria do sexo será redimida pela informação cultural. Irônica redundância essa sobreposição pós-moderna de cultura, imagem e turismo (alguns mais céticos acrescentariam o populismo à equação). O espetáculo, contudo, não se reduz exclusivamente às imagens de projetos espetaculares. Não, ele é o próprio evento: um concurso estranho, mas inesperadamente divulgado pela mídia, a aparição surpreendente de estrelas da arquitetura contemporânea, cuja simples presença “aurática” consagra o acontecimento, uma fundação cultural que carrega o nome da maior rede de comunicação do país assumindo a responsabilidade pela iniciativa, autoridades e políticos “conduzindo” o processo (secretários estaduais e municipais de cultura, de urbanismo, diretores de museus, governador). O que tais agentes anseiam pode ser resumido nas palavras do Secretário Geral da Fundação Roberto Marinho, Hugo Barrero, logo após a divulgação do projeto vencedor pelo governador em pessoa: “Os museus são as catedrais do século XXI”. No próprio site do MIS, a nova sede é saudada como “um reforço para o turismo cultural brasileiro”. O objetivo unânime é conferir à cidade um ícone arquitetônico do século XXI, de projeção nacional e internacional.
A reabilitação urbana motivada pelos novos monumentos da arquitetura contemporânea, especialmente os “novos museus” ganhou impulso, sem dúvida, por causa do impacto internacional do Guggenheim Bilbao de Frank Ghery (1992-97) e do Museu Israelita de Berlin de Daniel Libenskind (1988-99). Desde então, arquitetos têm sido mobilizados para realizar seus projetos de caráter excepcional, que por sua força icônica atuam como fatores de atração e, logo, de revitalização de áreas antes degradadas. Os dois últimos grandes eventos esportivos – o mundial de futebol de 2006 na Alemanha e as Olimpíadas de 2008 em Pequim – radicalizaram essa conexão entre arquitetura, turismo e recuperação das cidades (não nos esqueçamos de que em 2014 a Copa será no Brasil, e o Rio a principal sede).
No âmbito local, dois projetos poderiam ser considerados indicadores desse movimento: o Guggenheim do Rio de Janeiro, de Jean Nouvel (2002) e a Cidade da Música de Christian de Portzamparc, no Rio (2002-2009). Seguindo nessa linha que faz convergir cultura e esportes, tivemos nós também nosso evento esportivo: o Pan de 2007. Isso denota uma tendência em andamento em várias cidades e parece que o Rio começa a se colocar dentro desse movimento.
O que me parece inédito nessa equação entre arquitetura e o seu potencial de renovação urbanística é justamente que isso ocorra quando o edifício vê cada vez mais corroído a sua materialidade, ficando reduzida à sua dimensão icônica. Espaços, programas, usos, estruturas parecem termos e conceitos que não mais se aplicam, ou não são mais necessários. O que se destaca, é tão somente a sua imagem (pelo menos, é isso o que dela se espera e é o que a mídia, o mercado, as administrações públicas se interessam), mas para que esta sustente seu interesse ela precisa efetuar verdadeiros malabarismos, contorcer-se, numa verdadeira ginástica para alcançar uma forma instigante que não só atraia o olhar, mas sobretudo que não se esgote rapidamente.
Fica claro que a questão não é tanto a qualidade ou a falta dos projetos concorrentes. No sentido tradicional da crítica, não há como fazê-la com um mínimo de responsabilidade, uma vez que deles temos tão somente imagens parciais e, por sorte, um depoimento de um estudante de arquitetura que assistiu as apresentações. Com apenas isso à disposição, só temos vagas impressões e para não me isentar totalmente de uma tomada de posição, me parece que o projeto vencedor de Diller Scofidio tem seu interesse, ainda que fique a sensação (quando se tem em conta os projetos realizados da dupla) trata-se muito mais de um aprimoramento de uma idéia (a da fita espacial contínua) do que da ousadia característica das experimentações anteriores. Senti falta de certo entusiasmo e frescor no projeto. Talvez essa impressão possa ser revertida com o conhecimento mais detalhado das plantas e do conteúdo programático (2). Se os projetos em geral se deixaram seduzir pelo encanto feérico de superfícies contorcidas que envolvem interiores genéricos (e por enquanto é o que temos dos projetos) é algo que teremos que aguardar.
A questão que, a meu ver, precisa ser vista com atenção é a situação geral em que este concurso de idéias arquitetônicas se viu envolvido, e os partícipes promotores do projeto. É preciso, portanto, prestar atenção a esse acordo entre administrações públicas, iniciativas culturais, turismo e mercado. A questão é a institucionalização da cultura pelos órgãos públicos e pelo mercado. Além disso, é necessário colocar tal situação em perspectiva, resgatando criticamente episódios antecedentes e antevendo os que estão anunciados.
Um antecedente canhestro dessa confusão entre interesses públicos e privados se deu com a construção do teatro do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro que alterou o uso previsto no projeto de A. E. Reidy – de sala para apresentações sinfônicas para casa de espetáculos VIVO RIO – mas manteve a “casca” da proposta original. Sob o incentivo da prefeitura, o aval do IPHAN, a concordância do MAM e o senso de oportunidade da iniciativa privada, o discurso comum do resgate da história, reabilitação de área degradada, revitalização de instituição em crise se firmou, mas os resultados são mais do que discutíveis.
Quanto aos que estão anunciados, o de maior repercussão é o “Projeto Porto Maravilha” que pretende realizar o sonho da revitalização do cais do porto do Rio de Janeiro. Investimentos em habitação no Morro da Conceição, alteração na atracagem das embarcações, supressão do elevado, reforma dos galpões das docas, liberação da taxa de ocupação da área, criação de área de lazer no píer Mauá, e os novos equipamentos culturais: a pinacoteca e o museu do amanhã. Enfim, um grande projeto em que muitos interesses estão envolvidos e a maioria de seus promotores são os mesmos do projeto do futuro Museu da Imagem e do Som.
A transferência do MIS para nova sede e a expectativa acerca do potencial regenerador de uma arquitetura forte e impactante merece uma consideração mais pormenorizada. O que justifica o novo projeto e, sobretudo, por que a indicação do novo endereço?
Sem dúvida, o Museu está abrigado em uma edificação que não tem as condições ideais para o seu uso. Seu endereço atual é uma edificação construída em 1922, e originalmente recebeu o Pavilhão da Administração para a Exposição do Centenário da Independência na esplanada resultante do desmonte do Morro do Castelo, logo suas instalações tiverem de ser adaptadas ao local. Tanto que teve que se dividir, transferindo parte de suas atribuições para outra sede na LAPA. Certamente, precisa de modernização das condições de guarda de seu acervo (o que segundo a instituição possibilitará a ampliação de seu acervo para novas mídias, incluindo-se a televisão), de melhorias das instalações para atendimento a pesquisadores e público em geral e de ambientes preparados para eventos e exposições.
Por outro lado, mesmo em local precário, conta com outras instituições culturais na sua vizinhança: o Museu Histórico Nacional, o Museu Naval da Marinha, o Centro Cultura da Saúde (antigo Pavilhão da Estatística da exposição de 1922) e o Paço Imperial. Prolongando-se o eixo, podemos incluir o MAM-Rj e em sentido oposto Centro Cultural dos Correios, o recente Centro Cultural da Justiça Eleitoral, o Centro Cultural Banco do Brasil, e o Espaço Cultural da Marinha, isso sem contar as inúmeras igrejas e monumentos históricos nos arredores, como a Igreja da Candelária, o Mosteiro de São Bento, a Igreja Santa Cruz dos Militares, a Igreja da Lapa dos Mercadores, a Igreja de Santa Luzia, a Santa Casa de Misericórdia.
No entanto, justamente o local em que se encontra o MIS é uma espécie de vácuo urbano no qual o museu aparece como uma espécie de ilha cercada por áreas até hoje sem definição de ocupação: ao seu redor proliferam vazios que recebem a genérica denominação de praça (Pç. João Paulo, Pç. Rui Barbosa, Lg. Dos Pracinhas, Pç. Mal. Âncora), mas que não passam de espaços ajardinados, ocupados majoritariamente como área de estacionamento. Além disso, existem vizinhos um tanto “incômodos”, como o terminal urbano da Misericórdia de movimento intenso, o elevado da perimetral que corta a paisagem da baia, a abandonada Praça do Expedicionário com seu obelisco, enfim, vários locais e equipamentos que degradam a paisagem e tumultuam o transito. Frente a essa “desordem”, o representante oficial da Ordem – o complexo do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – não deixa de exibir seu poder e voracidade como as ampliações constantes, com seus volumes altos, deselegantes, espelhados, cuja escala ressoa contra o vazio tornando-o ainda mais desproporcional e impositivo. Um vizinho histórico, a Santa Casa de Misericórdia, um dos únicos remanescentes do período colonial, dá as costas ao terreno e, aumentando o isolamento e acentuando a atmosfera insólita, temos uma ruína fantasmagórica: o início da ladeira da misericórdia que outrora dava acesso ao topo do morro do castelo, onde se encontrava o famoso colégio e igreja dos jesuítas. Nesse “lugar sem qualidades”, o edifício do MIS ergue-se qual ilha num mar rarefeito.
Poder-se-ia contra-argumentar, então, que justamente uma área que merece e precisa urgentemente de uma reabilitação é a área em que se encontra o atual MIS. Tanto porque se poderia completar o eixo que reúne instituições culturais, num projeto que teria efetivo potencial (incluindo-se o turístico, evidentemente) para revitalizar o centro histórico do Rio de Janeiro; quanto por se tratar de área degradada, mas de intenso e múltiplo uso, poder-se-ia estar associado a um centro modal de transporte, já que conta com um terminal urbano e se situa no cruzamento de dois eixos de circulação que atravessa o centro.
E já que o governo do estado se dispõe a investir R$ 13 milhões para desapropriação, não seria mais lógico negociar com a prefeitura e a união (como no caso do porto) um projeto unificado para a área, fazendo esse montante ser convertido num projeto de maior alcance social e urbanístico? Não seria o caso de fazer a nova sede do MIS ao lado do existente, justificando a sua própria história e resgatando a memória do sítio fundacional da cidade: o morro do Castelo?
O morro do castelo foi destruído em nome do progresso, da saúde, da higiene, da moralidade, da modernidade, enfim. Tudo isso justificaria o ato de violência drástica contra a natureza e contra a história. Prometia um novo espaço, um novo cenário. Por isso, planos e mais planos foram traçados. O primeiro lance foi a Exposição de 1992, comemorativa do centenário da Independência. Pavilhões ecléticos e neocoloniais foram construídos, alguns sobreviveram, como é o caso do edifício hoje ocupado pelo MIS. Em seguida veio o Plano Agache, o projeto do novo centro cívico de A. E. Reidy, décadas depois o Plano Agache seria revisado pela Comissão do Plano da Cidade e parcialmente implementado. Nos anos 1950 e 1960, veio o Plano da SURSAN, mais recentemente o “Rio Orla”, o “Frente Marítima”, e quem sabe quantos outros estão em curso.
Grande parte da esplanada que surgiu após a retirada do morro, foi ocupada por quadras fechadas, edificações da iniciativa privada e também por sedes institucionais como consulados, embaixadas e ministérios. Mas exatamente a área do MIS ficou sem destino definido e parece ser essa ainda sua sina. O que ficou ao seu redor foram restos, sobras de “futuros passados”, ruínas em meio à batalha entre construção e destruição que alimentou os sonhos da modernidade. Aqui, um pedaço da ladeira da misericórdia, ali um pavilhão de 22, acolá uma torre do mercado municipal destruído pela construção do elevado da perimetral, mais além, restos dos trilhos do bonde e sua contraface moderna o terminal urbano da Misericórdia. Mas nenhum parece mais intrigante do que o obelisco da Praça do Expedicionário, presente para a Expo de 22, mas realizado somente na década de 1940: o que marca tal haste, que direção aponta, que monumento pretende realçar? Nada, a não ser a sua paradoxal condição fantasmagórica.
Trata-se de área degradada, ocupada por vagabundos, mendigos, marginais, trabalhadores e ambulantes. Não tem brilho, não atrai turistas, não tem nenhuma mística imagética (a não ser a memória da destruição), não tem comércio de grife... É um autêntico “lugar nenhum” que ninguém faz questão de lembrar, nem muito menos ver. É o avesso do progresso e da civilização. Como poderia a cultura ficar bem num local como esse? Como poderia esse ser o lugar da “nova catedral do século XXI”?
Como poderia ser a nova vitrine para o mundo?
Adendo
O cultural parece não mais ser o que orienta nossas autoridades da cultura. De modo similar, o público também parece categoria desconsiderada pelas nossas autoridades públicas. Infelizmente, há um espesso déficit de inteligência cultural e política em nossos representantes públicos. O nocivo não é o espetáculo, o mercado ou o turismo. O perigo é a ignorância. Sobretudo, a dos arquitetos.
notas
1
Devo a Vitor Garcez, aluno do curso de arquitetura e um dos editores da revista NOZ, o relato do ocorrido. Ver o blog http://riodjanaira.blogspot.com.
2
É o que ocorreu com a Cidade da Música e com o Guggenheim Rio que, a meu ver, conseguiram reagir criticamente à redução da arquitetura à mera condição de imagem espetacular, seja pelo partido inteligente que relaciona arquitetura e paisagem no projeto de Portzamparc, seja pela inversão de expectativas ao mergulhar a edificação no mar, deixando à superfície apenas restos, ruínas arcaicas, como no projeto de Jean Nouvel.
sobre o autor
João Masao Kamita é professor da PUC-Rio, atua no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura, no curso de graduação em História e no curso de Arquitetura.