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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
A partir de uma abordagem mais ampla do que seja o direito à cidade, pretende-se explicitar como o atual programa Minha Casa, Minha Vida retarda o desenvolvimento social na medida em que distancia os pobres de uma coexistência social abrangente

english
From a broader approach about what the right to the city is, the article seeks to explain how the program Minha Casa, Minha Vida retards social development since it distances poor people from a comprehensive social coexistence

español
A partir de una perspectiva más amplia de lo que es el derecho a la ciudad, se pretende explicitar cómo el actual programa Minha Casa, Minha Vida retrasa el desarrollo social en la medida en que distancia a los pobres de una coexistencia social inclusiva


how to quote

NASCIMENTO, Denise Morado; TOSTES, Simone Parrela. Programa Minha Casa Minha Vida: a (mesma) política habitacional no Brasil. Arquitextos, São Paulo, ano 12, n. 133.03, Vitruvius, jun. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.133/3936>.

Publicidade oficial do programa “Minha Casa Minha Vida” [Caixa Econômica Federal / Governo Federal]

Introdução

Lançado pelo governo federal brasileiro em Março de 2009 (2), o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) tem como finalidade criar mecanismos de incentivo à produção e à aquisição de novas unidades habitacionais pelas famílias com renda de até dez salários mínimos, divididas como segue:

- famílias com renda até 3 salários mínimos (SM): 400 mil unidades;

- famílias com renda de 3 a 6 SM: 400 mil unidades;

- famílias com renda de 6 a 10 SM: 200 mil unidades.

O PMCMV é considerado como “uma das principais ações do governo Lula em reação à crise econômica internacional – ao estimular a criação de empregos e de investimentos no setor da construção – e também como uma política social em grande escala”. (3) Um dos mais fortes argumentos do governo a favor do PMCMV é a real possibilidade da redução do déficit habitacional brasileiro, hoje estimado em 6.272.645 unidades, sendo 18,11% do déficit concentrado nas três maiores regiões metropolitanas brasileiras. (4) Entretanto, uma análise mais detalhada destes dados quantitativos faz-se necessária:

Os dados revelam que na faixa de renda até 3 SM, indubitavelmente a mais necessitada de respostas imediatas quanto ao acesso à terra, à infraestrutura, aos serviços urbanos, à moradia e ao crédito, o déficit de 5.607.745 unidades pode ser reduzido pelo PMCMV em 7,13%, enquanto que na faixa de 3 a 10 SM o déficit seria reduzido em 99,63%.

O cálculo do atual déficit habitacional brasileiro é orientado por uma metodologia baseada em dois aspectos distintos: o quantitativo do déficit habitacional (dimensionamento do estoque de habitações) e a inadequação de moradias (especificidades internas desse estoque). A noção de déficit habitacional como número a ser quantitativamente superado cai por terra na medida em que há no país um estoque de seis milhões de domicílios vagos. (5) Essa estatística revela não só a má distribuição das moradias, em razão da atuação dos agentes do mercado privado, mas também o baixo poder aquisitivo dos pobres no acesso ao estoque habitacional adequado.

Várias críticas ao PMCMV surgiram paralelamente à implementação do programa. Rolnik e Nakano afirmam que há uma confusão sobre o que seja “política habitacional com política de geração de empregos na indústria da construção”. (6) Arantes e Fix alertam que “o pacote habitacional e sua imensa operação de marketing retomam a “ideologia da casa própria” que foi estrategicamente difundida no Brasil durante o regime militar [...].” (7) Maricato explicita que o PMCMV não se refere “à matéria urbanística e deixa a desejar em relação aos temas da habitação social (se considerarmos tudo o que avançamos conceitualmente sobre esse tema no Brasil).” (8)

As críticas ao PMCMV, apresentadas nesse artigo, referem-se ao direito à cidade e às articulações da habitação com o espaço urbano especialmente em empreendimentos para famílias com renda de até 3 SM.

As unidades de habitação

Os projetos desses empreendimentos são apresentados pelas construtoras, em parceria (ou não) com estados, municípios, cooperativas e movimentos sociais, analisados e contratados pela Caixa Econômica Federal (CEF), instituição bancária e agente fiscalizador das políticas habitacionais brasileiras, que recebe os recursos alocados pela União. (9) O setor de Engenharia da CEF verifica o atendimento às regras estabelecidas: (1) condições do projeto arquitetônico referentes à funcionalidade e segurança (acessibilidade, compartimentação, iluminação, ventilação); (2) avaliação do valor de mercado das unidades habitacionais; (3) orçamento da obra, com foco nos quantitativos de serviços e preços unitários; (4) análise do cronograma físico-financeiro. São 33 itens de projeto organizados pelos seguintes aspectos: porte do empreendimento, terreno e localização, cota de implantação, taludes, desníveis e contenções, pé-direito, acessibilidade, privacidade, impermeabilidade, cobertura, sustentabilidade, estacionamento, segurança.

Os Estados e municípios que oferecerem maior contrapartida financeira, infraestrutura para o empreendimento, terreno, desoneração fiscal de impostos, menor valor de aquisição das unidades habitacionais, bem como receberem impactos de grandes empreendimentos (usinas, hidrelétricas, portos etc.), serão priorizados na alocação de recursos. Limitado em 500 unidades, os empreendimentos são descritos como casas ou apartamentos, conforme:

No que se refere aos espaços internos da habitação, as variações no tamanho e na tipologia – casa ou apartamento – resultam de uma mesma concepção geral baseada na pré-determinação do modo de morar, por sua vez ancorada em um perfil igualmente pré-determinado do grupo doméstico, a saber a família nuclear. Embora este perfil (casal mais filhos) ainda seja majoritário na sociedade brasileira, indicadores recentes têm apontado para tendências de alterações importantes: não só o número de filhos tem diminuído, como tem aumentado o número de famílias com outros perfis, como por exemplo, as chefiadas por mulheres sem cônjuge. (10) Há que se considerar ainda a existência de famílias ampliadas, compostas de membros com graus variados de parentesco e ligação: noras, genros, sobrinhos, netos, afilhados, etc., assim como a existência de disparidades consideráveis entre as diversas regiões do país. Por todos esses motivos, um programa nacional de moradia que considere apenas um perfil de morador incorrerá em generalizações e distorções grosseiras que não atenderão satisfatoriamente todos os grupos a que se destina.

Da mesma maneira, a consideração de cômodos funcionais tais como sala, dormitório, banheiro, cozinha, todos rigidamente separados e definidos de antemão indicam uma consideração das demandas do morar em termos de necessidades universais e genéricas – dormir, cozinhar, descansar, circular – como se estas demandas não fossem culturalmente informadas e singularizadas, passíveis de gerar configurações, arranjos e combinações bastante diversificados. A única menção a possibilidades de alterações diz respeito à especificação do material de janelas e esquadrias para regiões litorâneas.

Trata-se da reprodução da abordagem generalizante típica dos padrões modernistas da arquitetura européia das primeiras décadas do século XX. Foi neste contexto que tomou forma a concepção de espaço em termos de resposta funcional ao que se compreendia como necessidades humanas universais, por meio de uma especialização e correspondência estrita entre espaços e ações: dormir-quarto, cozinhar-cozinha, comer-sala, etc. A setorização tripartida em áreas social, de serviços e íntima corresponde à casa burguesa brasileira de inícios do século XX, tendo se cristalizado em nossa cultura arquitetônica como resposta genérica às demandas do morar. Tal concepção tornou-se um pressuposto de tal modo difundido e assimilado, que continua fortemente presente em grande parte da produção formal de moradia no país. As críticas a esta abordagem, não parecem ter encontrado eco nas abordagens do PMCMV. Azevedo observa que as “necessidades habitacionais não só são diferentes para os diversos setores sociais, como variam e se transformam com a própria dinâmica da sociedade [...]”. (11)

Basta pensar que nos espaços não planejados por arquitetos é muito comum a presença de arranjos espaciais mais complexos, sem a correspondência unívoca espaço-atividade e principalmente atividade-setor, em arranjos mais condizentes com as práticas cotidianas de seus habitantes: a cozinha é muitas vezes um espaço de sociabilidade, e não de mero “serviço” a cargo de trabalhadores domésticos como nas casas de classe média, assim como é usual dormir em espaços que não sejam exclusivamente quartos, uma vez que a especialização de usos em cada espaço nem sempre está presente.

Outro aspecto importante diz respeito à consideração dos parâmetros mínimos explicitados como referência para o dimensionamento dos espaços. Trata-se de mais outra herança da cultura moderna européia, que teve no Existenzminimum da arquitetura alemã uma diretriz que se disseminou em todo o mundo. (12) No PMCMV os parâmetros mínimos tornam-se o limite máximo das unidades, uma vez que estas são entregues prontas e já acabadas, oferecidas como a possibilidade definitiva de moradia. Impõe-se uma solução que irá onerar o orçamento doméstico em um período considerável, e quaisquer alterações e adaptações, ainda que limitadas de antemão, vão demandar ainda mais despesas, acarretando um comprometimento adicional do já exíguo orçamento doméstico. O processo de morar, que deveria pressupor escolhas, participação e tomadas de decisão em diversos níveis e ao longo do tempo, se vê empobrecido e resumido à mera relação de compra de um produto como outro qualquer, com o esvaziamento e empobrecimento de sua dimensão política. 

A necessidade de adensamento não justifica a solução dos apartamentos conforme especificados, uma vez que é possível atender à necessidade de ocupação adensada por meio de soluções espaciais diferentes do mero empilhamento e repetição de unidades e andares-tipo.

Ainda sobre os parâmetros mínimos, outra questão fundamental é compreender em que consiste o “mobiliário mínimo” apresentado. Na verdade nenhum artefato é apenas uma referência dimensional: envolve padrões tecnológicos, culturais e econômicos, inseridos em um sistema de produção igualmente relevante. Mais uma vez evidencia-se a concepção generalizante das necessidades habitacionais. As demandas de uma família da região norte do país não são idênticas às de uma família do sul em uma mesma faixa de renda, e ainda que se considere uma mesma região e faixa de renda, as demandas dos habitantes não são as mesmas.

Pode-se portanto afirmar que do ponto de vista da concepção dos espaços internos das unidades, não há nenhuma proposta de avanço em relação a soluções ultrapassadas de programas/políticas habitacionais anteriores.

O Programa Minha Casa Minha Vida: habitação e urbanização nas cidades brasileiras

Na condição de país periférico, o Brasil testemunha uma evolução de seu espaço que é resultado da conjugação tanto de forças externas pertencentes a um sistema cujo centro encontra-se nos países-polo, quanto de forças internas já existentes, resultantes de conjugações anteriores. (13) No período atual os espaços dos países são pressionados pelas forças da modernização tecnológica, caracterizada pela difusão generalizada da informação e do consumo elaborados no centro do sistema. São várias as formas e conseqüências de tal rearranjo (14) dentre as quais merece atenção a passagem de setores e serviços até então concebidos como direito social – e portanto sob responsabilidade do Estado – para a esfera do mercado e da mercadoria.

A esta tendência global acrescentam-se as particularidades das situações e circunstâncias de cada país. Milton Santos explica os efeitos desta modernização nos países periféricos: a indústria responde cada vez menos à criação de novos empregos, assim como a agricultura, que por ser atrasada ou por estar se modernizando, tem seus efetivos diminuídos; o mercado de trabalho deteriora-se e uma porcentagem elevada de pessoas não tem atividades nem renda permanentes. (15) Ainda segundo Santos, estas implicações da modernização tecnológica são responsáveis pela criação, nos países periféricos, de uma divisão na sociedade urbana, em que há de um lado uma minoria que pode ter acesso permanente aos bens e serviços oferecidos, e do outro lado uma grande maioria sem tal acesso, e cuja remuneração é baixa e o trabalho, no mais das vezes, temporário ou informal.

Do ponto de vista da população pobre, uma questão fundamental relativa à habitação nas condições atuais aqui se coloca: a casa própria seria de fato a forma mais adequada de provimento de moradia para este contingente populacional? Em um importante e pioneiro estudo sobre políticas habitacionais brasileiras, escrito em finais dos anos 70, Gabriel Bolaffi já observava que o aluguel, além de menos oneroso, seria mais adequado para grande parcela da população, sujeita a processos diversos de mobilidade. (16) A oferta de apenas uma entre várias alternativas de provisão de moradia para esta parcela da população significa, além do mais, retirar das pessoas o poder de escolha, decisão e liberdade, pressuposto do exercício da cidadania. A cada vez que se reforça e veicula o “sonho da casa própria”, (e neste sentido o PMCMV não difere em nada das políticas habitacionais do século XX), a modalidade do aluguel é desvalorizada.

Rolnik, em entrevista, afirma: “A gente tem que entender que direito à moradia não é sinônimo de casa própria. A propriedade e o programa de construção da casa própria são uma modalidade. Mas não são a totalidade”. (17) Ao contrário do Brasil, países como Inglaterra, por meio do gerenciamento do estoque habitacional para o aluguel a cargo do governo e das associações habitacionais, oferece locação social (e não bolsa moradia) às famílias de baixa renda.

Por outro lado, diversos estudos têm analisado a significativa produção informal da habitação no Brasil ligada ao recrudescimento da pobreza e seus efeitos na perda de qualidade de todo o habitat urbano. (18) Carlos Nelson F. dos Santos, há mais de 30 anos, chamava a atenção para o fato de o padrão núcleo/periferia estar presente nos espaços e escalas intra-metropolitanos em todas as regiões, assumindo um significado estrutural na organização do espaço brasileiro.

Hoje, pode-se afirmar que “a cidade cresceu, no século XX, para atingir um ambiente construído fisicamente complexo, caótico, maltratado, de desrespeito aos recursos naturais e às possibilidades dos recursos urbanísticos para beneficio da coletividade – uma cidade sem cidadania –, cidade dividida, segmentada entre ricos e pobres e entre cidadãos e não-cidadãos”. (19)

As áreas urbanas centrais das grandes cidades, acessíveis e providas de melhor infra-estrutura, passam a abrigar os usos mais nobres e as atividades de produção mais fortes, incrementando sua ocupação e densidade e empurrando as populações mais pobres para áreas mais distantes. Este processo periférico de crescimento é sustentado pela demanda especulativa: o solo urbano só será acessível à população mais pobre enquanto a ausência ou precariedade da infra-estrutura e de serviços sustentar os baixos preços, e é por isso que na medida em que melhorias vão sendo implementadas, os valores do solo urbanizado aumentam, a pressão especulativa se faz notar e o processo de expansão das periferias recomeça. Desta maneira a expansão contínua da mancha urbana se constitui no padrão geral da urbanização brasileira, sustentando e sendo sustentado pela segregação sócio-espacial.

Este processo reflete a inversão de papéis, atribuições e objetivos relativa à política habitacional e à política urbana: a produção da cidade está de fato nas mãos do mercado privado, responsável pelos loteamentos de periferia. Planos de habitação para a baixa renda que não forem acompanhados por instrumentos capazes de alterar o ciclo da especulação imobiliária e o acesso ao solo urbano vão continuar sendo um paliativo para o problema do morar nas cidades brasileiras.

Muitos dos instrumentos necessários a tal alteração já existem e têm desde 2001, na Lei Federal nº 10.257 (Estatuto da Cidade), suporte jurídico consistente. Entretanto, a distância existente entre a lei e sua aplicação aponta para a complexidade da questão, que não se atendo aos parâmetros estritamente legais, passa pela necessidade de enfrentamento de poderes econômicos e ideológicos nada negligenciáveis na imposição de seus interesses.

O Ministério das Cidades prioriza os municípios candidatos ao PMCMV que implementam os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade que ampliam o acesso à terra urbanizada, como as ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social):  “para que o Programa Minha Casa Minha Vida construa moradias adequadas e bem localizadas é essencial a participação ativa dos municípios mobilizando instrumentos em seus Planos Diretores que favoreçam a disponibilidade de bons terrenos para o programa, especialmente para famílias com renda de 0 a 6 salários mínimos.” (20) Mas a execução de tais instrumentos pressupõe a mobilização político-social ainda não presente nas instâncias públicas brasileiras. Termos consciência de que “é importante demarcar as áreas de ZEIS nas partes mais centrais/consolidadas, equipadas e providas de infra-estrutura do município” (21), não faz-se suficiente em uma mesa de negociação entre associações de moradores, proprietários de terrenos e poder público.

A arquiteta Ermínia Maricato, em entrevista ao programa Sem Fronteiras, alertou: precisamos nos armar de uma “vontade férrea”, essencialmente, em duas frentes – (1) a aplicação do Estatuto da Cidade, no que se refere à função social da propriedade e à regularização fundiária e imobiliária; e (2) o aprendizado do setor privado, ainda retido por um produto de luxo, sobre a produção da habitação para pessoas de baixa renda. (22)

Perguntamos: como é possível evitar que a pressão dos grandes proprietários de terras, do setor imobiliário e da indústria da construção civil não se sobreponham ao desejo do poder público obter terrenos bem localizados e construir adequadamente? Como impor a vontade férrea dos agente públicos aos agentes privados? Como romper com a política habitacional que exclui os cidadãos de seus processos de decisão, transferindo a responsabilidade da moradia ao poder privado?

A efetividade de qualquer plano habitacional só se dará na medida em que forem consideradas estas articulações complexas. Parece-nos que o PMCMV não apresenta diretrizes que nos façam acreditar na mudança do rumo dessa história.

O aniquilamento do espaço público

A cidade é lugar visível da arquitetura monumental e de construções ou áreas embelezadas, que não só veiculam os valores da classe dominante como também expulsam para a periferia os cidadãos da “última fila” – os condenados a permanecer no lugar. (23)

Embora o compartilhamento de espaços seja o pressuposto para que os cidadãos se conheçam e, de fato, vivenciem a cidade, a resposta da arquitetura tem sido a proposição de espaços alicerçados por estratégias que controlam o estranho ou estimulam a vigilância – zonas monofuncionais, condomínios, conjuntos habitacionais, centros comunitários, shopping centers, clubes, guaritas, muros e cercas. Determina-se, assim, dois mundos de vida naturalmente separados – o que está dentro e o que está fora. No âmbito da cidade, o centro urbano e a periferia.

Nas regras estabelecidas pela CEF para o PMCMV, não há qualquer diretriz específica em relação ao projeto do espaço público (ou comum), tanto no que diz respeito ao uso coletivo quanto ao dimensionamento, com exceção:

> Terreno e localização: prever solução de atendimento por equipamentos e serviços comunitários usuais para empreendimentos habitacionais.

> Segurança: iluminação de áreas comuns - deve compor o projeto das áreas comuns.

Temos, assim, o enclausuramento das famílias de renda até 3 SM em zonas utilitárias assistencialistas (moradia somada à equipamentos usuais, promovidos desde a arquitetura moderna) e a vigilância do estranho, a ser iluminado. Por um lado, o não entendimento do espaço público como acolhedor da diversidade social ao lado da expulsão do morador pobre para a periferia urbana reforçam ações de agentes interessados em potencializar os fluxos de capital. E, por outro lado, o impedimento da construção da cidadania na medida em que a percepção de que se possa ter do outro é brutalmente reduzida. Não se promove a integração dos pobres à vida da cidade, a não ser de forma segregada e alienada, como mão de obra a ser acomodada em ambientes distantes aos quais falta a diversidade necessária à vitalidade do habitat urbano.

As especificações do programa permitem concluir que o espaço público é pensado de modo simplista, reduzido à mera exterioridade: algo que se localiza além dos limites dos espaços privados, e como tal, automaticamente disponibilizado e favorecido. Os espaços públicos, como parte importante da esfera pública de qualquer sociedade, exigem para sua constituição plena a possibilidade de ação, liberdade de escolha, participação e engajamento, que devem estar presentes na constituição mesma dos espaços privados, e não quando se sai deles.  Como lidar com a desmaterialização do espaço público promovida pelos mecanismos de controle sócio-espaciais?

A (mesma) política habitacional no Brasil

Historicamente a moradia no Brasil tem se reduzido a um produto como outro qualquer e o morador a consumidor passivo, cujas opções resumem-se a escolhas limitadas dentro de um rol pré-concebido de opções determinadas por outrem. Substitui-se o direito à moradia, com as implicações políticas de participação em todas as etapas do processo, pelo mero acesso a uma unidade habitacional definida a partir de padrões de início do século passado.

A Caixa Econômica Federal financiou 1 milhão de  moradias em 2010, das quais 936,5 mil unidades tiveram intervenção direta da Caixa, com investimentos de R$ 51,3 bilhões. Foram beneficiadas 91 mil famílias com renda entre dois e três salários mínimos, bem abaixo da meta estabelecida de 400 mil moradias. (24)

O PMCMV teve seus recursos ampliados em Março de 2010, em plena campanha eleitoral. A perspectiva é de contratação para a construção de 2 milhões de casas, sendo 60% para famílias com renda de até 3 SM vigentes em 2009. (25) Reforça-se, um ano depois, a disparidade entre a promessa e a resposta efetiva ou prevista.

Sob o ponto de vista da CEF, representada na fala do pelo seu vice-presidente Jorge Hereda, o PMCMV “faz parte de uma política anticíclica que tem por objetivo aumentar os investimentos no setor da construção civil e garantir a geração de emprego e renda e, assim, mitigar os impactos da crise econômica mundial”. (26) Ora, ingenuidade entender que tais argumentos possam significar o rompimento de uma política que historicamente vem reforçando a mercantilização da casa própria por meio da associação à produtividade lucrativa da indústria da construção civil. O PMCMV “não será uma política anticíclica social, mas uma política imobiliária que terá efeitos de médio prazo sobre o mercado de trabalho.” (27)

O governo federal, por meio do Ministério das Cidades, reconhece a produção de moradia social em zonas consolidadas e bem localizadas como necessária em contraponto ao planejamento historicamente construído por padrões de regulação urbanística elitistas e segregadores. (28) Porém, apresenta diretrizes em seus programas habitacionais que nos fazem acreditar na continuidade desses padrões.

Em tese, os recursos do PMCMV poderiam ser direcionados para a produção de moradias em terrenos bem localizados e dotados de infraestrutura. Na prática, o poder público alimenta o setor imobiliário na medida em que cabe às construtoras não só definir terreno e projeto (localização e tipologia) bem como aprovar legalmente o empreendimento.

Na outra ponta, a CEF garante a venda integral das unidades além de eliminar os riscos de inadimplência dos compradores. (29) Imprime-se aqui as regras das construtoras e incorporadoras nos programas habitacionais, ou seja, a inserção da casa como produto do mercado imobiliário, de modo a garantir maior rentabilidade do capital dessas empresas. Sendo assim, não serão a boa localização, a existência de infraestrutura, a qualidade espacial dos projetos, as diretrizes para a coexistência social, fatores decisórios na produção habitacional quando regida pelas construtoras.

Recentemente, os valores para financiamento de imóveis com recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) foram elevados para até R$ 170 mil, nas regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro e do Distrito Federal, e nas outras capitais do país, para até R$ 150 mil, com o argumento de que o aumento “vai beneficiar as famílias de baixa renda inclusive as que participam do programa Minha Casa Minha Vida”.(30) Rolnik analisa as mudanças: “primeiro, não há evidências de que o aumento da renda dos brasileiros esteja acompanhando o aumento dos preços dos imóveis; nesse cenário, a compra da casa própria para a população de baixa renda ficará cada vez mais inacessível; e, claramente, os subsídios públicos estão indo parar no bolso dos proprietários”. (31)

Quase meio século depois, permanece na atual política habitacional a mesma lógica de funcionamento do BNH, estruturado pelo aumento do consumo da moradia e pela garantia do trabalho das empreiteiras. A preocupação com a racionalização e a mecanização de processos em atendimento às premissas da produção em massa, fomentadas pelo desejado e necessário desenvolvimento da indústria da construção, impediu que o BNH incorporasse a promoção da autonomia dos usuários, a desburocratização dos financiamentos, a reabilitação dos centros urbanos, a provisão da moradia para a população de baixa renda e a geração de espaços públicos democraticamente acessíveis. Parece que a lição sobre a política habitacional do período BNH ainda há de ser aprendida. (32) O crédito imobiliário àquela época jamais alcançou as famílias com renda de até 3 SM, expulsando-as para lotes com moradias autoconstruídas ou grandes conjuntos habitacionais, ambos localizados nas periferias urbanas sem infraestrutura, serviços, equipamentos e empregos.

Finalizando...

A efetividade do programa precisa ser avaliada não só do ponto de vista quantitativo, mas principalmente qualitativo. A análise dos pressupostos e das decorrências dos parâmetros utilizados tanto na definição dos espaços das habitações como dos espaços externos resultantes e de seus impactos na conformação das cidades, permite considerar que as contribuições do programa são muito pequenas quando não inexistentes. O programa não propõe avanços, nem incorpora avanços já consolidados na abordagem dos espaços e no entendimento do que seja o direito à cidade. O morar é um processo definido por uma rede articulada e complexa de agentes, de relações e de interações que ultrapassam em muito o âmbito estrito do espaço da edificação, implicando em sua constituição processos sócio-espaciais mais amplos em nível local, nacional e mesmo mundial. Morar nas cidades brasileiras implica absorver com maior ou menor comprometimento os padrões de desigualdade e segregação característicos do nosso espaço e de nossa sociedade, cujas características afetam diretamente a situação dos indivíduos, suas possibilidades e perspectivas. O espaço não é ocupado ao acaso, e a transformação das dinâmicas que definem os padrões qualitativos e quantitativos desta ocupação é fundamental para o enfrentamento da questão habitacional brasileira, indissociada dos padrões gerais de nossa urbanização. Desta maneira, habitação e urbanização se conformam mutuamente, refletindo e definindo condições mais amplas de nossa economia, de nossa sociedade e da inserção do país no sistema mundial.

O PMCMV não apresenta explicitamente possibilidades de transformação de muitos dos problemas de nossas cidades, reproduzindo a consideração isolada dos aspectos que condicionam a qualidade do habitat urbano. Ao reduzir o morar às unidades habitacionais, sem menção às questões que definem a localização e suas relações com o espaço e a vida mais ampla das cidades, o Estado brasileiro acaba por colaborar na reprodução de vários dos problemas de nossa urbanização, perdendo uma grande oportunidade de transformar os padrões perversos característicos dos espaços de nossas cidades.

notas

1
Extraído do artigo: MORADO NASCIMENTO, Denise; TOSTES, Simone Parrela. “Espaço público e políticas habitacionais lusófonas”. In: Congresso Internacional (DA) Habitação no Espaço Lusófono, 1., 2010, Lisboa. Lisboa: ISCTE/IUL, 2010, p.1-23. [CD]

2
Criado pela Medida Provisória 459, de 25/03/2009, convertida na Lei 11.977, de 07/07/2009.

3
ARANTES, P. F.; FIX, M. “Como o governo Lula pretende resolver o problema da habitação”. In: Caros Amigos, 2009. Disponível em: http://carosamigos.terra.com.br. Acesso em Ago. 2009.

4
FJP/CEI – Fundação João Pinheiro/Centro de Estatística e Informações. Déficit habitacional no Brasil 2007. Brasília: Ministério das Cidades, 2009.

5
Id., 2005. p.31.

6
ROLNIK, R.; NAKANO, K. “As armadilhas do pacote habitacional”. In: Le Monde Diplomatique, São Paulo, n. 20, p.4-5, mar. 2009. p.4.

7
ARANTES, FIX. Op. Cit.

8
MARICATO, E. “O ‘Minha Casa’ é um avanço, mas segregação urbana fica intocada”. In: Carta Maior, 27/05/2009. Disponível em http://www.cartamaior.com.br. Acesso em Mar. 2010.

9
Todas as informações sobre as operações e diretrizes do PMCMV foram retiradas da Cartilha completa disponível em: <http://downloads.caixa.gov.br/_arquivos/habita/mcmv/Cartilha_Completa_do_Programa_Minha_Casa_Minha_Vida_V1.pdf>

10
Cf. IBGE. Disponível em htpp://www.ibge.gov.br/home/.12062003indic2002.shtm, acessado em 23/05/2010

11
AZEVEDO, Sergio de.  “A Questão da Moradia no Brasil: necessidades habitacionais, políticas e tendências”. In: FERNANDES, Ana e SOUZA, Angela Gordilho. Habitação no Brasil: reflexões, avaliações e propostas. Salvador: FAUFBA/PPGAU, 2004. p. 84.

12
Embora em termos de dimensionamento fossem até mais generosos: o apartamento modernista padrão com sala e dois quartos na Alemanha em finais dos anos 20 media entre 40 e 43 m², cf. TRAMONTANO, M. Habitação moderna. A construção de um conceito. São Carlos: EESC, 1993. p. 57.

13
SANTOS, M. O espaço dividido. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.

14
Assim como são variadas as suas interpretações. Consideramos aqui a passagem do fordismo à acumulação flexível, cf. HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo:  Edições Loyola, 2000. Ver também MARICATO, E. Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violência. São Paulo: Hucitec, 1996.

15
SANTOS, M. Op. Cit.

16
BOLAFFI, G. “Para uma nova política habitacional e urbana: possibilidades econômicas, alternativas operacionais e limites políticos”. In: VALLADARES, Licia do Prado (Org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. p.167-196.

17
Raquel Rolnik, relatora especial para o Direito à Moradia da ONU. Rede de Tecnologia Social, 27/05/2009. Disponível em http://www.rts.org.br/entrevistas/entrevistas-2009/raquel-rolnik/. Acesso em Fev. 2011.

18
Há uma extensa bibliografia sobre o assunto, desde os estudos pioneiros de Carlos Nelson Ferreira dos Santos e Gabriel Bolaffi, passando pelas importantes contribuições de Ermínia Maricato, Raquel Rolnik e mais recentemente Ângela Gordilho Souza (SANTOS, C. N. F. dos. “Velhas novidades nos modos de urbanização brasileiros”. In: VALLADARES, Licia do Prado (Org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981; BOLAFFI, G. “Habitação e urbanismo: o problema e o falso problema”. In: MARICATO, E. (org.) A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo: Ed. Alfa-Omega, 1982; SOUZA, A. G. “Viver melhor: mudanças e permanências no habitar”. In: FERNANDES, A., SOUZA, A.G. Op. Cit.)

19
SOUZA, A. G. “Favelas, invasões e ocupações coletivas nas grandes cidades brasileiras – (Re)Qualificando a questão para Salvador- BA”. In: Cadernos Metrópole, São Paulo, n.5, p.63-89.

20
ROLNIK, R. (org.) Como produzir moradia bem localizada com recursos do programa minha casa minha vida?: implementando os instrumentos do Estatuto da Cidade. Brasília: Ministério das Cidades, 2010. p. 20.

21
Idem. Ibidem, p. 46.

22
Fonte: http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM1004695-7823-UM+PANORAMA+DA+HABITACAO+POPULAR+EM+LONDRES+EUA+E+BRASIL,00.html

23
BAUMAN, Z. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009.

24
ALBUQUERQUE, F. “Investimento da Caixa em habitação cresceu mais de 50% em 2010”. In: Jornal do Brasil On Line, 11/02/2011. Disponível em <http://www.jb.com.br/economia/noticias/2011/02/11/investimento-da-caixa-em-habitacao-cresceu-mais-de-50-em-2010>.  Acesso em Fev. 2011.

25
PORTAL TERRA. PAC 2: “Minha Casa, Minha Vida prevê 2 milhões de casas até 2014”. In: Jornal do Brasil On Line, 29/03/2010. Acesso em Abr. 2010.

26
FIGUEROLA, V. N. “O Programa Minha Casa, Minha Vida articula planejamento urbano à política habitacional?”. In: AU - Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, ano 24, n. 182, p. 12-13, Mai. 2009.

27
ARANTES, FIX, Op. Cit.

28
ROLNIK, Op. Cit.

29
As famílias com renda entre 6 e 10 SM, podem acessar o Fundo Garantidor da Habitação Popular (FGHab) em caso de desemprego, morte ou invalidez em busca do refinanciamento das prestações ou eliminação de saldo devedor.

30
Ministério das Cidades. Minha Casa Minha Vida tem aumento nos valores dos imóveis, 02/02/2011. Disponível em <http://www.cidades.gov.br/noticias/minha-casa-minha-vida-tem-aumento-nos-valores-dos-imoveis> .  Acesso em o2/2011.

31
ROLNIK, R. “Aumento do teto do financiamento do Minha Casa, Minha Vida: evidência preocupante da explosão dos preços dos imóveis”. In: Blog Raquel Rolnik, 03/02/11. Disponível em <http://raquelrolnik.wordpress.com/2011/02/03/aumento-do-teto-do-financiamento-do-minha-casa-minha-vida-evidencia-preocupante-da-explosao-dos-precos-dos-imoveis-no-brasil>. Acesso em 02/2011.

32
MORADO NASCIMENTO, D., BRAGA, R. C. Q. “Déficit habitacional: um problema a ser resolvido ou um número a ser superado”. In: Risco Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo/Programa de Pós-graduação do Departamento de Arquitetura e Urbanismo EESC-USP, São Carlos, n.9, p.98-109, 1º sem. 2009.

sobre as autoras

Denise Morado Nascimento é Professora Adjunta da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (EA/UFMG), Belo Horizonte; Líder do grupo de pesquisa PRAXIS (Práticas sociais no espaço urbano, sediado no Departamento de Projetos e Núcleo de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da EA/UFMG); Mestre em Arquitetura pela University of York, Inglaterra; Doutora em Ciência da Informação pela UFMG.

Simone Parrela Tostes é Professora da Pontifícia Universidade Católica/MG, Belo Horizonte; pesquisadora do grupo PRAXIS; Mestre em Arquitetura pela EA/UFMG.

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