Precedentes
A partir dos anos 1960 e ao longo da década de 1970, um período crescimento econômico, geográfico e demográfico importantes em São Paulo – período em que a população da cidade cresceu cerca de 50% (1) - a disciplina de planejamento urbano foi usada pela primeira vez de forma coesa, com o intuito de organizar a expansão urbana da cidade.
Um dos primeiros planos diretores da cidade estava sendo discutido e uma série de intervenções viárias se deu para mitigar os congestionamentos que começavam a aparecer, por conta de um processo de inversão nos investimentos em transporte público – do sistema sobre trilhos ao sistema sobre pneus –, crescentes investimentos para aumentar o transporte individual – promovendo a indústria automobilística, uma das principais da região a partir dos anos 1950 até hoje – e um espraiamento incontrolável, provocando uma expansão da área urbanizada sem precedentes.
Uma dessas intervenções é o objeto dessa análise. Coloquialmente conhecido como Minhocão, o objeto estudo de caso é uma via expressa elevada que passa pelo centro de São Paulo, responsável, a época de sua construção, por melhorar a conexão viária entre as regiões Leste e Oeste da cidade.
O Minhocão foi concebido como parte de uma série de intervenções viárias no centro que propunha apenas estabelecer conexões entre as diferentes regiões da cidade, utilizando a região central como rota e cruzamento, sem que um mecanismo para atrair pessoas e atividades fosse elaborado para a área. Nesse processo um território fragmentado e desconjunto foi deixado para trás, recebendo poucos investimentos com objetivo de melhorar seu ambiente urbano.
Nesse contexto o Minhocão é uma das intervenções viárias mais discutidas do período. É uma via elevada espressa de três quilometros e meio, que conta com quatro pistas, cortando três dos distritos, uma área muito verticalizada da região central da cidade.
Colocado sobre avenidas existentes, nas quais edifícios verticais já estavam construídos sem que houvesse recuos, o elevado passa a apenas cinco metros de distância de algumas das fachadas. Por conta do seu tamanho, proporção e profundo impacto na paisagem urbana, ele chama atenção da opinião pública desde sua construção em 1970.
Durante seus mais de quarenta anos, várias propostas foram feitas para minimizar seu impacto negativo no entorno e, desde a década de 1980, depois que Peter Hall o escolheu como um dos “Grandes desastres do planejamento urbano” (2), sua demolição vem sendo discutida.
Em 2006, a EMURB, o então órgão da prefeitura responsável pelo desenvolvimento urbano da cidade então, anunciou um plano de demolição da via expressa levantando uma série de discussões que culminaram no lançamento do Prêmio Prestes Mais, um concurso de ideias para gerar proposições e outras visões para a área.
A proposta final, através de uma meticulosa análise da região e do dia a dia de seus habitantes, aproveitou-se dos usos informais e das apropriações espontâneas de caráter social, econômico e artístico observadas no lugar, tornando-as o ponto de partida do processo de projeto.
Esse olhar detalhado mostrou que o Minhocão, além de ser uma conexão viária, possui outra relevante função. Desde 1976 sua área é aberta diariamente das dez da noite as seis da manhã, com a finalidade de minimizar os ruído nos edifícios vizinhos. Essa resolução, entretanto, propicia um inesperado uso dessa desagradável infraestrutura urbana, que, para os autores da proposta, não poderia ser desprezado. A ausência de espaços públicos adequados e de porte nesses bairros ativa uma surpreendente apropriação informal das quatro pistas durante as noites e aos fins de semana. Assim que as pistas são fechadas para os veículos, elas se tornam abertas à população vizinha que as ocupa.
Partindo desses usos informais, a proposta vencedora mantem a via elevada e a cobre criando assim um parque linear, aberto ao público diariamente.
Ao longo de seus três quilometros e meio o parque se adapta em corte a altura e ocupação dos edifícios do entorno e a situação urbana em que está inserido.
Inserção Urbana
Edifícios extensão foram propostos em lotes subutilizados, recebendo funções culturais e comerciais, fazendo as vezes de ponto de acesso, assim como as rampas o fazem hoje em dia.
Mesmo compartilhando o mesmo conceito de projetos internacionais bem sucedidos como o parque High Line em Nova Iorque e o parque Promedane Planté em Paris, a proposta foi questionada, principalmente por conta do aumento do volume construído do elevado, interferindo na iluminação e ventilação de mais andares dos prédios adjacentes, já que, atualmente, apenas os dois primeiros andares são diretamente afetados.
Independentemente das críticas, o projeto ganhou o primeiro prêmio da 7º Bienal Internacional de arquitetura de São Paulo em 2007 e foi exibido na 10ª Bienal de Arquitetura de Veneza em 2006.
Desde a polêmica, o tempo passou, a administração municipal mudou mantendo sua orientação neoliberal e hoje o plano diretor está sendo revisitado e o desenvolvimento de algumas áreas está sendo estimulado, para organizar o desenvolvimento urbano da cidade, com o objetivo de aumentar a densidade demográfica em setores e distritos já bem providos de infraestrutura urbana, gerando novas habitações e atividades econômicas geradoras de empregos.
Elementos estruturais de São Paulo
Como parte desse processo, em maio de 2010 foi lançado o edital para o plano de desenvolvimento da operação urbana Lapa-Brás, localizada numa área adjacente ao elevado. Como premissa, a proposta deverá criar uma nova via e um parque linear sobre a linha de trem metropolitana existente, de forma a aumentar a densidade demográfica da área e intensificar seu uso, além de estimular o desenvolvimento imobiliário. Dessa forma, assim que a nova via estiver finalizada, o elevado não será mais necessário como a principal ligação viária entre as zonas leste e oeste da cidade. Assim o edital sugere a demolição do elevado.
Discute-se aqui a necessidade de demolição como parte da operação urbana Lapa – Brás, e se questiona se todas suas funções urbanas – formais e informais – estão sendo levadas em conta nesse plano.
O elevado é interpretado como, de um lado e sob uma perspectiva “top down”, responsável por uma terrível depreciação imobiliária para os proprietários de edifícios do seu entorno e uma infraestrutura urbana prejudicial e substituível para planejadores urbanos e arquitetos. Entretanto, por outro lado, para outros atores possui significados distintos. Sob um ângulo “bottom up” pode ser considerado como o elemento responsável para que estratos mais simples da população da cidade possam habitar uma região muito bem servida por serviços públicos, além de ser uma infraestrutura urbana de caráter social para os habitantes do seu entorno, que através de sua apropriação informal, clamam esse espaço como seu “Lugar” (3).
Um “não lugar” (4) ou espaço genérico para alguns, e parte do seu “Pedaço” ” (5) para outros. Essas são as múltiplas interpretações do Minhocão.
Uma perspectiva de “cima para baixo”: o Ponto de vista de proprietários e planejadores
O minhocão é visto frequentemente como uma externalidade urbana negativa. Por conta do seu impacto ambiental imediato a sua construção, seus fatores degradantes – ruído, poluição visual, barreira visual, entre outros – causaram uma imediata evasão da classe média alta, até então predominante nos seus quarteirões adjacentes. Esse processo por si só induziu a queda nos valores de aluguel, que eventualmente provocou a desvalorização imobiliária das propriedades. Muitos edifícios permaneceram desocupados por anos, até que o valor de mercado fosse balanceado, quando muitos dos proprietários colocaram seu patrimônio a venda e locação a preços mais baixos, permitindo que outra população pudesse ocupar a área.
Por sua posição estratégica, proximidade do centro, da região da avenida Paulista e de outros bairros valorizados – porém saturados – a região tem potencial de se tornar atrativa para investidores privados novamente, entretanto o Minhocão permanece no meio do caminho.
Nos últimos anos, com o Mercado imobiliário atuando freneticamente por toda a cidade, atuando muitas vezes em áreas e regiões não tão bem providas de infraestrutura urbana como esta, a área chama atenção dos planejadores urbanos.
O presente plano diretor aprovado em 2002 especifica diversas operações urbanas, além das existentes, em áreas com alguns elementos em comum: estão relativamente bem localizadas na cidade, estão próximas da infraestrutura urbana existente e possuem ocupação anterior relacionada à atividade industrial, um setor econômico em declínio dentro da cidade desde os anos 1980, em um processo similar ao ocorrido em outros países, porém em um ritmo mais lento.
A venda de potencial construtivo para empresas do setor imobiliário possibilita em tese a densificação e a potencialização de investimentos em infraestrutura urbana nessas áreas, gerando um círculo virtuoso de acordo com o edital da operação urbana Lapa = Brás, onde
“mais investimentos, maior valorização e maior o interesse de participação da iniciativa privada, gerando maior volume de recursos e mais investimento na região.” (6)
Das dez operações urbanas estabelecidas pelo Plano Diretor de 2002, apenas quatro foram alvo de lei específica para serem legitimadas, sendo que três operações já estavam vigentes. Mudanças na administração pública e nas equipes de planejamento urbano, discussões sobre as Operações vigentes, pressão de atores relevantes e a crise econômica de 2002 – que levou a uma crise imobiliária – são alguns dos fatores que impediram que mais operações urbanas saíssem do papel.
Simultaneamente, o setor imobiliário experimentou um período de expansão a partir de 2006, por conta de resoluções federais e políticas econômicas (7), num processo que nem mesmo a crise global de 2008 foi capaz de interromper.
Muitas são as críticas ao planejamento urbano corrente e a existências das operações urbanas (8), principalmente relacionadas a tendência de aumentar a exclusão social, a ausência de participação popular no processo de planejamento e o controle do processo de desenvolvimento urbano pelo setor privado, como salienta Pacione quando menciona que projetos de renovação urbana em países como o Brasil são, na prática, “levados por razões comerciais ao invés de almejar objetivos de bem-estar social” (9).
Outro problema das Operações Urbanas é que, mesmo quando estar dispostas adjacentes umas as outras, suas estratégias de desenho urbano nem sempre são complementares. Apesar de cada área ter suas especificidades, uma proposta de continuidade é desejável em termos de mobilidade, espaços verdes e abertos, além do encorajamento de funções urbanas consistentes e complementares.
Por conta disso, uma nova area chamada Lapa-Bras foi proposta, somando três operações existentes, abrangendo uma intervenção de cerca de 12 kilometros lineares.
Os principais objetivos da operação são:
“objetivo de alcançar transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental, notadamente ampliando os espaços públicos, organizando o transporte coletivo, implantando programas habitacionais de interesse social e de melhorias de infra-estrutura e sistema viário num determinado perímetro, e têm como finalidades, entre outras, a otimização de áreas envolvidas em intervenções urbanísticas de porte e reciclagem de áreas consideradas subutilizadas; a valorização e criação de patrimônio ambiental, histórico, arquitetônico, cultural e paisagístico, e a dinamização de áreas visando à geração de empregos" (10).
São objetivos muito arrojados. Se aceito pela câmara municipal, esse será o maior plano de redesenvolvimento e intervenção urbana da história da cidade, especialmente se considerarmos seu tamanho e posição estratégica.
O edital contém os parâmetros e estudos a serem contratados, que eventualmente construirão o plano para que seja aprovado pela câmara municipal.
Os estudos necessários, de acordo com o edital vão do desenho urbano ao plano de comunicação, entretanto participação pública não é entendida como parte do processo. Audiências públicas, muitas vezes um requerimento burocrático, foram previstas no final de cada estudo, coma finalidade de apresentar os resultados para a população, num esquema de sessão informativa e não construção participativa.
Duas grandes intervenções já estão pré-determinadas: a necessidade de mudar o nível da linha do trem de superfície existente, permitindo a conexão em nível das porções norte e sul dos bairros envolvidos e a demolição do elevado, a ser ainda confirmada por estudos e simulações de tráfego.
A primeira intervenção se relaciona facilmente com os principais objetivos do plano, listados acima. As áreas entre a linha férrea e o Rio Tietê estão desconectadas do tecido urbano, estando ilhadas e causando danos massivos ao ambiente e paisagem urbanos. As principais funções ali existente são de caráter de pequena indústria e instalações voltadas ao setor de logística, além da existência de áreas habitacionais de baixa densidade. A eliminação do obstáculo que hoje é a linha férrea seria um passo importante na direção para alcançar um melhor uso e ocupação dessas áreas, de acordo com o plano, podendo atrair funções mais coerentes com a sua posição estratégica, como residencial de maior densidade, comercial e serviços, almejando se tornar eventualmente, ao invés de uma área isolada e entre zonas, uma continuação do tecido urbano existente.
Já para discutir a proposta de demolição, um olhar atento as suas áreas adjacentes se faz necessário.
O trecho do elevado a ser demolido passa pelos distritos de Santa Cecília e Barra Funda, cortando uma área densa, ocupada principalmente por edifícios verticais de quatro ou mais pavimentos, uso misto, apresentando edifícios multifuncionais com uso comercial no térreo e sobreloja e uso residencial nos pavimentos restantes.
O edital da Operação Urbana menciona a necessidade e estimular a regeneração urbana, principalmente em áreas subtutilizadas. De acordo com seus objetivos principais, a operação pretende:
"A superação da barreira metro-ferroviária e a reurbanização de sua orla se apresentam como importante elemento estruturador e ordenador do território do ponto de vista urbanístico geral, abrangendo a melhoria da mobilidade, da acessibilidade, a reconstituição do tecido urbano pela continuidade do sistema de circulação, a possibilidade de ocupar ordenadamente áreas vazias ou subutilizadas, a indução à ocupação de áreas já urbanizadas com novos padrões fundados no aumento da densidade populacional e construtiva, no equilíbrio entre oferta de moradia e de postos de trabalho, no aumento da permeabilidade do solo, da cobertura vegetal, dos espaços públicos de convívio e lazer.
(…)
Partindo-se da complementaridade entre os conceitos de paisagem (conjunto de elementos naturais e construídos que são apreendidos pela visão num determinado recorte territorial) e espaço (resultado acumulado das ações da sociedade - como as formas de produção, os modos de habitar, de lazer ou, em suma, a vida que anima os objetos de que é composta a paisagem), a melhoria das condições urbanísticas e qualidade ambiental podem ser compreendidas como as medidas da diversidade de usos, o adensamento populacional e construtivo compatíveis com a infra-estrutura instalada e prevista, o incremento das áreas verdes e dos espaços públicos, a melhoria da drenagem, a adequação das tipologias ao sítio, a acessibilidade e a mobilidade, devidamente espacializados e traduzidos em formas urbanas.”
A demolição é abordada especificamente nas suas diretrizes que envolvem Transformação Urbana, Acessibilidade e Mobilidade e finalmente nas diretrizes gerais para o setor central, no qual o elevado está inserido.
Ao abordar o setor em que o Minhocão se insere, os objetivos parecem diferentes dos objetivos principais do edital. A sequência a seguir, extraída do edital, denota o tom da transformação pretendida para a área.
“[a demolição almeja] recuperação urbana das áreas do entorno do elevado (…)recuperando a urbanidade das avenidas Amaral Gurgel e General Olímpio da Silveira ”
(…)
“A retirada do elevado Costa e Silva deverá ainda proporcionar o espraiamento das qualidades do bairro de Higienópolis para este setor. (…)propiciar a re-inserção de conjunto de quadras que se estende ao longo de seu percurso. Esta requalificação deverá se fazer sentir ainda nos bairro de Vila Buarque e Barra Funda, além de significar potencialmente novas feições para espaços públicos de forte significado na cidade como a Praça da República e os Largos do Arouche, santa Cecília e Marechal Deodoro”
Fora mobilidade, não há nenhuma consideração sobre as outras funções, principalmente como infraestrutura urbana de caráter social – da via elevada. Também não há explicação em como propiciar a “recuperação”, “reinserção” e “requalificação” desejada, nem como projetos de novas áreas que possam substituir seu uso social.
A análise de duas das sentenças listadas acima, entretanto, começa a explicar as intenções por trás do plano de remoção da via.
Quando o edital menciona o “espraiamento das qualidades de Higienópolis” e “novas feições para os espaços públicos existentes” não implica apenas suas características espaciais, mas também sociais e econômicas. Higienópolis é um dos bairros mais ricos da cidade e as tipologias ali existentes não são as mesmas dos bairros adjacentes. Esse inocente espraiamento qualitativo poderia significar, na prática, a substituição de tipologias existentes, sem a criação de condições e mecanismos para manter a população hoje habitante da região, num processo similar ao ocorrido em outras áreas de Operação Urbana.
A melhora da relação entre os espaços públicos atuais e o restante da paisagem urbana dificilmente será alcançada apenas com a eliminação do Minhocão, entretanto pode mudar seu público frequentador.
É digno de nota o fato de que essas áreas contém muito poucos terrenos vazios e ociosos e mesmo sendo de uso misto, não possui predominantemente uso industrial. A densidade demográfica observada nesses distritos é uma das maiores da cidade, compatível com sua posição central e a oferta de infraestrutura urbana. Diferente de outras áreas subutilizadas do centro, os bairros e áreas mencionadas possuem urbanidade suficiente.
Qual poderia ser o problema? Que tipo de “recuperação”, “reinserção” e “requalificação” são realmente almejadas através do plano?
A abordagem humanista na Geografia Urbana, de acordo com Pacione, reconhece duas estruturas distintas na qual o espaço ocorre: Física e Cognitiva. Neste caso, o mesmo espaço urbano pode ser visto de diferentes formas, de acordo com significados pessoais e individuais, o estilo de vida e procedências distintas dos seus usuários. Para que seja possível construir ou – utilizando o termo do planejamento estratégico – desenvolver os espaços urbanos é necessário reconhecer e compreender ambas realidade da cidade: “a cidade como construção concreta (coisa) e como representação abstrata (ideia), e examinar como uma influencia a forma da outra” (11).
O autor distingue o significado de “espaço” e “lugar”, enfatizando a importância da “construção de lugares” no processo de restruturação das cidades contemporâneas, fazendo a importante diferenciação entre abordagens de cima para baixo como as que constroem espaços genéricos versus as iniciativas de baixo para cima, onde a tentativa é de construção, desenvolvimento, manutenção e transformação de “lugares”.
A abordagem Estruturalista relaciona a produção do espaço a relações econômicas, enraizada no pensamento Marxista e no antagonismo entre as classes (12). De acordo com essa linha, uma importante distinção deve ser feita entre “representações do espaço” ou “espaços concebidos” – elaborado por planejadores urbanos e arquitetos – e “espaços de representação” ou “espaços percebidos”, quando os espaços sofrem apropriação das pessoas, numa visão similar a noção Humanista de “Espaço” e “Lugar”. Dessa forma, parte do motivo pelo qual urbanistas, planejadores urbanos e arquitetos não tomam conhecimento de que o elevado é um “espaço percebido” vem do fato de que não fora “espaço concebido” como espaço social.
Ainda nessa linha, as diferentes interpretações do espaço da cidade apoiam-se no antagonismo entre os espaços públicos e privados, junto da “vida urbana”. De um lado se encontra, na espera pública, uma “cultura Pública”, um espaço para se socializar com outros e onde “é criada cidadania compartilhada”. Do outro lado há o “medo do outro”. De acordo com Pacione, alguns grupos urbanos contemporaneous – principalmente a classe média e média alta – geralmente não apreciam o “encontro com a diferença”, substituindo espaços públicos abertos por espaços fechados e higienizados, onde indivíduos “fora do lugar” podem ser excluídos (13).
As disciplinas de Planejamento Urbano e Architectura são, de acordo com a linha estruturalista, um produto dos grupos sociais dominates. Ambos revelam o poder desses grupos influenciando a estrutura urbana. De certa forma a ausência do reconhecimento da vitalidade da área onde o Minhocão está inserido vem do fato de que é habitado pelos indivíduos considerados “fora de lugar”, uma interpretação certamente diferente da de seus usuários.
A abordagem pós modernista, entretanto, difere dessa percepção:
“As diversas paisagens urbanas são resultado da relação dialética entre as práticas sociais e o meio físico. O mesmo espaço urbano pode, portanto, ter um significado diferente para grupos sociais diferentes, uma situação que pode levar a conflitos pelo uso apropriado do espaço (...) a paisagem urbana é produto tanto da cultura como da economia e um entendimento adequado do ambiente urbano deve se basear na no reconhecimento explicito dessa complexidade” (14).
Um ponto de vista semelhante ao da Teoria de Forma de Governo (Regime Theory) proveniente das Ciências Sociais:
“A teoria da forma de governo representa algo como a síntese das duas perspectivas (Pluralista – Liberal e Marxista – estruturalista), o controle do capital sobrepõe-se outras formas de poder, entretanto o processo de desenvolvimento não pode ser entendido apenas examinando a ‘logica’ capitalista, já que essa logica por si só é construída através de atividade humana, incluindo resistência de outros grupos aos objetivos capitalistas” (15).
De acordo com essas duas linhas, para que se possa entender o ambiente urbano na proposta de diagnóstico da área da Operação Lapa-Brás – contradizendo a abordagem tradicional de cima para baixo – são necessários amplos estudos das dinâmicas sociais, tanto quantos os estudos econômicos, identificando as necessidades dos habitantes, seus “espaços percebidos” e os significados e potencialidades dos espaços urbanos já existentes, para que eles sejam realmente incluídos no processo de planejamento de formatação e desenvolvimento de projetos urbanos.
Uma tarefa não muito fácil para uma secretaria de desenvolvimento urbano de orientação neoliberal. A discussão do fenômeno de urbanidade, como os planejadores se referem, e de “habitabilidade” – termo equivalente da Geografia Urbana – poderia ser empregado nas duas avaliações – Onjetiva e Subjetiva: “ a cidade no chão e a cidade na mente” (16).
Essa realização aparentemente ainda está longe de ser alcançada em São Paulo.
De baixo para cima: Apropriações urbanas e a construção de “pedaços” e “lugares” urbanos
“O ator ainda não considerado nos processos de desenvolvimento urbano é, em muitos caos, o mais influente” (17)
Elevado 3.5 é um documentário escrito e dirigido pelos arquitetos João Sodré e Paulo Pastorelo e a cientista política Maira Bühler, ganhador do primeiro prêmio no festival “É tudo verdade” de 2007.
Alternando uma sequência de imagens e cenas do Minhocão e se seu entorno, com testemunhos pessoais de vinte personagens, habitantes dos edifícios vizinhos, de diferentes idades, procedência social e geográfica, vivendo em diferentes posições em relação ao elevado, mas com algo em comum: uma janela ou terraço voltado para o Minhocão.
O delicado filme revela a complexidade das figuras encontradas na área, mas também revela diferentes tipologias, densidades nos edifícios, possibilidades urbanas, relações e interpretações. Para cada um a via elevada possui significados diferentes, com múltiplas relações entre o espaço urbano e o “lugar”. As palavras orgulho, vida, necessidade, lazer, lugar, lar, memória, felicidade, tristeza, sonho, entre outras, permeiam seu imaginário, em contraste com a aspereza dos termos “recuperação”, “reinserção” e “requalificação” utilizados no edital.
Quando perguntados sobre o que essa abertura voltada para o elevado significa para eles, muitos relacionaram a vista com sensações positivas. Sobre o plano de demolição, nenhum dos personagens que abordaram o assunto foram a favor.
A relação de proximidade dos habitantes com o Minhocão, a interpretação como seu “pedaço” e seu “lugar”, juntamente da sua apropriação, não apenas pelos habitantes do seu entorno mais próximo, mas pelos habitantes de todo o entorno e, através dos eventos populares que nele acontecem, por habitantes de toda a cidade, levanta a questão: demolição para quem?
Conclusão
“A luta por espaços urbanos coletivos e a representação da diferença nos mesmos são elementos indispensáveis para o avanço da espacialização da democracia. Eles introduzem novas atores políticos e novas regras em uma vida cultural e social, além de possibilitar a ampliação do exercício da cidadania, de uma esfera abstrata de estado nação para uma esfera concreta de espaços urbanos” (18)
O presente artigo, através da análise das práticas atuais de planejamento urbano e resoluções rumo ao desenvolvimento urbano, baseando-se no uso de diferentes abordagens teóricas em estudos urbanos (antropologia urbana, geografia e sociologia) e a gravação dos testemunhos de seus habitantes, discute o caráter impositivo das políticas de planejamento historicamente aplicadas na cidade e, apesar delas, a criatividade de sua população no uso dos seus espaços, suas apropriações informais, espontâneas e inesperadas.
Para arquitetos, urbanistas e planejadores urbanos o Minhocão é, por consenso, uma aberração urbana. Produto de um ato autoritário que “privilegiou a circulação de carros sobre pedestres e eficiência sobre socialização” (19), sua construção de modo algum pode ser considerado uma boa solução para a área.
Mas a cidade abraça as boas e más práticas. Ela perdoa propostas drásticas e abordagens autoritárias e arrogantes. A cidade se adapta a elas, lida com elas e eventualmente as aceita como um “pedaço” de si. As pessoas transformam e se apropriam do espaço urbano de inesperadas formas, fato que, num processo de renovação urbana, não pode ser ignorado.
Como vingança final, o que nasceu como uma externalidade urbana negative para alguns – os atores formais, proprietários – tronou-se uma externalidade positiva para muitos – figuras acidentais que, por conta da presença do elevado tem a possibilidade de viver em uma das áreas mais bem providas de empregos, transporte público e serviços sociais da cidade; superando décadas de exclusão territorial e periferização.
Desencadeando um espontâneo processo demográfico, provocado pela dinâmica econômica, processo esse que a própria concepção da Operação Lapa-Brás pretende induzir: o aumento da população na região central.
notas
1
Censo 1960 e 1970. IBGE.
2
“positive great planning disasters” HALL, Peter. Great Planning Disasters. Berkeley: University of California Press, 1982.
3
O Termo “lugar” é aqui usado de acordo com a abordagem da Humanista na Geografia Urbana. De acordo com Pacione é “uma localização no espaço única e especial, notável pelo fato de que atividades regulares do ser humano ocorrem (…) forma a base do nosso senso de indentidade como seres humanos, assim como nosso sense de comunidade”.
4
O conceito de Não-Lugar foi usado por Marc Augé, para definer os espaços em que a vida acontece na contemporaneidade. De acordo com o autor, são espaços de transito, espaços que “não agregam significado a ponto de se tornarem ‘lugares’”. Geralmente são espaços de transito enfraquecidos de referências coeltivas e sem identidade, mas considerados o local onde a vida contemporânea se dá. AUGE, Marc: NON-PLACES: Introduction to an anthropology of Supermodernity. Verso. New York. 1995.
5
Pedaço é o local, for a da casa, em que apropriação multiplas do espaço urbano se dão, principalmente pelos habitants de seu entorno, em suas várias dimensões sociais, como lazer, trabalho. Religião, etc. MAGNANI, José Guilherme; TORRES, Lillian de Lucca (org.). Na metrópole: textos de antropologia urbana. EDUSP/FAPESP. São Paulo. 1996.
6
Trecho retirado da licitação da Operação Lapa-Brás. Maio, 2010.
7
Dentre as ações para para impulsionar o Mercado imobiliário como agente de crescimento econômico, podem ser citadas a criação das leis:
Lei ° 9.514/97: Muda o sistema de financimento.
Lei n°10.931/04: Altera a estrutura legal e institucional das incorporações.
Novas políticas econômicas também foram criadas, como a exigência do Banco Central de que os bancos privados deveriam investor 65% da Poupança em operações imobiliárias em 2004 e em 2008 a criação do programa Minha Casa Minha Vida, estabelecido pela Lei 11.977/09.
8
Sales (2005), Somekh & Campos Neto (2005); Ferreira (2003); Fix (2001 and 2007), entre outros.
9
PACIONE, Michael. Urban Geography – a global perspective. Routledge: New York, 2001, p.539.
10
Extraído do edital da Licitação da Operação Lapa Brás. May, 2010.
11
PACIONE, Michael. Op. Cit., p.22.
12
Pacione (2001) e Fainstein (1994) abordam o assunto de forma semelhante, explicando como a produção do espaço é vista de forma capitalista, apenas levando em consideração a lógica de reprodução capitalista.
13
PACIONE, Michael. Op. Cit.
14
PACIONE, Michael. Op. Cit., p.162.
15
FAINSTEIN, Susan S. The city builders – Property, Politics and Planning in London and New York. Blackwell Publishers: New York, 1994, p. 264.
16
PACIONE, Michael. Op. Cit., p.397.
17
PACIONE, Michael. Op. Cit., p.161.
18
PALLAMIN, Vera M.; LIMA, R. Zeuter. Reinventing the void: São Paulo’s Museum of art and public life along Avenida Paulista. Pg 59-83. IRAZABAL, Clara (ed.). Ordinary Places Extraordinary Events. Routledge: New York, 2007.
19
Idem. Ibidem.
bibliografia complementar
ARTIGAS, Rosa; MELLO, Joana; CASTRO, Ana Claudia (Org). Caminhos do elevado. memória e projetos. Imprensa Oficial – PMSP: São Paulo, 2007.
FELDMAN, Sarah. Aprendendo com o Elevado Presidente Costa e Silva, o Minhocão. Resenhas Online, São Paulo, 08.091, Vitruvius, jul 2009 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/08.091/3029>.
FERREIRA, João Sette Whitaker. O mito da cidade global. Tese de Doutorado. FAUSP: São Paulo, 2003.
FIX, Mariana. Parceiros da exclusão. Boitempo: São Paulo, 2001.
FIX, Mariana. São Paulo cidade global. Boitempo: São Paulo, 2007.
HALL, Peter. Great Planning Disasters. University of California Press: Berkeley,1982.
SOMEKH, Nadia. A cidade vertical e o urbanismo modernizador – São Paulo 1920-1939. Editora da USP-FAPESP, Studio Nobel: São Paulo, 1997.
SOMEKH, Nadia; CAMPOS NETO, Candido Malta. Desenvolvimento local e projetos urbanos. Arquitextos, São Paulo, 05.059, Vitruvius, apr 2005 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.059/470>.
SOUZA, Carlos Leite de. Fraturas urbanas e a possibilidade de construção de novas territorialidades metropolitanas: a orla ferroviária. Tese de Doutorado. FAUSP: São Paulo, 2002.
TAKAHIRO Miyao, YOSHITSUGU Kanemoto. Urban dynamics and urban externalities. Routledge: New York, 2002.
VERHOEF, Erik T.;NIJKAMP, Peter. Externalities in Urban Economy. Available at http://www.tinbergen.nl/discussionpapers/03078.pdf . Acessed on 07.12.2010.
sobre a autora
Eliana Barbosa é Arquiteta e Urbanista, Mestre em Urbanismo Contemporâneo e Moderno e em Assentamentos Humanos. É Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Nove de Julho em São Paulo.