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architexts ISSN 1809-6298


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português
Este ensaio sobre arte e história no mundo contemporâneo, trata da reabilitação urbana, da conservação e da preservação dos sítios e edifícios históricos através das proposições críticas de Benjamin, Jameson e Harvey, entre outros

english
This essay about arts and history in the contemporary world deals with urban rehabilitation, preservation of historical sites and buildings through Benjamin, Jameson and Harvey's propositions, among other authors

español
Este ensayo sobre arte y história en el mundo contemporáneo habla sobre la reabilitación urbana y la preservación de edifícios y sitios históricos a través de las propuestas críticas de Benjamin, Jameson y Harvey, entre otros autores


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VALENÇA, Márcio Moraes. La Gioconda, a cidade contemporânea e os centros históricos. Arquitextos, São Paulo, ano 10, n. 117.02, Vitruvius, fev. 2010 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.117/3378>.

€9,00 (algo em torno de R$25,00) é quanto custa o bilhete básico de entrada no Museu do Louvre, em Paris, maravilha imperdível. Barato, se considerarmos que não é possível encontrar um chope, naquela cidade, por menos de €3,50, podendo chegar a €7,00, mesmo naquelas mesinhas de rua. Estando em Paris – a passeio ou a trabalho – é quase obrigatório ir ao Louvre apreciar sua espantosa coleção (são 35 mil obras de arte), sua imponente arquitetura neoclássica/pós-moderna e, muito particularmente – como todos os demais mortais –, a Vênus de Milus (Afrodite) e a Mona Lisa (La Gioconda). (1)

Mona é, em italiano, a abreviação de madona e equivale, no linguajar corrente, a dona, daí dona Lisa (de Giocondo, esposa de Francesco del Giocondo, ou, simplesmente, La Gioconda). Quando criança, tinha-a colada na parede do meu quarto, com fita isolante preta formando uma espécie de moldura, numa reprodução em papel de boa qualidade, rugoso, imitando uma tela, que veio encartada em uma revista sobre história da arte que minha mãe colecionava. A reprodução era pequena e eu imaginava que a tela original fosse enorme e imponente de encher os olhos. Decepção! A tela é relativamente pequena, medindo 77x53 cm, um pouco maior do que a reprodução que eu tinha quando criança. Perde-se na imensidão de paredes e no turbilhão de pessoas e vozes em sua volta. No entanto, aquela mulher com um sorriso “sem graça”, porém enigmático, cativa. Não sei explicar bem por que, mas, talvez, por ser mais um no rebanho, é inevitável, quando em Paris, visitá-la e, quando não, dela lembrar com alguma freqüência. E, sempre que a vejo, volto a me decepcionar tanto com a tela em si quanto com o tal sorriso sem graça. Há muitas versões sobre o enigma do sorriso e da tela, que é a obra de arte mais conhecida no mundo, mas não cabe aqui explorar tal polêmica.

Antes, cabe explicar por que eu resolvi escrever este ensaio, tendo como introdução a tela de da Vinci e o tal sorriso. São vários os motivos, que passo a expor, todos eles, daqui para a frente. Antes de qualquer coisa, é necessário “dar a mão à palmatória” (olha só que expressão histórica!) e reconhecer, nos dois parágrafos introdutórios, o discurso arrogante, pequeno-burguês. Pelo menos, a intenção foi boa. Queria eu resgatar a discussão benjaminiana sobre a obra de arte e a sua aura. Qual o papel da obra de arte hoje, na sociedade globalizada, pós-moderna, se é que assim o é? Como Lisa pôde sobreviver, por 500 anos, passando de mão em mão, de sala em sala, deixando-se rodear por milhares de estranhos e ainda emocionar, cumprindo suas obrigações sociais? Longe de seu criador, do contexto em que foi criada, da sua musa inspiradora, seja ela quem tenha sido, o que significa hoje?

Eis um bom começo para explorarmos um tema bastante atual que domina a discussão acerca da reabilitação urbana, da conservação e da preservação ou não (total ou parcial) dos sítios e edifícios históricos, tanto nos países europeus, onde há um grande estoque de edificações ditas históricas, como, crescentemente, nos centros das cidades brasileiras. Preservar para que, para quem e de que forma? Ao longo dos séculos, as edificações e o traçado urbano foram se modificando de acordo com as “necessidades” de seu tempo (2). Assim, é comum a sobreposição de estilos arquitetônicos, que convivem lado a lado num mesmo sítio ou até numa mesma edificação. São comuns mesmo as sucessivas mudanças de uso. Veja-se o exemplo da Paris de Haussmann, na segunda metade do século XIX, ou da reforma monumental da Alta em Coimbra, na segunda metade do século XX.

Para Fredric Jameson (2004), o que define a chamada “pós-modernidade” não é apenas a mercantilização da cultura, mas também a culturalização das mercadorias. As mercadorias são aculturadas por meio da mídia, da publicidade, do design, da grife. Não é só a utilidade prática do produto que vende, mas a sua imagem, que é produzida através de complexos sistemas de representação, ou ainda a utilidade que tem na manutenção e promoção da sociabilidade e do status quo. O pós-modernismo não se refere apenas ao “estético-estilístico”, mas a uma lógica específica da produção em que o cultural tem um lugar funcional específico. David Harvey (2002) acrescenta que, para o capital, o investimento nos circuitos secundário (imobiliário) e terciário (cultura, educação, ciência e tecnologia) intensifica-se sempre que há uma crise no circuito primário (no qual é produzida a maior parte das mercadorias). No mundo contemporâneo, o desenvolvimento da mídia, a promoção de eventos culturais e artísticos, a museificação (democratização e popularização da arte ou negócio?) são marcas indeléveis. Se isso significa estar este mundo em crise ou ser essa promoção um dos produtos da crise, na busca de sua superação, a reabilitação urbana se apresenta como espaço privilegiado em que investimentos em ambos os circuitos (secundário e terciário) podem acontecer simultânea e combinadamente e ainda promover a expansão do circuito primário através do maior dinamismo comercial e do setor de serviços.

Vem-me, agora, à mente uma imagem muito peculiar: a vista que se tem do alto, em Alfama, bairro antigo, de influência moura, em Lisboa. Há 10-15 anos atrás, a vista dos telhados que forma os labirintos de ruas, indicava uma certa decadência, suscitando o antigo. Muitos eram os edifícios em ruína. O casario de cor branca e os telhados encurvados, tudo manchado pelo tempo, dava aquela impressão de abandono e autenticidade histórica. Não o era necessariamente. Muito tem mudado no bairro ao longo dos anos. Como muito pouco restou do terremoto que o atingiu em 1755, de mouro, quase não há mais nada. Hoje, no entanto, para o deleite dos turistas e visitantes, muito especificamente após os vultosos investimentos realizados a partir da EXPO-98, as edificações de variadas escalas foram sendo reformadas e pintadas. (O próprio sítio foi modernizado, com a construção de estacionamentos, calçadas, largos, várias infra-estruturas e alargamento de ruas.) As edificações têm hoje pintura impecavelmente branca e seus telhados são alinhados, homogeneamente vermelhos, novinhos. Às vezes, pergunto-me se o que foi realizado pode ser entendido como preservação ou se seria melhor definido como reforma (ou qualquer outro “re”). Se é uma reforma, indicando mudança no seu aspecto físico, estilístico, no seu uso etc., por que ela tem de seguir – inclusive no que diz respeito a fachadas e telhados – o modelo “original”? Se o modelo original não mais atende às necessidades do hoje e necessita de atualização, o que da edificação deve ser preservado e como fazê-lo? Preservar fachadas e telhados apenas? Por quê? Quem decide?

Sei que essas questões dizem respeito às mesmas preocupações contidas e tratadas de forma muito precisa e incisiva nas Cartas de Atenas de 1931 e de Veneza de 1964 e, com alguma polêmica, na Carta de Atenas de 1933; no entanto, são tão atuais hoje como antes. Seriam as fachadas limpas e brancas, os telhados alinhados e vermelhos, os becos e as ruas com calçamento de pedras assentadas milimetricamente como o sorriso da Mona Lisa? Lá se encontra uma espécie de cidade-museu ou bairro-museu, cujo acesso se dá unicamente e a muito custo para as massas de visitantes solváveis? Quais as conseqüências para os moradores da área, principalmente os menos favorecidos, que têm de passar a conviver com este novo uso do espaço em que reside ou partir? Enfim, qual seria o destino adequado para o crescente estoque de edificações degradadas nos centros das cidades históricas mundo afora e, em particular, o das brasileiras?

Recentemente, reli o famoso texto de Walter Benjamin “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”. No texto, escrito na década de 1930, Benjamin (1985) escreve que, embora para cada modo de produção corresponda um complexo sistema de representação, mudanças nos setores culturais ocorrem com uma grande defasagem de tempo em relação às transformações na estrutura econômica. Na era do taylorismo, a produção em série gera objetos iguais, ou seja, possibilita a reprodução de vários modelos “originais” (3). Em suma, “[…] na era da reprodutibilidade técnica, a arte perdeu qualquer aparência de autonomia” (p.176). A reprodução, segundo Benjamin, elimina a “existência única” da obra de arte, o seu “aqui e agora”, questionando a sua autenticidade e pondo em risco a sua “aura”. Ele escreve:

A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser reproduzida. […] a questão da autenticidade das cópias não tem nenhum sentido. […] toda a função social da arte se transforma” (p.171).

Esse texto, tão provocativo e – hoje! – tão aparentemente simples, serviu de base ou influenciou um número considerável de estudos que se seguiram – incluindo, aqui, os de Jameson, Baudrillard, de Certeau e Giard e Harvey –, em relação ao papel da arte e da cultura na sociedade contemporânea. Não é difícil, dessa forma, inserir a questão do “patrimônio histórico” nessa discussão sobre a reprodutibilidade técnica. Desde, pelo menos, a década de 1960, forte dinâmica econômica, freqüentemente associada ao turismo e aos eventos de negócios, mas também às condições gerais de reprodução das elites locais, tem determinado o que e como preservar, restaurar, recuperar, renovar, revitalizar, requalificar, reformar e/ou reabilitar. Isso nos introduz no pensamento de Michel de Certeau e Luce Giard (1998). Estes afirmam claramente que o patrimônio histórico tem conotações simbólicas e políticas, ligadas ao exercício do poder, que estabelece os monumentos e outros objetos que devem ou não ser preservados. O patrimônio histórico é o patrimônio histórico das elites ou é aquele por elas escolhido. Voltaremos a de Certeau e Giard mais à frente.

A partir de meados da década de 1960, Harvey (2002; 2005) explica, não só os centros de cidades americanas (Boston, Baltimore etc.), abandonados pelas elites e pelas classes médias que haviam, no pós-guerra, migrado para os subúrbios, mas também os centros de cidades do mundo todo (Barcelona, Londres, Lisboa, Bilbao etc.) vêm sofrendo intervenções – a la operações urbanas – que visam revitalizar e (é este o termo?) “requalificar” as áreas centrais. Em seguida ao sucesso do modelo de Barcelona, após os jogos olímpicos de 1992, Manuel Castells e Jordi Borja (1996) passaram a sistematizar o que, na era do globalismo, deveriam fazer os poderes públicos locais na promoção de suas cidades num ambiente cada vez mais competitivo. Borja passou a compor o que ficou conhecido por “consultoria catalã” de planos estratégicos. Carlos Vainer (2000) – ver também Arantes (2000) sobre a gênese e natureza desse novo fenômeno – bem expõe suas três principais características: constituir a cidade-empresa, a cidade-mercadoria e a cidade-pátria, para a qual o marketing urbano é fundamental. O planejamento estratégico de cidades estabelece-se, assim, como uma forte característica do desenvolvimento urbano contemporâneo, a partir dos anos 1990, dando novo impulso às reformas (ou chamem o que quiser!) dos centros e outras áreas degradadas das cidades (4). Esse planejamento não enxerga mais a cidade como um todo, mas as suas partes como nichos que devem ser espetacularizados. (Trata-se de um urbanismo pós-moderno?)

De volta a de Certeau e Giard (1998, p.135) (5) – referindo-se ao contexto francês ou, mais precisamente, parisiense, mas que é perfeitamente aplicável a outros casos –, estes escrevem:

No mundo urbano, há em primeiro lugar coisas que falam por si. Elas se impõem. Elas estão lá, fechadinhas nelas mesmas; são forças silenciosas. Elas têm personalidade. Ou, melhor ainda, elas são personagens no cenário urbano. Personagens secretas. [...] como ‘fantasmas’”.

E mais na frente (p.135/6):

Esses objetos primitivos, vindos de passados indecifráveis, são para nós o equivalente aos deuses da antiguidade, os ‘espíritos’ do lugar. Como seus ancestrais divinos, esses objetos desempenham papel de atores na cidade, não por conta do que fazem ou dizem, mas porque seu pertencimento é silencioso, como também sua existência, escondida da atualidade”.

Os autores explicam que, independentemente dos monumentos do “patrimônio nacional”, eleitos pelas elites por intermédio dos técnicos do planejamento (“de acordo com quais critérios?”, perguntam), há uma série de objetos, os tais “fantasmas”, que se impõe no imaginário dos cidadãos, imprimindo sua forte presença na cidade, muito antes de receberem o devido reconhecimento oficial. São o que chamam de “heterodoxias”. Daí, uma vez “restauradas”, ou seja, incorporadas a este corpo chamado “patrimônio” em conseqüência do desenvolvimento urbano oficial, essas heterodoxias se transformam em uma “nova ortodoxia cultural”. Transformados e reconhecidos, esses objetos passam a gozar de uma espécie de “seguro de vida” (transformando-se em “peças de museu”?), com a obrigação, no entanto, de desempenhar o papel que se espera deles. Eles são “modernizados”, renovados, o que inclui uma forte contradição: “[...] devem a um só tempo proteger e civilizar aquilo que é velho, deixar novo aquilo que é velho” (p.137). Dizem ainda os autores: “Por razões tanto econômicas como nacionais e culturais, retorna-se a um passado que tem envelhecido menos do que o que é novo.” (p.134, grifo adicionado). Mas isso não impede, ressaltam os autores, que esses objetos renovados sejam locais de trânsito entre o passado e “os imperativos do presente”. Mais: eles representam a multiplicidade de períodos, grupos e práticas sociais – a tal heterodoxia! Essa aparente contradição compõe um movimento circular de alienação/desalienação.

É também comum a renovação ter como resultado a mudança dos beneficiários, já que é também comum estar atrelada à “lei do mercado”:

Essa restauração urbanística é uma ‘restauração’ social”. [...] “Através de seu próprio movimento, a economia da restauração tende a separar os lugares de seus moradores. Uma inadequada apropriação de sujeitos acompanha a renovação de objetos” (p.138). (6)

Desconfio que essa estória toda se aproxime, ou talvez se enquadre, no que Jean Baudrillard (1991) chama de simulacro em seu livro já clássico. Talvez, a imagem mais utilizada para explicar o conceito baudrillardiano seja o da pessoa que, não estando, mas pensando estar doente, passa a apresentar sintomas da doença. Ora, se a pessoa acredita estar doente e com isso torna-se realmente doente, o que era falso torna-se verdadeiro, porém numa forma transformada. Eis, portanto, o simulacro: a verdade que se constrói, falseando a realidade. Por analogia, voltemos ao nosso caso. No contexto do que contemporaneamente é chamado de planejamento estratégico de cidades, já mencionado, difundem-se, em muitas cidades, políticas urbanas de reabilitação (ou, de novo: recuperação, revitalização, renovação, requalificação, reforma, restauração) cujos formatos muito se assemelham entre si. Tais políticas são voltadas à população solvável de visitantes ilustres e abonados locais. Recuperação de fachadas e telhados, como em Alfama, também já mencionada, e no Bairro Alto em Lisboa, é medida cada vez mais adotada em todo o mundo, em particular no Brasil (7). Pois bem: o marketing urbano promove essas políticas e esses bairros “revitalizados” de tal forma que todos nós passemos a acreditar no simulacro. Explico: passamos a acreditar que, no passado, as pessoas viviam num mundo feliz e prazeroso, com ruas perfeitamente calçadas e limpas, repletas de lindas e harmoniosas casas e edificações coloridas (ou brancas, se mouras; ou de outra forma, dependendo do caso, como se fossem “parques temáticos”), onde se situavam cafés, bares, restaurantes, lojinhas de todos os tipos imagináveis de bugigangas etc. A convivência com animais de variadas espécies e tamanhos (cavalos, bois, cabras, porcos, galinhas, ratos, baratas, mosquitos etc.) como também com epidemias, lama, umidade, calor ou frio excessivo, fumaça, poeira, incêndios, transportes precários, violência sem lei, dominação oligárquica patriarcal, escravismo, repressão às mulheres e qualquer alteridade, tudo isso se esvai. O colorido radiante – o preferido – das casinhas coloridas – o simulacro – transforma-se na referência ao passado que muitos de nós sonhamos freqüentar e passar a “reviver” em viagens curtíssimas e caras, muitas vezes pagas a prestação e juros.

Concluo dizendo que, na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte – em que tudo se reproduz em série, ou seja, não mais existe uma peça original única, mas vários originais –, todas as principais cidades desenvolvem seus “centros”, renovam, inventam e reinventam seus “patrimônios” (nem sempre históricos, mas que se tornam simulacros da história). As cidades, em vista da crescente competição internacional, são, nesse aspecto, “todas iguais”. Persegue-se o caminho do dinheiro: turistas e visitantes solváveis (consumidores e investidores). Para isso se concretizar mais intensivamente, nas últimas décadas foi desenvolvido o planejamento estratégico de cidades. Construíram-se hotéis, infra-estrutura e serviços disneylandizados; produziram-se tradições culturais, imprimiram-se marcas próprias num mundo que, para as elites, tem se tornado cada vez mais homogêneo com suas infra-estruturas e serviços VIP (8) (aeroportos, centros de convenções, hotéis, shopping centers, parques temáticos, condomínios fechados, ou seja, espaços proibidos para os não solváveis, indesejáveis, nos quais circulam as elites). Objetos aparentemente – ou anteriormente – ímpares perderam sua “aura”, a referência ao contexto de sua criação, transformando-se em objetos “fetishizados”. Até a Mona Lisa, antes solitária, passou a receber milhões de visitantes por ano. (A museificação dos objetos de arte instituiu a reprodutibilidade da audiência.) O contraponto a esta tendência são os “fantasmas”, que de Certeau e Giard falam: esses objetos que se impõem sobre nós no cotidiano sem que sequer percebamos, tornando-se atores sociais “invisíveis”. E assim continua a história das cidades num contínuo de alienação/desalienação. Concluo, assim, sem concluir: não tenho todas as respostas às perguntas formuladas, nem sei se o modelo atual de revitalização de centros históricos é bom ou mau, mas, em muitos casos, que fica bonito, fica!

notas

1
Com aproximadamente 10 milhões de visitantes por ano, é o museu mais visitado do mundo.

2
Uma referência a esse respeito é a obra de David Harvey sobre a dinâmica do capital – que constrói, destrói e reconstrói a cidade a sua semelhança em função das suas necessidades de acumulação (ver Valença, 2008).

3
A reprodução em si não era, no início do século XX, de todo uma novidade. Desde a Idade Média, as xilogravuras reproduziam desenhos. No século XIX, vieram as litografias e, depois, a fotografia, o som, o cinema etc.

4
Numa linha de raciocínio similar à de Steve Pile e Nigel Thrift, Fernandes (2003, p.8) escreve: “[...] verifica-se um processo de uniformização à escala européia [...], o que sai reforçado pelo facto da intervenção sobre o espaço público fazer parte do discurso e da prática em quase todas as cidades do mundo ocidental, com centros de cidade e outras áreas comerciais a ser pedonizados, tratados e animados com cafés, restaurantes, mercados, festivais, espetáculos, etc.”

5
Todas as traduções são livres.

6
Para de Certeau e Giard (1998), os moradores originais deveriam ter o direito de escolher permanecer ou não no sítio restaurado/renovado, inclusive “selecionar sua própria estética”. Não é o que tem acontecido na França ou no Brasil.

7
O arquiteto Marcelo Ferraz refere-se a uma certa “pelourinização” dos centros históricos das cidades brasileiras.

8
Sigla de Very Important Person (pessoa muito importante).

referências bibliográficas

AMORIM, Luis Manuel do Eirado. “Edifício Luciano Costa: um enfoque apositivo”. Arquitextos, outubro de 2000.

ARANTES, Otília Beatriz Fiori. “Uma estratégia fatal. A cultura nas novas gestões urbanas” em ARANTES, Otília; VAINER, Carlos B.; MARICATO, Ermínia (Orgs.). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’água, 1991.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BIDOU-ZACHARIASEN, Catherine (Coord.). De volta à cidade. Dos processos de gentrificação às políticas de “revitalização” dos centros urbanos. Trad. Helena Menna Barreto Silva. São Paulo: Annablume, 2006.

CASTELLS, Manuel e Borja, Jordi. “As cidades como atores políticos”. Novos Estudos CEBRAP, n.45, 152-166, julho de 1996.

CERTEAU, Michel de; GIARD, “Luce. Ghosts in the city”. In: CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. The practice of everyday life. Volume 2: Living & cooking. Londres: University of Minnesota Press, 1998.

DEL RIO, Vicente. “Em busca do tempo perdido. O renascimento dos centros urbanos”. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp028.asp>. Acesso em: 4/9/2007.

FERNANDES, José Alberto Rio. “A reestruturação comercial e os tempos da cidade”. Comunicação apresentada no Colóquio “Temps dês courses, course des temps”, organizado pela Comissão Nacional de Geografia Francesa e pela Universidade de Lille-Roubaix, em Lille, em 21 e 22 de novembro de 2003.

HARVEY, David. Condição pós-moderna. Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 2002.

HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.

JAMESON, Fredric. “Teorias do pós-moderno” em GAZZOLA, Ana Lúcia de Almeida. (Org.). Fredric Jameson. Espaço e imagem. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.

VAINER, Carlos B. “Pátria, empresa e mercadoria. Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico Urbano” em ARANTES, Otília; VAINER, Carlos B.; MARICATO, Ermínia (Orgs.). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000.

VALENÇA, Márcio Moraes. "Ensaio sobre a dinâmica do imobiliário em Harvey” em Cidade (i)legal. Rio de Janeiro: MAUAD, 2008.

sobre o autor

Arquiteto pela UFPE, mestre e doutor pela University of Sussex, com pós-doutorado na LSE. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Professor do Departamento de Políticas Públicas e Diretor do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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