Introdução
O filósofo francês Jean-Paul-Charles-Aymand Sartre, mais conhecido como Jean-Paul Sartre, ou, simplesmente, como Sartre, sempre esteve atavicamente ligado à vida urbana, e os chamados “acidentes naturais”, por exemplo, lhe deixavam completamente indiferente. Sob esse aspecto, não causa estranheza que em boa parte dos seus escritos, ficcionais ou não, a cidade tenha desempenhado um papel de grande importância. E em alguns dos seus textos a urbi ganhou praticamente o estatuto de uma personagem; a esse respeito, podemos citar o ensaio Nourritures, publicado no número 04 da revista Verve no ano de 1938, mas que teria sido escrito, muito provavelmente, em 1936. Esse texto é um fragmento de uma novela intitulada Dépayment, e tanto o ensaio quanto a novela são ambientados na cidade italiana de Nápoles, que se torna um palco privilegiado e uma espécie de antagonista. Além desses dois textos, há os breves ensaios intitulados Villes d’Amérique e New York ville coloniale, publicados na coletânea Situations III, no ano de 1949; e que são o remanejamento de seis das trinta e três reportagens que o filósofo francês escreveu para os jornais Le Figaro e Le Combat no ano de 1945, quando estava nos Estados Unidos da América como correspondente de guerra.(1) Como se trata de literatura viática (2), esses textos nos apresentam um viajante que se ressente de certo estranhamento com cidades desconhecidas – posto que estrangeiras –, além de tentar buscar um discernimento mais preciso de uma imagem urbana.
Contudo, há um texto anterior no qual o objeto de análise não é uma cidade estrangeira, italiana ou norte-americana, mas uma cidade na província francesa; o texto em questão foi intitulado Jésus la chouette professeur de province, e foi redigido no ano de 1923, quando Sartre não tinha senão dezoito anos.(3) Trata-se, então, de uma obra de juventude (4), o esboço de um romance que o futuro filósofo e romancista jamais concluiu. (5) Esse texto ficou perdido em alguma gaveta e foi recuperado pelos “sartrólogos” Contat e Rybalka na obra Les écrits de Sartre, publicada pela primeira e única vez no ano de 1970. Esse fragmento de romance tem a forma de um “diário íntimo”, e, dessa maneira, é narrado na primeira pessoa; nesse texto uma personagem descreve a viagem que realizou na sua juventude a La Rochelle, na qual estudaria no Liceu que levava o nome da cidade. (6) Ali ele ficaria hospedado na Villa (7) de um dos seus professores, M. Lautreck (8), pela razão segundo a qual a sua mãe temia que ele sofresse por demais na hostil impessoalidade de um pensionato (9). O fragmento inicia-se com o trajeto, com a descrição da paisagem e com a narrativa das suas esperanças e expectativas, posto que, pela primeira vez, se ausentaria da casa materna, e é concluído – ou melhor, abandonado – com a narrativa da sua primeira refeição com a família que o hospedava.
O nosso interesse nesse texto é genealógico, posto que neste Sartre criou, pela primeira vez, uma imagem urbana literária, que se tornariam tão frequentes na sua obra desenvolvida posteriormente. E seria importante acrescentar que nesse fragmento o nosso jovem autor esboça uma possibilidade de classificação para as cidades, como podemos ler nesse extrato: “Poder-se-ia classificar as cidades de uma maneira mais incômoda, porém menos arbitrária que as classificações administrativas: de acordo com as horas ou do seu tipo ou da beleza que lhe é atribuída.” (10) Ora, percebe-se nessas frases uma tentativa de analisar o fenômeno urbano por meio de critérios subjetivos, o que de maneira nenhuma deve causar espécie, uma vez que Sartre, além de nunca ter sido um especialista nesse domínio, escreveu esse texto, como já o afirmamos, quando tinha apenas dezoito anos. Assim, o nosso objetivo nesse artigo é analisar como o jovem Sartre descreveu uma cidade específica – e uma cidade do seu país –, tentando demonstrar como certas preocupações sobre o urbano que ele escreveu na idade madura fizeram a sua emergência pela primeira vez em um texto da juventude.
La Rochelle e a luz
Certamente que não é um objetivo desse artigo o próprio referente, mas a guisa de considerações iniciais talvez valesse a pena o curto esclarecimento de que a cidade de La Rochelle de fato existe, e fica no departamento francês de Charente-Maritime; realizamos esse esclarecimento porque o palco urbano mais célebre da obra de Sartre – além de, naturalmente, Paris – é a cidade de Bouville (termo que poderia ser traduzido por “Cidade da Lama”), a qual, embora tenha sido largamente inspirada em Havre (onde Sartre foi, aliás, professor de província), é uma criação ficcional (11). Dito isso, iniciaremos a nossa análise com uma citação do autor com a qual se é determinada uma posição relativa para a apreensão do fenômeno urbano: “Uma cidade é como uma mulher: é-lhe necessária uma iluminação especial e um ambiente determinado para atingir a sua elegância máxima. E, assim como as mulheres belas, as cidades podem sê-lo de dia ou de noite, pela manhã ou à noite.” (12) Essas frases, que hoje certamente soam deselegantes (13), atestam, por um lado, o futuro apreço que o filósofo francês viria a desenvolver em relação às fórmulas literárias de grande impacto (no ensaio Nick’s bar, New York City ele escreveu: “O jazz é como as bananas, deve ser consumido no local” (14)), e, por outro lado, apresentam o fato de que, para a personagem, uma cidade deve ser percebida com um caráter quase impressionista, cuja apreensão seria determinada, então, pela qualidade da luz que incide sobre esta; percebe-se igualmente, nas frases do jovem autor, a importância que possui a própria conformação urbana, que ali foi chamada de “ambiente”.
E como seria, então, a paisagem urbana de La Rochelle para a personagem? Recorramos, então, a própria personagem: “La Rochelle é uma cidade de cinco a seis horas, uma cidade de crepúsculo outonal.” (15) A partir dessas frases, já se pode antever uma descrição na qual não faltaria boa dose de melancolia: “O velho porto e o por do sol são concluídos pela grisaille pálida dos últimos raios, como uma estampa de Vernet repintada em tons de um colorista moderno.” (16) A personagem percebe a cidade como se contemplasse uma pintura conservada em um museu ou que estivesse impressa em um livro de arte, e a alusão ao artista francês Vernet é uma indicação desse fato. (17) A alusão à grisaille, técnica pictórica que consiste em colorir ligeiramente uma gravura originalmente em preto e branco, nos remete a um mundo tornado arte, e que, dessa maneira, perde o seu estatuto de referente. E o nosso autor prossegue com as suas metáforas, que metamorfoseiam as paisagens em pinturas: “A luz se espalha em camadas que ultrapassam umas as outras como em uma pintura de Monet.” (18) Ora, a referência ao pintor impressionista nos deixa claro que a intenção da personagem era descrever a paisagem La Rochelle como quem pinta uma tela, na qual o elemento mais importante é a luz, e não qualquer luz, mas a luz do crepúsculo. Assim, a La Rochelle pintada pela personagem é uma cidade crepuscular e outonal.
Contudo, apesar da menção a Monet, o jovem Sartre parece ter se inspirado em uma pintura de Vernet para compor o seu “quadro urbano”, a famosa marinha La Rochelle, na qual certos elementos literários evocados já estão pictoricamente presentes, como a luz crepuscular que se reflete na água, os pequenos barcos a vela no velho porto e as torres que velam e guardam a sua entrada. O autor expressou-se em uma espécie de diálogo com uma imagem já existente dessa cidade, e o referente, nesse caso, não foi a própria cidade, mas uma representação já consagrada; e assim, a personagem descreve uma paisagem urbana a partir do “filtro” de uma marinha.
Mas a pintura não é a única forma de arte que o autor serviu-se para construir a imagem urbana dessa cidade de província, pois em um determinado momento ele faz alusão à música: “Dedilham-se freneticamente pianos nos bares das cercanias e a síntese de todas essas músicas de café traz uma melodia monótona, vaga, idêntica, que substitui o canto ausente do mar”. (19) Nessa evocação um tanto simbolista a jovem personagem – naquela narrativa somente um pouco mais jovem que o próprio autor – serviu-se de uma música anônima para criar uma atmosfera literária de uma suave melancolia, com a finalidade, talvez, de nos lembrar que a personagem deixava o conforto da sua família e os prazeres da cidade de Paris para mergulhar em um mundo solitário, mais austero e provincial. Essa tímida referência à música ganhará mais importância narrativa na novela La nausée, na qual a personagem, um historiador em uma cidade portuária de província, ouve o jazz Some of these days em um bistrot local e é tomado por um vago sentimento de angústia, e passa, então, a imaginar uma cidade norte-americana como uma triste fantasmagoria:
Penso em um americano escanhoado, de espessas sobrancelhas pretas, que sufoca de calor no vigésimo andar de um prédio em New York. O céu arde por cima de New York, o azul do céu se inflamou, enormes chamas amarelas vêm lamber os telhados: os meninos do Brooklyn, de calções de banho, se colocam debaixo das mangueiras. (20)
Sartre era, de fato, aficionado pela vida urbana, e as frases acima atribuídas a sua personagem – segundo muito críticos, um alter ego do filósofo – não são certamente, as únicas na sua extensa obra a fazer alusões às cidades. Para além das cidades norte-americanas que conheceu em 1945 e em 1946 (por razões políticas, esse notório viajante que era Sartre jamais condescendeu em revê-las), para além da sua paixão pelas cidades italianas, há, naturalmente, o seu amor não contingente por Paris. No diário íntimo que ele escreveu durante o período nomeando de “Guerra Estranha” (21), quando os exércitos aliado e alemão ficaram estacionados na fronteira, e intitulado Cadernos de um guerra estranha, ele faz uma ode de amor à capital francesa: “Sinto que, se não fui patriota, pelo menos fui comunalista e regionalista. Paris era a minha aldeia, como diz a canção. Cidadão de Paris, se tivesse sido regionalista.” (22) E, no mesmo texto, chegou mesmo a lamentar o fato de não ter morado em determinado quartier parisiense:
Tudo isso era como um halo ao redor da cabeça de Pieter [um dos seus “companheiros de farda”] – porque para mim ele tinha a auréola de ter morado naquele bairro onde eu não passei de um turista. Judeu entre judeus, vadio entre aqueles pequenos vadios que percorrem todas as noites as vizinhanças dos Dupont da Bastilha. (23)
O filósofo francês era, então, um Parisiense. Não sabemos se ele poderia ser compreendido desde a relação traçada pelo seu compatriota Léo-Paul Fargue, que, no livro Le piéton de Paris, descreve o que é “ser um parisiense” (24). Mas sabemos com certeza, ao menos, que o filósofo francês era habitué dos cafés da capital da França, e, sobretudo, do Dupont-Latin, do Café de Flore e do Café des deux Magots, e frequentava, igualmente, as suas bibliotecas e as suas salas de exibição cinematográfica (o cinéma Olympia era um dos seus preferidos) e de teatro. (25) Em suma, Sartre tinha uma rotina urbana em Paris (26), apenas interrompida pelas inúmeras viagens internacionais e pelo período da Segunda Guerra Mundial, cuja derrota do seu país levou a uma época de grande penúria e de inúmeras restrições.
Nesse momento da nossa narrativa, é mister acrescentar que cerca de quinze anos separam a escritura do romance abandonado da publicação da novela concluída (27), e o que antes fora apenas esboçado no ano de 1923 encontrou a sua forma réussie em La nausée. E, se nessa novela a pintura comparece somente para que a personagem demonstre o seu desprezo pelas classes burguesas da cidade em uma visita ao museu local, em Jésus la chouette essa arte é uma espécie de “antecipação urbana”, na qual o que é visto e descrito já tinha sido devidamente inventariado por um artista inspirado. Mas a personagem, que narra o seu passado juvenil, compreende de maneira retrospectiva as suas inevitáveis limitações: “Eu não fiquei emocionado senão de maneira medíocre por esse espetáculo.” (28) E quais seriam as razões para que o “espetáculo urbano” de La Rochelle não tivesse emocionado o estudante? Ora, a personagem, vendo em retrospectiva, responsabiliza a sua, então, juventude: “Aos olhos de todo rapaz jovem, a gama infinita e contínua das paisagens não é percebida.” (29) Ainda segundo a personagem – que, aliás, não é nunca nomeada ao longo dos fragmentos dessa obra inacabada – os jovens não conseguem perceber, das paisagens urbanas, senão panoramas parciais – “oito ou dez” – que funcionam como uma grille pré-estabelecida, a partir dos quais as cidades seriam percebidas. Nesse caso, não haveria uma real descoberta a partir de uma experiência original, mas um reconhecimento de um elemento que passaria a pertencer, então, ao catálogo de um “colecionador de imagens”.
Mas, para além das pinturas de Vernet e de Monet e da música anônima, quais seriam as motivações da personagem para compor a paisagem de La Rochelle? Como todo jovem europeu burguês da sua época, a nossa personagem tinha nos livros – e entre estes, principalmente os romances – a sua principal fonte de inspiração. Sem desejar confundir criador e criatura, autor e personagem, é mister afirmar que o próprio Sartre legou-nos uma descrição intensa e pungente da sua relação com a literatura quando era jovem; trata-se do livro de memória intitulado, muito propriamente, Les mots. Esse livro foi saudado como um “retorno à literatura”, mas era, na realidade, um “acerto de contas” e um “balanço final” da sua carreira de escritor ficcional. Mas retornando à jovem personagem, há a confissão expressa de que os chamados romances escolares teriam moldado uma sensibilidade romântica: “Eu a via claramente [a filha do seu futuro professor], sozinha comigo, ao luar, em uma paisagem bastante convencional. Depois as imagens se sucediam com a rapidez de um caleidoscópio: eu me via levantando o braço em direção aos céus e apontando a lua.” (30) Como confessou a personagem, “Ali eu construí todo um romance”... (31)
Devemos ler essas frases de inspiração romântica a partir das já citadas frases nas quais as cidades são comparadas às mulheres, e La Rochelle é bela sob a luz outonal e crepuscular, enquanto que a jovem filha do seu professor seria contemplada idealmente sob a luz do luar: o “romance da cidade” termina por se fundir ao seu romance idealizado. Mas Sartre jamais voltaria a escrever sob uma perspectiva tão otimista, nem sobre as cidades e nem sobre as mulheres. Herdeiro que era de um período histórico extremamente conturbado no Ocidente, em que as mortes foram realizadas em “escala industrial”, em que a própria destruição de cidades se operava de maneira quase cotidiana (Hiroshima e Nagazaki, Havre, Dresden e tantas outras que uma enumeração exaustiva seria quase monótona), não haveria mais espaço intelectual para imaginar “cidades outonais” sob a luz do crepúsculo e ingênuas e belas mulheres sob a luz do luar, e a novela La nausée e a trilogia Les chemins de la liberté no-lo atestam de maneira quase definitiva. O jovem de dezoito anos, como seria de se esperar e mesmo inevitável, cedeu o lugar a um intelectual irônico, pessimista e bem pouco complacente consigo mesmo e com todos os outros.
Contudo, um elemento parece não ter se alterado e até mesmo ter se aprofundado: a sua relação com a vida urbana e com as cidades. Sem jamais ter sido um especialista – embora conhecesse bem e admirasse a arquitetura clássica – o filósofo francês sempre teve um olho assaz privilegiado sobre os fenômenos da urbe, e não foram poucas as cidades que o emocionaram ao longo da sua atribulada vida: Paris, certamente, mas igualmente Veneza, Nápoles e Roma, e, nesse sentido, essa temerária frase “Após o jantar eu passeio sozinho até as seis horas em N.Y. que agora eu conheço tão bem quanto Paris” (32), escrita em uma carta em 1946, e que fora destinada a Simone de Beauvoir, atesta uma forte empatia com as cidades e com a vida urbana. E, convém acrescentar que, para Sartre, as cidades norte-americanas foram uma grande descoberta: em 1945 e em 1946 ele teve a oportunidade de ver in situ o que anteriormente era tão somente uma imagem mental criada a partir da leitura dos romancistas Dos Passos e Faulkner e pelas imagens icônicas das revistas e do cinema. O filósofo francês, na época, espantou-se com as cidades norte-americanas de ruas retilíneas e quase anônimas, com aquelas construções que foram percebidas como “frágeis e provisórias”, e que “mal pesavam sobre o solo” (33). Uma paisagem muito diferente da realidade urbana europeia, cujas cidades foram descritas por ele como “cidades-museu”, com o seu rico palimpsesto de monumentos.
Últimas considerações
Devemos admitir, porém, que o jovem promissor que escreveu esse romance inacabado guarda bem pouca proximidade com o intelectual esquerdista, pensador e romancista copioso que Sartre viria a se tornar muitos anos mais tarde; de qualquer sorte, esses fragmentos já atestam um olhar crítico e apaixonado – assim como demonstram um interesse particular – sobre os fenômenos urbanos. Nesse sentido, a análise sobre a cidade de La Rochelle realizada pela jovem personagem vai encontrar ressonâncias nos textos escritos sobre as cidades norte-americanas, nos quais estas foram descritas e apresentadas ao seu público leitor francês. Além disto, podemos levar em consideração nas nossas asserções (em uma espécie de mise en abyme) outro romance de Sartre, escrito por volta de 1952 e que foi, igualmente, abandonado: La reine Albermale ou le dernier touriste. Nesse texto, uma personagem – um turista francês, uma espécie de alter ego do autor – vagueia pela Itália enquanto realiza algumas considerações sobre esse país, sobre a sua política e sobre a sua condição de turista em solo estrangeiro; e algumas das mais conhecidas cidades italianas são inventariadas e descritas, como Roma e Veneza. Em La reine Albermale há, igualmente, a busca da apreensão das cidades por um viés e uma aproximação de cunho subjetivo; ora, se em La Rochelle é o caráter cambiante da luz outonal que movimenta esse processo, nesse seu texto da idade madura são as ruínas romanas e os canais venezianos que conformam essas duas cidades analisadas.
Assim, não estaríamos longe da verdade se afirmássemos que o que todos esses textos supracitados têm em comum é, certamente, o fato de buscarem um discernimento mais preciso de uma dada imagem urbana. Mas não devemos nos esquecer que essa importância das cidades em textos de caráter literário não foi exclusividade de Sartre nas letras francesas do século passado, poderíamos citar igualmente as cidades da Indochina Francesa nos romances de Marguerite Duras (ela mesma nascida nos Trópicos) e alguns dos romances de Georges Perec, como A vida modo de usar e Espécies de espaços. E, se quisermos ampliar ainda mais o caráter de nossas explanações, poderíamos lembrar que não poucos críticos ligam a emergência do romance – e o seu consequente sucesso – a própria emergência do modo de vida urbano. Assim, se prosseguirmos com o nosso pensamento, deveríamos admitir que não causa de maneira alguma espanto a importância literária de cidades como Londres e Paris, mas igualmente de pequenas cidades de província, como La Rochelle Rouen e Havre. (34)
notas
1
A esse respeito, ver: CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Les écrits de Sartre. Paris: Gallimard, 1970.
2
A “literatura viática” e, em Francês, récit de voyage, é um gênero no qual um escritor narra determinada viagem; e essa narrativa pode ser ficcional ou não. A esse respeito, ver: BELZGAOU, Virginie. Les récits de voyage. Paris: Gallimard, 2008.
3
CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Op. Cit., 1970, p. 506-516.
4
Detalhe que talvez interesse aos praticantes da psicanálise: Sartre assinou os manuscritos com um pseudônimo, Jacques Guillemin, e Guillemin é, justamente, o sobrenome de solteira da sua mãe (o pai de Sartre veio a falecer quando o futuro filósofo tinha apenas um ano de idade).
5
Esse procedimento tornou-se comum na carreira de Sartre, que abandonou diversos projetos literários, como o romance-ensaio La reine Albermale ou le dernier touriste, o famoso segundo tomo de L’être et le néant e o quarto tomo Les chemins de la liberté. Contudo, tal procedimento deve ser visto com normalidade, afinal, trata-se de um escritor copioso que desenvolveu uma obra realmente monumental.
6
Não deixa de ser interessante observar que se trata de uma personagem que, na sua idade madura, narra acontecimentos da sua juventude, mas o autor, na realidade, tem apenas dezoito anos... Trata-se quase de uma Mise en Abyme. O próprio autor viveu nessa cidade do ano de 1916 ao ano de 1920, com a sua mãe e o seu padrasto (de quem, como se poderia adivinhar, ele não gostava), e não parecia guardar boas lembranças desse período, marcado por violência e decepções amorosas. A esse respeito, ver: CONTAT, Michel. Sartre l’invention de la liberté. Milão: Textuel, 2005.
7
A Villa chama-se “Remember”, alusão pouco sutil para um livro de memórias, mas devemos lembrar que Sartre não tinha, na época, senão dezoito anos.
8
Que a partir da quinta parte (da edição de que nos servimos) passa a ser, por razões desconhecidas, designado com o nome Laubré.
9
“Minha extrema fragilidade de uma criança colocada durante muito tempo em regime, por outro lado a minha inocência absoluta, a minha perfeita incompetência do ponto de vista prático, devidas a uma educação muito tolerante, mas minuciosa e cheia de consciência, assustavam muito a minha. ‘Ele vai se encontrar, dizia ela, na presença de crianças cheias de vícios, grosseiros e muito mais velhos que ele, ele deverá comer uma alimentação em nada saudável, ninguém o vigiará, não impedirão de beber vinho sem água [nessa época na França era comum e aceitável que crianças bebessem vinho, desde que “cortados” com água] ou de alimentar de pratos que lhe são proibidos: o internato será a sua perda, comprometerá a sua saúde física e moral’”. Ver: SARTRE, Jean-Paul. Jésus la Chouette Professeur de Province. Em: CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Op. Cit., 1970, p. 506.
10
SARTRE, Jean-Paul. Jésus la Chouette Professeur de Province. Em: CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Op. Cit.,1970, p. 507.
11
SARTRE, Jean-Paul. La Nausée. Paris: Gallimard, 1938.
12
SARTRE, Jean-Paul. Jésus la Chouette Professeur de Province. Em: CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Op. Cit.,1970, p. 509.
13
Mas Sartre, na sua idade madura, já fez pior: “Em algum 17º andar, nós nos encontramos ‘em torno de uma mesa de chá’ com algumas dessas grandes mulheres de cabelo cinza, amáveis, um pouco frias e inteligentes como homens, que desde o início da guerra, representavam a maioria nessas associações.” Essa palavras que se pretendiam elogiosas foram escritas em 1949, no ensaio Individualisme et conformisme aux Étas-Unis. Em: Situations III, Paris: Gallimard, 2003. Tradução nossa do Francês para o Português.
14
SARTRE, Jean-Paul. Nick’s Bar, New York City. Em: CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Op. Cit., 1970, p. 680. Tradução nossa do Francês para o Português. Como sabemos, essa curiosa fórmula nem é a mais famosa escrita por ele, a qual é “O inferno são os outros”, dita por uma personagem na peça teatral Huis clos.
15
SARTRE, Jean-Paul. Jésus la Chouette Professeur de Province. Em: CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Op. Cit.,1970, p. 507.
16
Idem. Ibidem.
17
Claude Joseph Vernet foi contratado por Luís XV para realizar uma série de pinturas de portos franceses, inclusive do porto de La Rochelle. Sobre a relação entre pinturas e a visão do porto ver: Corbin, Alain. O território do vazio – a praia e o imaginário ocidental. Trad.: Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras,1989. Sobre a pintura de Vernet ver: a) CONISBEE, Philip. “Salvator Rosa and Claude-Joseph Vernet”. Em: The Burlington Magazine, Vol. 115, No. 849, pp. 789-794; b) LEVINE, Steven Z.. “Seascapes of the Sublime: Vernet, Monet, and the Oceanic Feeling”. Em: New Literary History, Vol. 16, No. 2, The Sublime and the Beautiful: Reconsiderations, 1985, pp. 377-400.
18
SARTRE, Jean-Paul. Jésus la Chouette Professeur de Province. Em: CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Op. Cit.,1970, p. 507.
19
SARTRE, Jean-Paul. Jésus la Chouette Professeur de Province. Em: CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Op. Cit.,1970, p. 509.
20
SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d, p. 264.
21
Em Francês Drôle de Guerre.
22
SARTRE, Jean-Paul. Diário de uma guerra estranha: a “drôle de guerra”, novembro de 1939- março de 1940. Trad.: Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
23
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., 1983, p. 152.
24
FARGUE, Léon-Paul. Le piéton de Paris. Paris: Gallimard, 1993, pp. 162-169.
25
CONTAT, Michel. Sartre l’invention de la liberte. Milão: Textuel, 2005.
26
Sartre chegou até a redigir um “Pequeno guia do ‘village’ de Saint-Germain des Près para uso dos turistas”, no qual estavam listados os cafés e restaurantes desse bairro.
27
Essa novela começou a ser escrita no ano de 1934, quando Sartre era bolsista do Instituto francês de Berlin, e tinha o nome provisório de Melancolia; a novela foi recusada pela Gallimard no ano de 1936 e aceita pela mesma casa editorial um ano depois, após a intervenção de Dullin e Pierre Bost, e partiu de Gaston Gallimard a sugestão para a mudança do título anterior para La nausée. Para detalhes suplementares ver: CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Op. Cit., 1970, pp. 26-27.
28
SARTRE, Jean-Paul. Jésus la Chouette Professeur de Province. Em: CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Op. Cit.,1970, p. 509.
29
Idem. Ibidem.
30
SARTRE, Jean-Paul. Jésus la Chouette Professeur de Province. Em: CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Op. Cit.,1970, p. 508.
31
SARTRE, Jean-Paul. Jésus la Chouette Professeur de Province. Em: CONTAT, Michel; RYBALKA, Michel. Op. Cit.,1970, p. 507.
32
SARTRE, Jean-Paul. Lettres à Castor e à quelques autres. Paris: Gallimard, 1983, p. 332.
33
SARTRE, Jean-Paul. Villes d’Amérique New York ville coloniale Venise, de ma fenêtre. Paris: Éditions Du patrimoine, 2002.
34
Havre, onde Sartre trabalhou como professor de liceu, foi a referência para a criação da cidade ficcional de Bouville, cenário da novela La nausée, e Rouen era a cidade na qual Simone de Beauvoir lecionava.
sobre o autor
Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima, arquiteto e urbanista, Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo, Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, autor do livro: Arquitessitura; três ensaios transitando entre a filosofia, a literatura e arquitetura. Professor Assistente da Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Arquitetura e Urbanismo.