“A história de uma vida, de qualquer vida, é a história de um fracasso.” (Jean-Paul Sartre. O ser e o nada)
“Entre a dor e o nada, eu prefiro a dor.” (William Faulkner. Palmeiras Selvagens)
1. Introdução: algumas considerações sobre a liberdade (1)
Não saberíamos exagerar a importância da “liberdade” no pensamento de Sartre; este conceito, para usar um termo que o próprio filósofo francês usava com alguma frequência, “infesta” o seu livro O ser e o nada (2). Ora, caberia mesmo a este conceito, tal como se pode apreendê-lo nas páginas deste tratado filosófico, o epíteto de “radical”... Esta nossa frase, no entanto, merece ser devidamente elucidada e fundamentada, e a sua emergência neste artigo deve ser explicada. Ora, nas próximas páginas teremos a oportunidade de explicitar as razões pelas quais Sartre, quando quis explicar a sociedade norte-americana para o seu público leitor francês, tomou o bairro de Manhattan como metáfora, e é justamente esta relação estabelecida por nosso autor entre uma metáfora espacial e um conceito filosófico que merece ser investigada. E estamos nos referindo ao célebre ensaio no qual o filósofo francês trata esta questão, o Individualismo e Conformismo nos Estados Unidos, no qual um único bairro de uma única cidade torna-se metáfora-metonímia de toda uma sociedade. Porém, antes de abordarmos esta questão, devemos refletir o conceito de liberdade do qual Sartre serviu-se para analisar, como já afirmamos, a sociedade norte-americana.
Acima escrevemos que a liberdade no pensamento de Sartre no período tratado por nós ; isto é, até 1949, ano da republicação do supracitado texto ; mereceria o epíteto de radical; esta frase encontra a sua explicação no fato de que esta liberdade é compreendida como absoluta e como o ser e a estrutura do homem. Neste sentido, todo o tempo o homem faz escolhas a partir de um projeto ; este mesmo escolhido ; originário e fundamental, e, assim, o homem se faz, justamente, pelas escolhas. E é importante acrescentar que no seu tratado filosófico nada impede a liberdade humana, uma vez que nem a classe social, nem a condição de nascimento, nem a cultura ou a etnia poderiam impedi-la; ora, o homem é livre, tout court: “Além disto, liberdade é liberdade de escolher, mas não liberdade de não escolher. Com efeito, não escolher é escolher não escolher” (3). Esta frase, que beira a tautologia, é esclarecedora: aqui, a liberdade ; e parafraseando o filósofo francês ; “é o horizonte intransponível do homem.”
O conceito de liberdade assim concebido coloca duas questões; a primeira é esta: dentre as infinitas possibilidades de escolha que estão a nossa disposição, de maneira cotidiana, escolhemos uma, e, ao fazê-lo, negamos todas as demais. Mas por que justamente esta única? Segundo o filósofo francês não haveria resposta para esta questão, uma vez que o homem é livre, e, a este título, poderia ter feito qualquer escolha. Isto implica o fato de que a liberdade é o seu ser, mas não o seu fundamento, e isto faz com que a escolha caia no absurdo: “Essa escolha é absurda, não porque careça de razão, mas porque não houve a possibilidade de não escolher” (4). Dito de outra maneira, há uma razão para a escolha, que é o fim visado de acordo com o projeto originário, mas não há razão para que o projeto ; e, portanto, o fim visado ; não fosse qualquer outro: “A possibilidade dessas outras escolhas não é explicitada nem posicionada, mas vivida no sentimento de injustificabilidade, e exprime-se pelo fato da absurdidade da minha escolha e, por conseguinte, de meu ser.” (5)
A segunda questão relaciona-se profundamente com a primeira: se podemos escolher o que quer seja, podemos, então, mudar o nosso projeto e adotar um outro; neste sentido, se a escolha é o ser do homem, e esta, como vimos, é absurda, chega-se facilmente à conclusão de que a existência não o é em menor escala. De qualquer sorte, a existência é tanto uma perpétua renovação de projetos quanto o abandonar destes e tomada de uma nova posição: “Sendo a liberdade ser-sem-apoio e sem-trampolim, o projeto, para ser, deve ser constantemente renovado.” Queremos ser, projetamo-nos, mas o futuro não é, e, neste caso, somos tão somente o projeto do que não somos. Para ser, somos tributários de uma renovação da qual não temos nenhuma garantia. Teremos a oportunidade de voltar a este tema, cabe-nos, neste momento, analisar como Sartre compreendeu a liberdade na sociedade norte-americana, e como o fez a partir das hipodâmicas ruas de Manhattan.
2. Individualismo e conformismo nos Estados Unidos da América
Como já afirmamos, o uso que Sartre fez do bairro nova-iorquino de Manhattan foi desenvolvido no seu ensaio Individualismo e Conformismo nos Estados Unidos, publicado pela primeira vez no Le Figaro em março de 1945 e republicado em Situations III, de 1949. Neste texto Sartre afirma que há uma dupla situação no país norte-americano, na qual o conformismo dos seus cidadãos se mistura a um profundo individualismo de base. E eles seriam conformistas porque aceitariam perfeitamente o anonimato das suas vidas, a despersonalização representada no uso continuado do transporte mecânico, além do serviço automatizado das máquinas. Já havíamos demonstrado que o filósofo francês compreendeu o transporte mecânico norte-americano como uma espécie de processo de reificação, no qual paulatinamente o homem sente-se transformado em um simples objeto a ser transportado: de rua em rua, de piso em piso, como se fora um “pacote” (6). Neste texto, no entanto, Sartre vai mais longe e estende o seu sentimento a toda à sociedade norte-americana, que seria reificada e despersonalizada pelo uso, justamente, do transporte mecânico.
E em relação às máquinas automáticas o raciocínio de Sartre não é diferente, posto que o seu uso implicaria, igualmente, um processo de reificação. Segundo o nosso autor, uma vez que qualquer um podia servir-se destas, e sempre da mesma maneira ; a partir de tíquetes e de moedas ;, o homem vivenciaria uma espécie de anonimato, posto que se tem uma relação com máquinas no ato de consumo, e não com outros homens. Assim, diante de um distribuidor mecânico, todos teriam o direito de sentir-se qualquer um em qualquer lugar, exatamente como o triângulo citado no seu texto New York cidade colonial, que nas ruas nova iorquinas sentir-se-ia um triângulo qualquer em qualquer lugar. Sartre lembra, ainda, que uma máquina não é feita sob-medida, e, neste sentido, a mesma máquina deveria atender os interesses e necessidades de pessoas que são, naturalmente, diferentes umas das outras, e que, a este título, possuiriam interesses e necessidades diferentes em diversos graus.
Mas é importante salientar que estas descrições fazem parte da alteridade do viajante: o estrangeiro vê no outro justamente o que ele é, e nos comentários de Sartre há bem mais da França do que, mais propriamente, dos Estados Unidos da América. Neste sentido, assim como no caso já salientado do ennui que Sartre percebia nas personagens de Faulkner, é um europeu que percebe a reificação dos norte-americanos (7). Por outro lado, transparece neste texto certo estereótipo que os europeus nutriam em relação a este país americano: a ideia de progresso, de civilização mecanicista etc. Isto é claro em um livro escrito por um europeu e que se tornou um sucesso quase imediato: o A mecanização no poder, de Siegfried Giedion, publicado pela primeira vez em 1948 (8). Este livro, cujo tema, como terá percebido o leitor, é o processo de mecanização e industrialização da sociedade norte-americana, tanto produziu quanto reproduziu o mito de que haveria uma civilização mecanicista do outro lado do Atlântico. Sartre, em seu texto de 1945, dialogava com este mito, e, ao contrário do autor tcheco, via características preferencialmente negativas nesta questão, como as já citadas despersonalização e reificação.
Mas ainda não abordamos a questão do conformismo que, segundo o filósofo francês, dominaria a sociedade norte-americana. Neste sentido, Sartre faz uma alusão ao trabalho coletivo das inúmeras associações ou ligas, as quais teriam como função educar o cidadão, mas cujo resultado final e definitivo seria o seu “enquadramento” social: o que é ser um “americano”. É, igualmente, uma questão de proteção social: não se trata de um cidadão isolado, mas de alguém que pertence a uma determinada sociedade, que, espera-se, protegê-lo-á de ações de outros segmentos sociais e, mesmo, do Estado. E como faria o cidadão norte-americano para se proteger da sua própria associação? Recorreria ele, neste caso, ao Estado? Não necessariamente, ele se protegeria da sua associação fazendo parte de várias... É desta maneira que pessoas originárias dos mais diversos países tornar-se-iam norte-americanas: italianos, irlandeses, poloneses, que, pelo trabalho das tais associações, tornam-se exatamente aquilo que eles devem ser. Sartre descreve um encontro com um cidadão norte-americano que, como ele escreveu, estava em fase de “fusão”, isto é, estava em vias de tornar-se, finalmente, um “americano”. Ao ter o seu domínio da língua francesa elogiado, o norte-americano espantou-se, porque, justamente, ele era francês e estava nos Estados Unidos da América há pouco mais de uma década...
E seria esta, igualmente, a finalidade dos “cursos de americanização” que Sartre disse ter visto em colégios de New York, nos quais se ensinam às moças ; entre outras atividades, como costurar e cozinhar ; como conseguir um “bom casamento”, e, aos rapazes, a “arte do flerte”. No final, formam-se “americanos” como se formam engenheiros, médicos e arquitetos. Ninguém está “em situação”, por conformismo, todos aceitariam o que eles deveriam ser.
Mas isto não seria imposto pela força da coerção, uma vez que a “americanização” deve ser travestida, para um melhor resultado, de livre escolha. Neste sentido, Sartre descreve as propagandas que viu em território norte-americano: em uma delas, dois asnos amarrados por uma corda um a outro estão a disputar dois montes de feno localizados em sentido inverso. À força de tentar alcançá-los acabam por se estrangular; mas cedo “compreendem” a situação, e comem simultaneamente o mesmo monte de feno à disposição. Sartre enfatizou que não havia nenhum comentário acompanhando estas imagens, e que era necessário que o norte-americano tirasse a suas próprias conclusões: “Mas se trata de um fenômeno muito mais espontâneo e muito mais difuso” (9). Notemos, aqui, o uso do termo “espontâneo”, o filósofo francês apreende a situação e a descreve como um suave, um sutil convencimento, e não uma imposição... Mas este termo não significaria, exatamente, “natural”, posto que esta propaganda, como, de resto, todas as outras, é “artificial” e “estudada”; Sartre faz referência a uma situação que quer mostrar-se “voluntária”, como se o sentimento a ser evocado ; que, neste caso, seria algo como “a união produz melhores resultados” ; seria como o livre e casual germinar de uma semente: não há indução externa neste caso, posto que germinar faz parte da natureza da semente. Neste sentido, faria parte na natureza do norte-americano tornar-se norte-americano. Ora, muitos europeus viram a mecanização desta sociedade uma espécie de “segunda natureza”, e Sartre compreendeu que a sutil propaganda estatal era uma espécie de paisagem natural: “A nação caminha com você, ela lhe dá conselhos e ordens.” (10)
Por outro lado, Sartre sentiu os cidadãos norte-americanos como individualistas, e mesmo a relação destes com o seu Estado seria marcada pelo individualismo, uma vez que o Estado no país norte-americano teria sido, durante muito tempo, apenas uma “administração”. E ainda neste individualismo haveria a “luta pela vida”, que, segundo o filósofo francês, seria difícil e amarga: em um país no qual todos têm o direito ao sucesso profissional, a outra face da moeda não é a “acomodação”, mas o retumbante fracasso. É a marca da diferença, há todo um abismo entre Ford e um operário sem qualificação, da mesma maneira que entre a cidade de Fontana e New York as diferenças não são apenas estatísticas, mas qualitativas. E, vale a pena acrescentar, o sucesso não é coletivo, e sim individual: quem fracassa ou tem sucesso é o indivíduo, e não a sociedade.
Mas neste caso o individualismo não suprimiria o conformismo, uma vez que seria uma dimensão interna a este: é a liberdade, isto é, a escolha, pelo conformismo: “Foi esta liberdade total no conformismo que, primeiro, chocou-me: nenhuma cidade é mais livre que New York; você pode fazer lá o que você quiser. É a própria opinião pública que funciona como polícia.” E conclui: “Conformistas por liberdade, despersonalizados por racionalismo, identificando no mesmo culto a Razão universal e a sua nação particular, isto é como me pareceram, inicialmente, alguns americanos a quem conheci” (11). Os largos e retos caminhos para a liberdade, na cidade de New York como em tantas outras cidades norte-americanas, conduz ao mais estreito dos conformismos; esta é, ao menos, a opinião de Sartre. Trata-se, segundo o nosso autor, de um duplo processo: inicialmente é-se enquadrado em uma associação qualquer, é a noção primeira de conformismo: estar conforme a alguma coisa, isto é, “de acordo”. No interior deste panorama está-se, então, livre para tomar iniciativas, ou seja, de se individualizar perante a sociedade. É o que Sartre afirma ao utilizar como exemplo um operário: “Quando o operário é sindicalizado, quando a propaganda governamental e a do patronato já o integraram suficientemente à comunidade, então se pede a ele de se distinguir dos demais e de dar provas de iniciativa” (12). É tão somente no interior deste sistema restrito que alguém poderá se destacar dos demais e, se possível, orientar e influenciar a coletividade (13). É a partir deste momento que ele é reconhecido pela sua comunidade como um winner, ou, ao contrário, como um looser. Estas afirmações de Sartre parecem-nos, agora, banais, mas devemos sempre ter em mente que o filósofo francês as fez no ano de 1945, quando especulações deste tipo ainda não eram correntes.
3. Nas ruas de New York
Mas retornemos ao que havíamos aludido no caput deste artigo, a saber, New York como uma imensa metáfora da sociedade norte-americana. Tomada ao nível do solo, “New York é a cidade mais conformista do mundo” (14), com a sua indiferenciada malha xadrez, como se fosse, na concepção sartriana, uma Fontana que teria crescido demasiadamente. Como resultado deste desenho urbano teríamos ruas anônimas, com as quais mesmo um simples e anônimo triângulo se espantaria, ruas que sequer possuiriam nomes, mas números, da mesma maneira que soldados são identificados por números de matrícula (15). Por outro lado, vista do alto, não haveria cidade mais individualista que New York, com os seus imensos arranha-céus a competirem por espaço e visibilidade. Neste sentido, poder-se-ia utilizar uma outra metáfora para compreender a metáfora-metonímia sartriana de New York: os arranha-céus competiriam ali da mesma maneira que em uma floresta tropical as árvores competem em altura, posto que, quanto mais altas, mais têm uma sobrevivência estável. No seu traçado e nos seus arranha-céus New York seria a especulação e a reflexão da sociedade norte-americana, simultaneamente conformista e individualista:
Assim, o individualismo na América, na luta pela vida, é, sobretudo, a aspiração apaixonada de cada um pelo estado de indivíduo. Há indivíduos como há arranha-céus na América, há Ford, há Rockfeller, há Hemingway, há Roosevelt. Eles são modelos e exemplos. (16) (17)
Mas não termina aqui, o desenvolvimento da metáfora prossegue, neste ensaio de Sartre que é, certamente, o seu texto sobre os Estados Unidos da América mais conhecido; os arranha-céus de New York, na concepção do filósofo francês, são “personalizados” na medida mesmo em que o “cidadão comum” entrega-se de bom grado a uma despersonalização: “Neste sentido, estas construções são um ex-voto ao sucesso, estão, atrás da estátua da Liberdade, como estátuas de um homem ou de uma empresa que se elevaram acima dos outros” (18). Sartre associa, assim, a “luta pela sobrevivência” nos Estados Unidos da América à obrigatoriedade do sucesso, e além disto, que este seja éclatant e presente em cada esquina da cidade. Mas, de qualquer sorte, é no mínimo curioso que estas argutas observações tenham sido realizadas por alguém que dizia “não ter olhos” para os arranha-céus...(19)
Mas é importante salientar que nem sempre Sartre pensou desta maneira, nos dois textos que ele republicou em 1949, o seu pensamento sobre a liberdade nos Estados Unidos ainda estava em gestação, ou, como ele mesmo preferiria, em “fusão”. No texto Villes d’Amérique ele escreveu sobre o tema, colocando a questão nos seguintes termos: “Cada um é livre, aqui, não para criticar ou para reformar os costumes, mas para destes fugir, para ir para o deserto ou para uma outra cidade” (20). Se a liberdade é a escolha que cada um faz consoante o seu projeto, esta é, certamente, nos Estados Unidos da América, limitada; contudo, aos norte-americanos restaria, ao menos, o caminho da fuga, o consolo do on the road, a vida incerta e deambulatória sobre algum trailer em alguma estrada. No entanto, não se trata de afirmar que a liberdade dos norte-americanos conhece restrições, o que, segundo a filosofia de Sartre, seria um importante contra-senso, uma vez que o homem é “condenado a ser livre” (21), ou, expresso de outra maneira: “O homem não poderia ser ora livre, ora escravo: é inteiramente e sempre, ou não é” (22). E, para o nosso autor, o homem é sempre e inteiramente livre, e os norte-americanos o são como todos os outros... Porém, não teriam escolhido, ao fazer uso da sua inelutável liberdade, reformar ou criticar os costumes, mas a evasão das estradas.
E para o filósofo francês seria, justamente, o caráter de abertura das cidades norte-americanas que permitiria a liberdade da evasão: “Abertas para o mundo, abertas para o futuro” (23). A juventude destas cidades, o seu aspecto de acampamento no deserto, a sua semelhança com as cidades do mítico Far West que Sartre viu como cenário nos filmes da sua juventude as conferia esta liberdade. No entanto, a partir mesmo destas cidades “abertas”, o norte-americano seria tentado pela má-fé (24): a liberdade ; como ilustração pensemos em Dostoiesvky que escreveu que, sem Deus, “tudo é possível” ; recai apenas na escolha de uma possível evasão. Uma vez acometido por insônia devido à “amarga luta pela sobrevivência”, o norte-americano tranquiliza-se: “Amanhã fugirei, amanhã, no meu carro, ganharei a liberdade das estradas e das vastas planícies desertas.” Segundo Sartre, para um norte-americano, malgrado a liberdade, nem tudo é possível...
Ainda comentado a cidade de New York Sartre refere-se, mais uma vez, à liberdade que a cidade confere ao seu habitante (ou a um turista francês): “(...) em nenhuma parte eu me sinto mais livre que no meio das multidões nova-iorquinas” (25). O filósofo francês aludia não apenas ao anonimato indistinto que normalmente é associado às multidões das grandes metrópoles, mas, igualmente, ao anonimato das ruas indistintas da capital norte-americana. Ali, qualquer rua poderia vir a ter qualquer destino, poderia possuir qualquer equipamento urbano: praça, parque, estação de metrô, viaduto ; da mesma maneira que qualquer cidadão norte-americano, ao menos teoricamente, poderia vir a ser presidente do seu país. Ou seja, se o cidadão norte-americano se comporta como se não fosse livre, é pela sua própria escolha, posto que a liberdade já estaria inscrita no seu destino e nas ruas das suas cidades.
Mas a questão não se encerra aqui. Em um outro texto escrito sobre os Estados Unidos da América, e que foi a apresentação do número de Les temps modernes de Agosto de 1946, Sartre volta a abordar a questão da liberdade. E, desta feita, o faz apresentado-a como um antagonismo que todo norte-americano deve, cotidianamente, enfrentar: “ (...) há o mito da liberdade e a ditadura da opinião pública, (...)” (26) A liberdade para o cidadão norte-americano, segundo Sartre, nada seria além de um mito, o qual, aliás, todo o tempo seria confrontado com a “ditadura da opinião pública”. E esta última, como vimos, funcionaria como uma espécie de “polícia”. Ora, é justamente o seu caráter “ditatorial” e de “polícia” que colocaria a liberdade em sursis... Mas não é exatamente assim, como o próprio Sartre o reconhece, uma vez que a liberdade define-se como uma escolha a partir do seu projeto, e submeter-se, de bom ou mau grado, à opinião pública, é uma escolha: “ (...) a invenção perpétua do que se é, a promessa de ser isto e não outra coisa, em resumo, a liberdade” (27). E é precisamente isto que Sartre percebe nos norte-americanos: “Há os grandes mitos, o da felicidade, o do progresso, o da liberdade, o da maternidade triunfante, há o realismo, o otimismo ; e há os americanos, que, inicialmente, não são nada, que crescem entre estas estátuas colossais e se arranjam como podem no meio delas” (28). O que está em questão nestas frases é, justamente, o nada que os norte-americanos inicialmente são e o que eles se tornam a partir das suas escolhas. Se a liberdade é tão somente um mito, o é porque os norte-americanos assim escolheram. Não devemos nos esquecer da fórmula mais célebre de Sartre já citada neste artigo: “O homem está condenado a ser livre.” E os norte-americanos não são menos “humanos” que os outros...
4. últimas considerações
Jean-Philippe Mathy (29) em um ensaio sobre os textos que Sartre escreveu a partir das suas viagens aos Estados Unidos da América considerou nesta questão que o filósofo francês, como todo viajante, articulou e repetiu uma visão cultural sobre o outro, que, neste caso, seria o “discurso da esquerda europ eia” sobre este país. Mas, tomemos de empréstimo a seguinte fórmula de Pageaux: “Eu quero dizer o Outro (e, frequentemente, por complexas e imperiosas razões) e em dizendo o Outro eu o nego e me digo eu mesmo” (30). A “esquizofrenia cultural” (31) que Sartre teria percebido nos norte-americanos apresenta uma dimensão tanto individual quanto coletiva: perpetuamente escolhendo o conformismo na liberdade, eles, que poderiam ser qualquer coisa, teriam escolhido, finalmente, o anonimato das multidões e o individualismo. Mas isto, devemos repetir, é a “América” de Sartre, cuja gestação se deu a partir de muitos outros textos e de muitas outras imagens, que o nosso autor negou ou repetiu, e ele sabia deste fato claramente: “Esta América, talvez tenha sido um sonho. Em todo o caso, eu serei honesto com o meu sonho: eu o exporei tal como o tive.” (32). Devemos observar que em Francês o sonho é uma acontecimento que é feito, posto que a expressão utilizada neste idioma é “fazer um sonho” ; em Português o sonho é um acontecimento exterior a um sujeito, que passa, então, a “possuí-lo”. Ora, a “América” de Sartre ; e de resto, como a de Céline, a de Beauvoir, a de Chateaubriand etc ; é uma construção ; talvez onírica ; feita de lembranças, passagens e impressões. E é justamente por isso que a liberdade, o individualismo e o conformismo estão tanto nos cidadãos norte-americanos quanto nas numerosas páginas de O ser e o nada.
notas
1
Não é nossa intenção escrever uma propedêutica sobre a questão da liberdade no pensamento de Sartre, discorreremos sobre este tema na medida em que esclarecerá a metáfora espacial do nosso autor. Sobre este conceito recomendamos ao leitor as seguintes leituras: 1) Bornheim, Gerd. Sartre. São Paulo: Perspectiva, 2005, capítulo 14, A liberdade. 2) Silva, Franklin Leopoldo e. Ética e literatura em Sartre. São Paulo: Unesp, 2004, capítulo V, Liberdade e valor. 3) Knee, Philippe. Qui perd gagne. Sainte-Foy: Presses de l’Université Laval, 1993, capítulo I, Le problème moral comme ambiguïté. 4) Jeanson, Francis. Sartre. Paris : Seuil, 2000.
2
Consultamos a seguinte edição francesa do tratado de Sartre: L’être et le néant. Paris: Gallimard, 2008.
3
Sartre, Jean-Paul. O ser e o nada. Trad.: Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 592.
4
Sartre, Jean-Paul. O ser e o nada. Trad.: Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 590.
5Sartre, Jean-Paul. O ser e o nada. Trad.: Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 590. Destaque do autor.
6
A este respeito, ver: Lima, Adson Cristiano Bozzi Ramatis. Imago Mundi: a escritura do mundo - as cidades norte-americanas sob o olhar de Jean-Paul Sartre. In: Risco revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo, nº 7, 1(2008).
7
A este respeito, ver: Lima, Adson Cristiano Bozzi Ramatis. Imago Mundi: a escritura do mundo - as cidades norte-americanas sob o olhar de Jean-Paul Sartre. In: Risco revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo, nº 7, 1(2008).
8
A este respeito, ver: Cohen, Jean-Louis. Scènes de la vie future. Paris : Flammarion/ Centre Canadien de l’architecture, 1995.
9
Sartre, Jean-Paul. Individualisme et conformisme aux Etats-Unis. In : Situations, III. Paris: Gallimard, 2003, p. 63. Tradução nossa do Francês para o Português. No original lê-se: « Mais il s’agit ici d’un fénomème beaucoup plus spontané et beaucoup plus diffus. »
10
Sartre, Jean-Paul. Individualisme et conformisme aux Etats-Unis. In : Situations, III. Paris: Gallimard, 2003, p. 61. Tradução nossa do Francês para o Português. No original lê-se : « La nation marche avec vous, elle vous donne des conseils et des ordres. »
11
Sartre, Jean-Paul. Individualisme et conformisme aux Etats-Unis. In : Situations, III. Paris: Gallimard, 2003, p. 65. Tradução nossa do Francês para o Português. No original lê-se: “Conformistes par liberté, dépersonalisé par racionalisme, identifiant dans un même culte la Raison universelle et sa nation particulière, tels me sont d’abord apparus les quelques américains que j’ai rencontrés.”
12
Sartre, Jean-Paul. Individualisme et conformisme aux Etats-Unis. In : Situations, III. Paris: Gallimard, 2003, p. 69. Tradução nossa do Francês para o Português. No original lê-se: « Lorsque l’ouvrier est syndiqué, lorsque la propagande couvernamentale et celle du patronat l’ont suffisamment intégré à la communauté, alors on lui demande de se dinstinguer des autres et de faire preuve d’iniciative.» Destaque do autor.
13
Sartre, Jean-Paul. Individualisme et conformisme aux Etats-Unis. In : Situations, III. Paris: Gallimard, 2003, p. 69.
14
Sartre, Jean-Paul. Individualisme et conformisme aux Etats-Unis. In : Situations, III. Paris: Gallimard, 2003, p. 66. Tradução nossa do Francês para o Português. No original lê-se: “(...) New York est la ville la plus conformiste du monde.”
15
Sartre, Jean-Paul. Individualisme et conformisme aux Etats-Unis. In : Situations, III. Paris: Gallimard, 2003, p. 66.
16
Sartre, Jean-Paul. Individualisme et conformisme aux Etats-Unis. In : Situations, III. Paris: Gallimard, 2003, p. 67. Tradução nossa do Francês para o Português. No original lê-se: “Ainsi l’individualisme en Amérique, dans la lutte pour la vie, est surtout l’aspiration passionée de chacun vers l’état d’individu. Il y a des individus comme il y a des gratte-ciels en Amérique, il y a Ford, ila Rockfeller, il y a Flemingway, il y a Roosevelt. Ils sont des modèles et des exemples.”
17
A observar, ainda, que maneira como o filósofo francês compreendeu a relação dos arranha-céus de Manhattan são semelhantes às observações realizadas por Koolhaas, mais de trinta depois: “A disciplina bidimensional da retícula cria também uma liberdade inesperada para a anarquia tridimensional. A retícula define um novo equilíbrio entre o controle e o descontrole, segundo o qual a cidade pode ser ao mesmo tempo ordenada e fluida, ou seja, uma metrópole do caos estrito” (2004. p. 20). Sartre também havia percebido no bairro nova-iorquino uma organização estrita no plano bidimensional e uma “desordem em altura”, e isto lhe foi útil para explicar aos seus leitores franceses questões peculiares à sociedade norte-americana. Ao arquiteto neerlandês, no entanto, não interessa as questões aludidas pelo filósofo francês: o termo “liberdade” significa, no seu texto, “liberdade de construir”, não podendo ser compreendido como um valor moral ; e Koolhaas torna isto claro ao se referir à malha xadrez como “um novo sistema de valores formais” ; repetimo-nos: formais, e não morais. De qualquer sorte, se pensarmos que este texto foi publicado pela primeira vez em 1978, é interessante observar que a influência da metrópole norte-americana no imaginário europeu não perdeu o seu poder evocatório e a sua energia criadora.
18
Sartre, Jean-Paul. Individualisme et conformisme aux Etats-Unis. In: Situations, III. Paris: Gallimard, 2003, p. 67. Tradução nossa do Francês para o Português. No original lê-se: “En ce sens les buildings sont des ex-voto à la réussite, ils sont, derrière la statue de la Liberté, comme des statues d’un homme ou d’une entreprise qui se sont élevés au dessous des autres.”
19
Villes d’Amérique, p. 15. Para maiores detalhes consultar referências.
20
Jean-Paul Sartre. Villes d‘Amérique d’Amérique New York ville, coloniale Venise, de ma fenêtre. Paris: Editions du patrimoine, 2002, p. 31. Tradução nossa do Francês para o Português. No original lê-se: “Chacun est libre, ici, non de critiquer ou de réformer les moeurs, mais de les fuir, de s’aller dans le désert ou dans un autre ville.
21
Sartre, Jean-Paul. O ser e o nada. Trad.: Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 543.
22
Sartre, Jean-Paul. O ser e o nada. Trad.: Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 545.
23
Jean-Paul Sartre. Villes d‘Amérique d’Amérique New York ville, coloniale Venise, de ma fenêtre. Paris: Editions du patrimoine, 2002, p. 31. Tradução nossa do Francês para o Português. No original lê-se: “Ouvertes sur le monde, ouvertes sur l’avenir.”
24
Esta expressão, no O ser e o nada, indica uma espécie de “mentira que se conta a si mesmo”, tenta-se enganar que se é sempre livre, que a liberdade é total e absoluta e a estrutura mesmo do nosso ser, mas não se tenta enganar os outros, mas a si mesmo.
25
Jean-Paul Sartre. Villes d‘Amérique d’Amérique New York ville, coloniale Venise, de ma fenêtre. Paris: Editions du patrimoine, 2002, p. 40. Tradução nossa do Francês para o Português. No original lê-se: “(...) nulle part je sent plus libre qu’au sein des foules new-yorkaises.”
26
Sartre, Jean-Paul. USA Présentation. In: Situations, III. Paris: Gallimard, 2003, p. 97. Tradução nossa do Francês para o Português. No original lê-se: “(...) il y a le mythe de la liberté et la dictature de l’opinion publique.”
27
Sartre, Jean-Paul. USA Présentation. In: Situations, III. Paris: Gallimard, 2003, p. 95. Tradução nossa do Francês para o Português. No original lê-se: “(...) et l’invention perpétuelle de ce qu’on est, et le serment d’être cela et pas autre chose, bref la liberté.”
28
Sartre, Jean-Paul. USA Présentation. In: Situations, III. Paris: Gallimard, 2003, p. 97. Tradução nossa do Francês para o Português. No original lê-se: “Il y a les grands mythes, celui du bonheur, celui du progrès, celui de la liberté, celui de la maternité triomphante, iy le réalisme, l’optisme ; et puis il y a les Américains qui ne sont rien d’abord, qui grandissent entre ces statues colossales ey qui se débrouillent comme peuvent au milieu d’elles.”
29
Professor da University of Illinois. Autor do artigo: L’américanisme est-il un humanisme? Sartre aux États-Unis (1945-46). In: The French Review, V. 62, Nº. 3, p. 465.
30
Pageaux, Henri-Daniel. Recherche sur l’imagologia: da História Cultural à Poética. In: Revista de Filología Francesa. Madrid: Universidade Complutense, 1995, p. 141. Tradução nossa do Francês para o Português. No original lê-se: “Je veux dire l’Autre (et pour d’impérieuses et complexes raisons le plus souvent) en disant l’Autre je le nie et me dis moi-même.”
31
O termo é de Jean-Philippe Mathy. L’américanisme est-il un humanisme? Sartre aux États-Unis (1945-46). In: The French Review, V. 62, Nº. 3, p. 465.
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Sartre, Jean-Paul. Individualisme et conformisme aux Etats-Unis. In: Situations, III. Paris: Gallimard, 2003, p. 59. Tradução nossa do Francês para o Português. No original lê-se: “Cette Amérique, peut-être que je la rêve. En tout cas, je serai honnête avec mon rêve : je l’exposerais tel que je le fais.”
referências bibliográficas
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sobre o autor
Arquiteto e Urbanista pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Mestre em Estudos Literários pela UFES, Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP. Professor Assistente do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Maringá. Autor do livro Arquitessitura: três ensaios transitando entre a filosofia, a literatura e a arquitetura.