1. Habitar
“Ontem o motor voltou a molar!! O rangido suave da força do homem, antes esperançoso em ver a pedra mó girar, agora gira, gira moendo grãos!! Grãos de areia até polir a pedra, que dizem ser mais dura que o grão do milho. Por ora o tom ocre da poeira se acomoda; em breve, se não logo, a poeira da farinha. (...)
Nunca vi tanta gente, ou equipes de diferentes áreas/capacitação trabalharem sincronizadas. Parecia véspera de inauguração. Duas mulheres simpáticas limpando os vidros, outro senhor na parte mais alta com escadas, três senhores instalando ar condicionado, um senhor e um menino na instalação elétrica, dois rapazes no restauro (...) mais a equipe de equipamentos do moinho – são três: o vizinho do moinho , Sr. Forti (Índio), o Sr. Olímpio na coordenação, o engenheiro Alex, ansioso. Muitas ligações telefônicas e muitos contatos. Curiosos, vários!!! Vários mesmo, que delícia! Algo acontece!!
Ismael Rosset, relato aos arquitetos sobre o andamento da obra (1)
O encanto que transparece nesse relato aponta para um importante aspecto que o fato material da arquitetura provocou – uma transformação em curso que retira o antigo Moinho Colognese da estagnação aprisionada em um passado e o re-insere no presente da cidade.
“Algo acontece!!”
Construído originalmente no começo do século passado, inteiramente em madeira, por uma família de imigrantes do Vêneto em Ilópolis (RS), o moinho se encontrava abandonado desde 1990. O ato primeiro da transformação começou em 2004 com a fundação da Associação dos Amigos dos Moinhos do Alto Taquari e se concretiza com a recuperação do Moinho Colognese inaugurando o Museu do Pão em 2008. Recuperado o primeiro Moinho a expectativa é que Anta Gorda, Arvorezinha, Putinga e outras cidades vizinhas sejam “contagiadas” para formar o “Caminho dos Moinhos” (2).
Desde então um aspecto significativo se apresenta: o edifício, motivo desse restauro, é visto no contexto no qual se insere, um conjunto edificado em cidades próximas que se relacionam como fios de uma mesma trama. Ao invés de isolá-lo como monumento, aqui se reconhece o conjunto, e o circuito do qual faz parte.
O novo conjunto é constituído pela restauração e adequação do antigo Moinho Colognese e por dois novos prédios abrigando o Museu do Pão e uma Escola de Confeiteiros – aqui, no programa proposto, reside uma significativa diferença. Retomar antigos edifícios recuperando-os e destinando-os como museus é fato hoje corriqueiro, centros culturais e museus surgindo a cada momento para alimentar a indústria cultural. O que de certo modo os mantêm numa esfera de atenção e contemplação.
A presença da escola aqui dá outro sentido a essa ação: cria um fato novo que investe naquilo que justifica colocar novamente os moinhos em funcionamento: o uso da farinha que eles podem produzir, inserida num processo social re-valorizado pela Escola de Confeiteiros.
Resgata o antigo edifício de um estado de latência e estagnação e o reinveste de possibilidade. Não à toa há relatos de um moinho que tendo ciência do projeto teve sua produção retomada. A concorrência perdida com a indústria panificadora agora ganha outra ênfase que assegura um lugar possível e distinto aquela manufatura. Sem nostalgia, aponta para o futuro amparado na estabilidade de seu passado.
Parte da atenção que se detém, porque reconhece e admira, a força daquela arquitetura histórica como parte da vida vivida naquele território.
E, se o museu e o moinho asseguram retomar essa origem, a constituição da escola re-insere o moinho no curso da vida atual, atiçando-a. Coloca, em termos presentes, uma ação que se alimenta de um traço constitutivo de pertencimento àquele lugar.
E então, como tríade, o projeto constitui um precioso sentido: recupera o edifico de origem (o moinho), reconhece seu valor (através do museu) e viabiliza a possibilidade de constituir futuro (através da escola).
Essa triangulação é evidente na configuração da arquitetura. E, reconhecível nos três edifícios, o antigo e os dois novos blocos, sabiamente mantidos no desenho como corpos associados mas distintos. Uma distinção assegurada na integridade de cada edifício associada ao intervalo entre os blocos. E, uma delicada conexão ocorrida na passarela que articula o percurso pelo conjunto.
O projeto então antes de definir a forma arquitetônica, se desenha à medida em que se desenha à vida que quer fazer pulsar. A forma decorre dessa vida e se delineia com a competência de quem domina o ofício e a sofisticação de quem reconhece a necessidade de construir com atenção e elegância para amparar aquele delicado e importante habitar.
Vale observar os relatos anteriores, na fase ainda de promessa e projeto. Os moinhos do Sul já aparecem mencionados em entrevista concedida pelos arquitetos em maio de 2005 a Denise Pegorim e Antonio Carlos Barossi:
MF: A história começou com a Judith Cortesão. “Vocês precisam ir a Ilópolis ver os moinhos italianos”, ela disse. “Você está no meio do mato e encontra aquelas coisas maravilhosas!” Isso foi há cinco anos. Muito depois, fui ao Sul e resolvi esticar até Ilópolis sem saber direito o que encontraria. Não imaginava jamais ver uma arquitetura tão forte de imigrantes italianos, de transição do século XIX para o XX. Fiquei fascinado. Eram cinco moinhos. Um deles estava para ser demolido, porque o moleiro havia morrido e a família queria vender o terreno. Um grupo se organizou, sem recursos, mas com muito entusiasmo: “Precisamos colocar os moinhos para funcionar novamente! Criar a rota dos moinhos e trazer gente para visitá-los! Fazer a festa do pão!”. Bem conversamos com o prefeito e começamos a nos movimentar, a envolver mais e mais pessoas. Com os contatos aqui do escritório chegamos à Nestlé, que não só comprou o moinho e doou à comunidade como está bancando uma escola de confeiteiros na cidade. O governo italiano, através do IILA [Instituto Ítalo-LAtino-Americano], está patrocinando um curso de restauro de madeira fantástico, com professores vindos da Itália e alunos de diferentes idades e níveis de formação. Há gaúchos, paraguaios, um uruguaio, um boliviano. E o objeto de trabalho do curso é o próprio moinho!
FF: Esses são os projetos que mais emocionam. É como o KKKK, de Registro. Veja, Ilópolis tem 4.500 habitantes. Os moinhos estão voltando a produzir. O fubá, que eles chamam de farinha de milho, agora está sendo vendido na região e até em Porto Alegre
MF: São possibilidades da ação arquitetônica. Quando a história ganha essa vida, o projeto de arquitetura se torna apenas uma pequena parte de tudo (3).
Essa compreensão do projeto que se sabe “apenas uma pequena parte de tudo” revela uma corajosa e ampla ambição: que a arquitetura possa de fato intervir no curso da vida!
O que a principio pode ser interpretado como uma redução significa de fato uma ampliação da potência da arquitetura.
Arquitetura entendida então não apenas como meio técnico de configuração formal para atender a uma demanda, mas como elemento re-organizador da vivência nos lugares. Para realizar essa reorganização constrói o programa como possibilidade para uma vida desejável a partir das possibilidades do que lá está.
Vale acompanhar os passos desse processo.
De início, aceitar o convite de ir ao encontro do que ainda nem se sabe exatamente o que encontrar – nessa medida uma viagem ampla, na confiabilidade de um interlocutor respeitado, é claro, mas a disposição de se deixar surpreender pelo inesperado. Depois, uma vez “fascinado” envolvido com o processo, promove uma ação na qual se compromete a pensar a totalidade daquilo que viabiliza a proposta. A começar pela necessária condição financeira, e a continuar por um enfrentamento do programa que faça com que essa ação não se limite a um lampejo de luz, instantâneo e efêmero como tem sido tantos espetáculos que agem no compromisso presente de restauro de um edifício sem saber com que meios e por que razão esse resgate o manterá.
Uma atenção portanto que se revela como compreensão da arquitetura em seus desdobramentos e não apenas como materialidade ensimesmada.
Acompanhar Marcelo Ferraz numa viajem a Ilópolis, com o Museu já em funcionamento, revela a segurança com que esse cuidado se configura. A ação do projeto (a que os arquitetos nomeiam “ação arquitetônica”, com muita pertinência) se torna uma espécie de campo imantado a partir do qual uma trama é tecida. Antes mesmo de chegar em Ilópolis uma abordagem na estrada: um assessor do prefeito de Encantado aguarda o arquiteto com quem o prefeito quer falar visando viabilizar a entrada da cidade no circuito dos moinhos. Segue-se a serena competência de Ferraz em encaminhar essa demanda para a Associação. No segundo dia de viagem, uma visita a senhora que irá cuidar da cozinha, revela a necessidade de assegurar sua contratação, até então apenas prometida, que irá se desdobrar na reunião esperada. Encontros e fatos esses que dentre outros confirmam a intimidade do arquiteto com o território e sua gente e a condição de se saber (projeto/arquiteto) o pivô que os agrega.
A visita a Ilópolis confirma o imã dessa trama. Arquitetura entendida como fato material que pode ser a matéria do sonho. E uma natureza de arquiteto que acredita na potência física dos sonhos (4).
2. Conviver
Essa natureza de arquitetura é rara em tempos atuais tão plenos de formas extraordinárias e um certo encantamento pelas imagens. Uma arquitetura que não se reconhece pela forma, por uma recorrência histriônica e exuberante de design, se reconhece por uma certa ética.
Na ação dos arquitetos do Brasil Arquitetura, tem se tornado um procedimento recorrente essa ética. Desde o conjunto KKKK, em registro, iniciado em 1996, como menciona Fanucci na entrevista anteriormente citada. Até o recente projeto em Salvador, Vila Nova Esperança, premiação IAB em 2009.
Em KKKK, a recuperação e adequação do edifício histórico para o Museu da Imigração Japonesa foi iniciativa do Brasil arquitetura. Um programa constituído por um centro de convivência, salas multimídia, biblioteca, área para exposições, restaurante e um auditório constituindo um novo edifício em um bloco independente do edifício original.
O museu conta com acervo de obras cedidas por artistas plásticos de origem japonesa radicados no Brasil, além de fotografias, ferramentas, peças industriais e objetos doados pela população, reunidos para contar a história da imigração japonesa na região.
Resgate de um passado material e simbólico, reinserido numa proposta de espaço que configura a integração do edifício industrial com a cidade e revela rio como espaço de aproximação: relacionando-o com a cidade de Registro e com o rio Ribeira de Iguape num projeto mais amplo, o Parque Beira-Rio.
Em Vila Nova Esperança, o Programa nasce da agregação de novos elementos àqueles existentes reconhecidos como potência latente (a pequena fábrica, a horta etc.), elementos que serão ampliados e re-configurados para reorganizarem o espaço e a vida.
Território hoje fechado a ser novamente banhado de luz, o projeto recupera por liberar as áreas de platôs resgatando os surpreendentes muros de arrimo em pedra que definem os contornos em pequenas praças dessa escarpa. Valoriza-os, redesenhando a ocupação pela moradia existente em novos edifícios, e com esse adensamento libera o solo em comum.
Leitura de espaço, ocupação, manutenção de uma população residente reconhecendo sua vocação, ampliação da latência de uma possibilidade ainda dispersa que ampliada fortalece essa gente. O que já existia nomeia os novos espaços: Praça dos tambores, Bloco Pomar, Horta...
No memorial dos arquitetos: “Projetar é captar e inventar o lugar a um só tempo”, ecoando Álvaro Siza, na epígrafe que abre o memorial: “Uma coisa é o lugar físico, outra coisa é o lugar para o projeto. E o lugar não é nenhum ponto de partida, mas é um ponto de chegada. Perceber o que é o lugar é já fazer o projeto”.
No caso do Brasil Arquitetura uma percepção nesses casos muito atenta do lugar e suas “gentes”.
Assim como no projeto em Ilópolis o que se pretende aqui é configurar o projeto de arquitetura como fato agregador que pode ser transformador de uma realidade na qual se pretende intervir. E que passa a ser fruto de uma ação mais ampla que o fato material da arquitetura tão somente – veja-se o envolvimento de outros tantos grupos na proposta, no KKKK aferida pelas doações por exemplo; no Museu do Pão na sinergia que faz ecoar para além daquele edifício a ação, em Vila Nova Esperança, na comunidade envolvida acompanhando o processo.
Esses projetos trazem o que Max Risselada tão bem descreve como “utopia do cotidiano” (5).
Uma atenção ao cotidiano necessário e desejável. Uma curiosidade que se alimenta da vida na ampla complexidade de seus termos para poder projetar. O procedimento não é novo, ainda que sempre nova, necessariamente sejam as relações a serem enfrentadas (6).
A construção do programa, fato de certo modo presente e mesmo corriqueiro aos arquitetos da chamada Escola Paulista, se apresenta a partir de um claro e inequívoco desvio. O programa aqui configurado atenta para um cotidiano existente que se deseja recolocar. Que transforma não por pleitear uma nova realidade apenas, mas por se entranhar na realidade dada a ponto de poder re-significá-la!
O programa nasce assim não apenas da certeza de transformação e do gesto inaugural, novo sobre o território, mas de uma delicada atenção à vida que ocorre e ocorreu naquele sítio e que justifica a ação que recupera por transformar. Resguarda e liberta simultaneamente.
Arquitetura como meio e não como fim em si mesmo, que só pode ambicionar agir assim se puder com muito rigor e competência enfrentar seu próprio domínio. Como um grande músico que nos faz ouvir só a musica nos permitindo esquecer a necessária técnica que a faz ecoar. O Brasil Arquitetura se vale desse domínio sobre um saber específico para fazê-lo suavemente ecoar além de sua materialidade, o faz para poder habitar.
Habitar entendido nos termos propostos por Heidegger para quem
“Somente em sendo capazes de habitar é que podemos construir” (7).
Segundo ele
“A maneira como tu és e eu sou, o modo segundo o qual somos homens sobre essa terra é o Bauen, o habitar”. Ser homem diz: ser como um mortal sobre essa terra. Diz: habitar. A antiga palavra bauen (construir) diz que o homem é à medida que habita (8).
Habitar então indica
“ser trazido à paz de um abrigo”, (...) “permanecer pacificado na liberdade de um pertencimento, resguardar cada coisa em sua essência” (9).
Pois para Heidegger resguardar não é simplesmente guardar sem destinar.
“Resguardar é, em sentido próprio, algo positivo e acontece quando deixamos alguma coisa entregue de antemão ao seu vigor de essência, quando devolvemos, de maneira própria, alguma coisa ao abrigo de sua essência, seguindo a correspondência com a palavra libertar (freien): libertar para a paz de um abrigo.(...) O traço fundamental do habitar é esse resguardo” (10).
No texto “O que quer dizer pensar?”, Heidegger aponta para o que nos atem, que guardamos como aquilo que, antes de tudo e antes de mais nada, cabe pensar.
É oportuno observar a que coisas Fanucci e Ferraz se atém.
Os textos de Heidegger foram instigante mote nas conversas com Fanucci na fase de elaboração desse ensaio. Retomá-lo a partir daquelas conversas permitiu perceber que essa natureza de atenção corresponde a uma música almejada e rigorosamente perseguida.
E, se Heidegger reaparece nas conversas com Fanucci, as fotografias de Ferraz são importante documentação para reconhecer o que detém seu olhar.
Vale lembrar o ensaio editado no livro Arquitetura rural da Serra da Mantiqueira, de Marcelo Ferraz, passados já 12 anos dessa publicação (11).
Com um acurado e disponível olhar, de quem olha ainda sem saber exatamente o que procura, mas se deixando deter na atmosfera de um lugar, Ferraz faz um ensaio de esse “estar sobre a terra”, tão peculiar, num domínio de uma certa ocupação que entende a arquitetura a partir tanto do vasto território na qual se instala quanto nos detalhes surpreendentes, porque singelos e ao mesmo tempo potentes, dos quintais.
Nos termos de Antonio Cândido, são imagens,
“segundo a qual se articulam a paisagem, a habitação, a faina de todo-o-dia, os costumes, os folguedos – resultando algo muito humano além de belo” (12).
E é esse “muito humano além de belo” que em projetos como KKKK, Museu do Pão e Vila Nova Esperança parece continuar a ecoar.
Nos termos de Ferraz:
“Este livro não é um livro de fotografia ou um ensaio fotográfico sobre um certo tema. É um trabalho onde, como arquiteto, me utilizei da fotografia para capturar e revelar um mundo em que as relações do homem com a natureza que o circunda se dão num estágio genuíno de interação” (13).
Uma forma de notação para fazer arquitetura, que guarda as imagens ao se apropriar de um lugar. Esse registro se fez também presente na apresentação do projeto para o Moinho, quando (14) Ferraz apresenta a região, as casas, a paisagem, os detalhes a surpreendente luminária que hoje está instalada no terreno do Museu, o gradil recorrente que é retomado nas passarelas propostas, a presença sóbria da madeira na arquitetura local, o desenho descoberto em uma casa fotografada que se torna símbolo do circuito, elementos que o permitiram apreender aquele sítio, tão próximo do modo como se pode perceber na Mantiqueira.
Tanto a atenção de Fanucci a Heidegger – um texto de cabeceira, ele mais tarde vai revelar - quanto o reconhecimento dessa documentação como forma de resguardo e memória ao se ater a um sítio, antes de qualquer gesto de projeto ainda, revelam que a ética que transparece no procedimento de projeto é uma recorrência de uma certa maneira de entender a arquitetura como fato de cultura, significativamente ancorado na vida que permite propor um habitar constituído na liberdade de um pertencimento.
Não se guarda um edifício para não tocar, se resguarda, na medida mesma em que se quer transformar. Nos termos de Michael Sorkin:
“Uma autêntica arquitetura do passado merece uma autêntica arquitetura contemporânea” (15).
E aqui autêntica não apenas porque inaugural, autêntica na medida mesma em que retira de latência e reinventa uma possibilidade existente. Não forja o novo para transformar, configura o novo ao re-inventar o que esta lá.
Uma reinvenção que liberta por resguardar, constituindo com formas arquitetônicas algo de muito humano além de belo, que a significativa frase de Antônio Cândido nos ajuda a entender.
Não se trata apenas de uma materialidade que quer encantar, trata-se antes de tudo de amparar a vida desejável, e para ela construir. Nessa ambição, mais do que em qualquer forma reside a beleza sublime dessa natureza de arquitetura.
3. Encontrar a justa medida
Um alarido de pássaros configura uma curiosa densidade num espaço de passagem. Logo após o portão de acesso o espaço é preenchido por uma algazarra. Forte memória da casa Ubiracica (1996/1997, São Paulo) que não é perceptível apenas pelo desenho, o viveiro de pássaros logo a entrada, constituía uma espécie de soleira expandida entre a rua e a casa.
Remete, naturalmente a gaiola pendurada na frente das casas das pequenas cidades brasileiras, mas da gaiola restam só os cantos, aqui o viveiro é um prisma geométrico, coberto com uma laje de concreto, no qual as telas são os vedos configurando um espaço arquitetônico parte do desenho da casa e não mais um elemento sobreposto à arquitetura como no caso das gaiolas (16).
Estão naquela casa várias referências, que vão do tradicional forno à lenha à lareira com jeito ibérico passando pelos planos íntegros e contínuos da arquitetura moderna. Mas, é importante reconhecer nenhum desses elementos é simplesmente inserido tal e qual, eles montam uma curiosa combinatória ao serem articulados, como por exemplo na cozinha moderna que se estende transformada no varanda/alpendre aberta para o jardim lateral. Não há mimetismo ou alegoria, os elementos guardam a chama de suas origens, mas transformada.
A variedade que encanta, e que é tão peculiar a variedade da vida, que perpassa a grande maioria dos projetos do escritório, parece fazer com que mais do que corpos contínuos, únicos e transparentes se possam reconhecer uma aproximação de elementos que vão desaguando uns nos outros e que ao mesmo tempo em que se articulam, se distinguem.
Daí decorre boa parte da surpresa e às vezes do desconforto desses projetos: da coragem de construir assegurando um habitar variado. Uma variedade não estanque ou esperada mas que reconhece – confirmado na sua materialidade – a possibilidade de convívio e aproximação não apenas entre iguais.
Aquela disponibilidade para a vida permite que a arquitetura se ampare em diferentes referências e que as traga, todas elas, da mais erudita a mais popular, da mais técnica a mais poética, transformadas e reinventadas – poderosamente deglutidas para usar um termo tão claro de nossa conhecida antropofagia.
O Brasil Arquitetura sabe se valer dessa potência reconhecida na beleza do outro que precisa ser apreendida e transformada para que de fato possa atuar.
Uma palavra cara aos arquitetos sugere uma bela pista para o entendimento de seu fazer: Convívio. Aqui a alteridade não assusta, alimenta.
Conviver significa poder se encantar pela diferença, um convívio entre iguais é no mínimo previsível. E fazer conviver pulsos diferentes parece ser um dos difíceis desafios desse escritório.
Por isso, buscar reconhecer uma gramática formal, ou material, nesse caso se configura num ardiloso modo de perdê-los. Não importa necessariamente se o muro é azul, ou de concreto ciclópico; assim como não importa exatamente se o forro é de palhinha ou de madeira ou de concreto, ou se os espaços são configurados por geometrias simples os complexas. Importa a maneira como a cada vez eles farão conciliar as variáveis que a princípio indicariam distinção e escolha, tanto materiais ou técnicas quando nos programas, os usos do espaços, quanto na sua organização enquanto espacialidades.
Um olhar atento aos projetos vai confirmando essa presença de elementos variados em aproximação. Vasco Caldeira se detém nesse traço ao analisar as casas do escritório, observando sua alternância,
“Mas a decomposição formal e programática corresponde também a operações mais internas, como a de dinamizar a fruição do espaço, diversificando e entrecruzando os percursos da sua percepção e construindo uma rica trama de relações que procura corresponder à variedade e à riqueza de situações encontradas na própria convivência doméstica” (17).
Ao analisar a casa Ubiracica observa “um itinerário de variações, uma alternância de situações espaciais contrastes, um ritmo”.
Ao espaço isotrópico, contínuo, que se revela transparente tão comum desde a arquitetura moderna, os arquitetos contrapõem um espaço partilhado, que vai permitindo a constituição de variáveis, e a possibilidade de aproximação de matrizes distintas sem diluí-las num novo elemento apaziguado.
Mas como fazer coexistir de modo pertinente ritmos distintos e variados?
Para viver junto, Barthes ensina, é preciso constituir uma ética das distâncias. Vale retomar os termos do autor:
“O Viver-Junto, sobretudo idiorrítmico, comporta uma ética (ou uma física) da distância entre os sujeitos que coabitam. (...). Coloco aqui, brevemente, uma forma desse problema (mas não a sua solução): a distância entre os corpos (no Viver-Junto).
O problema pode ser anunciado sob a forma de uma aporia,e essa aporia é uma cadeia:
1. O corpo dos outros – do outro – me perturba. Eu desejo, experimento a energia e a falta do desejo, entro na tática esgotante do desejo.
2. Dessa perturbação, induzo, fantasio um estado que a faça desaparecer: a hesykhía: a pacificação do desejo,a folga não dolorosa,a equanimidade.
3. Edito, então, certas regras para chegar à hesykhía. Em geral, essas regras são de distância com relação aos outros corpos, desencadeadores de desejo.
4. Mas ao matar o desejo do outro, dos outros, mato o desejo de viver. Se o corpo do outro não me perturba, ou se não posso jamais tocar o corpo do outro, para que viver? A aporia está fechada” (18).
Barthes antes explicita o que entende por Idiorritmia, palavra formada a partir do grego ídios (próprio, particular) e rhythmós (ritmo). Fala de uma fantasia de vida, de regime, nem dual, nem plural (coletivo). Nos termos do autor:
“Algo como uma solidão interrompida de modo regrado: o paradoxo, a contradição, a aporia de uma partilha das distâncias – a utopia de um socialismo das distâncias” (19).
O interesse em seguir o raciocínio proposto por Barthes é reconhecer que a possibilidade de uma distância construída é o que permite mediação entre os extremos indesejáveis, de uma simples solidão ou de um único ritmo de um lado e de uma dissolução por excessiva aproximação, dos ritmos próprios que asseguravam aqueles elementos anteriores sua alteridade.
Segundo o autor para aproximar ritmos distintos é preciso encontrar a “justa medida”; a distância necessária para que a alteridade se mantenha e ao mesmo tempo o contato se faça possível.
Usaremos então essa metáfora que permite pensar o Viver–Junto.
E, desse ponto de vista, vale retomar o caminho do Brasil Arquitetura, que ao se encantar com ritmos distintos não os apazigua, neutralizando-os na formação de uma dissolução de suas peculiaridades, mas busca de certo modo manter em contato a diferença que se quer aproximar amparadas numa materialidade que lhes permita coexistir. E nessa medida constitui com o mesmo elemento uma variabilidade desejável que permite aproximar formas distintas.
A atenção gerada pelos projetos nessa combinatória nos leva a um curioso caminho. Um debate instigante sobre fusão merece ser relatado. Em uma das primeiras conversas com os arquitetos ao ser apontada essa característica de articulação de coisas aparentemente não aproximáveis, nos detivemos na palavra fusão – seria fundir um elemento no outro a forma de aglutiná-los? Mas se a fusão pressupõe a anulação de um elemento pelo outro de tal modo que não sejam mais reconhecíveis suas origens, naturalmente não é de fusão que se trata aqui.
A pista vem com Fanucci que lembra o carbono como elemento químico. Retomar os ensinamentos da química, permite lembrar que um mesmo elemento pode se apresentar de modos tão diferentes quanto o grafite e o diamante, propriedade nomeada na química como alotropia (20).
Aqui vale configurar um duplo aspecto: o primeiro, como um mesmo elemento poderia formar substâncias diferentes? O segundo aspecto, nos termos apontados por Barthes, como assegurar a justa medida do Viver-junto? Esses dois aspectos tão distintos são relacionados nas estratégias de projeto do Brasil Arquitetura.
4. Configurar o mesmo e sempre outro: distâncias, passagens, muros
No concurso para o Centro Cultural Tacaruna (2002, Recife, PE) aparecem três estratégias recorrentes, elementos que aqui lemos como elementos oportunos na articulação proposta nos projetos do escritório: o vazio (que assegura a necessária distância) associado à marquise ou passarela (que articula) e, um intrigante elemento que a um só tempo separa e conecta: os muros.
Se os vazios e passarelas/marquises mantém de certo modo sua vocação original, os intervalos afastam e as passarelas e marquises articulam; os muros do Brasil Arquitetura parecem subverter sua lógica de origem, a de configurar fronteiras, estabelecer limites. Vejamos.
No Centro CulturalTacaruna a distância é o primeiro gesto para garantir a configuração do novo corpo separado pela constituição da grande praça esplanada que configura o intervalo necessário entre o velho edifício industrial e o novo conjunto associado a uma marquise, que faz a conexão entre os dois corpos edificados e afastados, e um eloqüente muro que protege assegurando que convivam em sua surpreendente diferença. Nos termos de Cecília Rodrigues dos Santos:
“A fábrica define um dos lados de uma grande praça /esplanada, liberada com a demolição de anexos e galpões, ligando-se através de uma marquise coberta de concreto ao segundo edifício do conjunto, o contraponto contemporâneo do conjunto que delimita o outro lado da grande praça. O elemento mais marcante do novo edifício é um muro de 13 m de altura e 200 m de comprimento, interrompido na sua extensão apenas para abraçar uma pequena chaminé remanescente do conjunto industrial e receber a marquise. Construído em concreto ciclópico bruto, irregular, ele é cultivado nas suas reentrâncias, recebendo musgos, samambaias, orquídeas” (21).
Esses elementos aparecem em vários projetos, cada vez diferentes enquanto forma e material , às vezes mesmo com funções um pouco distintas mas sempre a editar uma certa distância que se precisa assegurar e uma articulação desejável que permita aproximar.
Vale seguir a partir da observação de alguns projetos.
No museu Rodin, distância e conexão são estratégias constituídas para configurar o novo edifício frente ao existente. Afastado do antigo casarão no Museu Rodin (2006/2007, Salvador, BA) e articulado pela passarela, intervalo e ligação amparam a premissa que assegura distância e contato.
Uma distância calculada, que é feita a partir de um volume vizinho com a mesma área do existente. E, para revelar sua diferença, afasta-os. Mas para garantir sua continuidade aproxima-os pelo eixo que vai da varanda do antigo Palacete, atravessando o vazio, conectar o novo corpo. Eixo contínuo que insere um edifício no outro como uma suave passagem.
Passarela, passagem e caminho, corpo relacional de dois corpos que se quer afastar. Estão presentes também no Museu do Pão, abraçando o conjunto, entrelaçando suas bordas, e no Museu Ferroviário (em fase de projeto), em que a passarela sai de um corpo para, perpassando o outro, retornar a ele.
Assim como as passarelas, as marquises também realizam conexão. Em KKKK, constituindo uma edição interna; em Tacaruna, relacionando a antiga fábrica ao novo conjunto.
Como se pode ver a estratégia é uma só, o desenho é sempre outro. Seja nos materiais, seja na forma.
E entendidas as distâncias necessárias, configuradas em suas justas medidas pelos vazios que distinguem os corpos e a re-conexão produzida pelas marquises e passarelas surge um poderoso e estranho uso de um ordinário elemento, usualmente constituído para apartar o elemento projetado de sua vizinhança: os muros.
A atenção para esse elemento reposicionado nos projetos do escritório surgiu como hipótese ao conhecer o projeto para o Concurso para a Sede do Grupo Corpo (2001, Belo Horizonte, MG).
Ao invés de ocorrer como borda, limite, o muro se põe entre, como uma espinha dorsal, corpo articulador e divisor de espaços a um só tempo. De um lado abriga os maiores volumes, com os programas excepcionais, de outro uma variedade inquieta de caixas do programa corriqueiro. Distintos em escalas e em natureza de público e uso esse muro funciona ao mesmo tempo para separar e unir.
O muro aqui não se confunde com um simples fechamento ou elemento limítrofe. E será essa natureza peculiar que se pode perceber em alguns projetos que é aqui oportuno reconhecer.
Aqui não se configuram distâncias por espaços entre os lugares, a distância é dada por esse elemento particular. Os muros então correspondem aos vazios associados a passarelas e as marquises.
Os muros do Brasil arquitetura são muros ambíguos, conectam ao separar!
Muros porosos, não opacos, através dos quais se pode conectar – não indiscriminadamente, mas de modo controlado – faces a princípio difíceis de aproximar.
Ao falar das cidades no texto “The Open City”, Richard Sennet considera certa natureza de muro como elementos de passagem. Retoma a espessa muralha medieval que separa e une regulando o contato. Segundo ele:
“Whenever we construct a barrier, we have equally make the barrier porous; the distinction between inside and outside has to be breachable, if not ambiguous” (22).
Sennet aponta nesse texto os territórios de passagem como um dos elementos sistemáticos na estratégia para cidades abertas, dentre eles propõe reconhecer muros simultaneamente resistentes e porosos. Em seus termos:
“The idea of a cellular wall, which is both resistant and pourous, can be extended from single buildings to the zones in which the different communities of a city meet” (23).
Alguns dos significativos muros do Brasil Arquitetura se configuram como esse “muro poroso” que permite a passagem entre territórios distintos.
Às vezes são muros tão presentes que nomeiam as casas das quais fazem parte, como a Casa do Muro Azul (1994/1996, São Paulo, SP). Aqui o muro é partilha, separação e cumpre lindamente essa função; serve de proteção que isola para assegurar proximidade com uma área lindeira excessivamente ruidosa em termos construtivos.
Muro limite que define uma casa uterina. Abre um fresta de luz, banhando a casa todo o tempo como um rebatedor da luz solar, que adentra o espaço pela claraboia que corre paralela ao muro, hiato de luz. Edita e controla o que se quer conectar.
Outro muro surpreendente é o muro de pedra da Vila Isabella (2005/2007, Hanko, Finlândia) Um muro que edita os dois lados da casa: acesso e escritório de um lado e na outra “margem” o morar propriamente. Configura a “soleira” espessa da casa e de modo intrigante ao atravessá-lo retomamos a luz: uma vez dentro se retoma de certo modo o exterior agora cálido, abrigado.
Traz a memória, pela clarabóia de luz, a Casa do Muro Azul, mas aqui em outro contexto e com outra materialidade se insere no meio da casa organizando o espaço a partir de seu eixo. Não mais limite, mas corpo inserido.
Ainda outro: o muro da casa de Cotia (SP, 1998). Muro de pedra e concreto de aspecto ciclópico desenhado como um “y“ a definir uma bifurcação entre os dois corpos edificados aproximados por uma delicada passarela suspensa envidraçada.
Cada um desses muros traz um material, um desenho mas todos eles se constituem como aquele muro poroso, que permite a passagem sofisticada entre territórios que se quer aproximar. Intervalo, justa medida entre ritmos distintos.
Uma das obras mais surpreendentes nessa associação imprevista é a Casa Mantiqueira (2000/2001, São Francisco Xavier, SP). Ela se apresenta por duas faces a princípio irreconciliáveis, de um lado o abrupto muro que se ancora no vértice do grande vale, de outro a suave varanda em “L”, de cobertura de telha de barro e redes penduradas.
A adição descrita parece improvável. Mais uma vez nos deparamos com a fundamental questão, como conciliar o aparentemente irreconciliável?
Um muro rigoroso e simples, à maneira de uma “faca só lâmina” (24) corta o terreno e ao mesmo tempo protege a casa, configurando o limite que vai permitir que a vida da casa ocorra vizinha a esse abismo, mas protegido dele.
Um aspecto já revelado na análise de Caldeira,
“Em sua implantação a casa escorrega para a beira da encosta em vez de como distintamente repousar no centro do pequeno platô, todavia disponível. Ao encontrar-se com o limite súbito e concreto do terreno, fronteira entre o recolhimento do abrigo e a imensidão do panorama, desenha-se em forma de lâmina incisiva inscrita com formas puras e dimensões monumentais ajustadas à escala da paisagem” (25).
O muro aqui é elemento fundamental na articulação daquele território.
Da rede é possível ver, através do corpo da sala, por uma ampla porta de correr e pela janela generosa que se abre sobre o grande vale essa passagem. E, abrigado, se encantar com o exuberante precipício.
A casa então ocorre entre o abismo do maior vale e a suavidade do vale menor. Ela constitui com seu corpo o hiato necessário para conciliação entre esses dois mundos, como duas faces tão distintas da mesma fita de Moebius.
A corajosa implantação e o domínio conquistado pelo rigoroso muro asseguram poder “morar” lá.
E daqui é possível retomar aquela que parece ser a questão primordial. Como construir para poder habitar? Como permitir o encanto do convívio, a condição rica e instigante de uma vida diversa e variada que se quer ver pulsar?
5. Construir
Para habitar a diversidade do mundo é preciso saber conviver. Aqui parece residir o entrelaçamento dos aspectos desdobrados até aqui.
Uma arquitetura que se sabe inserida como fato de cultura e almeja constituir uma base material para um habitar poético, e para tanto não atende apenas demandas e as materializa, constrói projetos, no sentido mais amplo da palavra, constrói desígnios, mantendo a tradição proposta por Artigas. E ao construí-los se distancia dessa mesma tradição ao fazê-lo atentamente ao território tanto material quanto cultural a partir do qual se materializará.
Um projeto recente do escritório, ainda em fase de estudo reitera a premissa. O Museu de Iguatú, na Bahia, na Chapada dos Guimarães. Revela esse momento em que o estudo parte de uma compreensão do território, do conhecimento de quem lá habita, de suas potencialidades, para buscar um desenho que ampare com competência e rigor seu habitar.
O fato material proposto se traduz nesse caso numa esplanada, para poder descortinar a vista que se quer visível. Espécie de edifício ponte que constrói sob a laje o corpo da museu e sobre ela uma marquise, sombra para abrigar quem avista e define um sitio para se estar e dele usufruir o que melhor há lá. Se traduz numa geometria arquitetônica inequivocamente contemporânea, na sua forma, nos seus materiais, em seu programa.
O projeto não foi encomendado, precisa encontrar seu cliente, aquele que ira assegurar seu patrocínio e zelar por sua manutenção. Nasce assim, como no caso dos Moinhos na vontade de quem lá habita de reinventar as formas desse habitar que encontra eco nessa natureza de arquiteto que quer reinventar as formas de “arquitetar”. É com esse grupo que os arquitetos dialogam, a quem eles ouvem atentamente e constituem seus parceiros na empreitada.
Começa a se delinear nova matéria do sonho. Parte desse sonho no encanto pela diferença rica na variedade do mundo. Da sua matéria às suas gentes. E embalados por esse desejo, amparados pelo domínio inequívoco que têm da disciplina da arquitetura e urbanismo, surgem as estratégias para configurar um habitar civilizado entre as variáveis do mundo.
Micheal Sorkin já apontou que a civilidade nasce justamente desse encontro, no atrito resultante do convívio com aqueles que não necessariamente são nossos pares. Nos seus termos:
”La fricción urbana es la señal del límite y un constituyente sintomático de los gradientes de la sociabilidad urbana. Esta fricción, mediante la señalización de la diferencia, sitúa los límites internos de la ciudad así como sus fuentes potenciales de conflicto. De hecho, la misma idea de convivencia es producida por ese conflicto, reforzado por el carácter físico de la vida urbana. No es una tautología sugerir que el único entrenamiento para vivir juntos consiste en vivir juntos” (26).
Uma vida portanto amparada no encanto da “civitas”, originalmente preconizado na vida das cidades, no encanto de uma civilizada sociabilidade parece querer novamente encontrar a justa medida.
Parece então natural que ao construir para poder habitar se viabilize possibilidades para realizar o desejável e livre convívio.
E assim, ao invés de apaziguar as diferenças do mundo na harmonia consoante de um mesmo corpus, buscar delinear dissonantes harmonias.
Construir passa a ser então a serena tarefa de quem deseja “apalpar as intimidades do mundo” e, sabe reconhecer como o poeta que:
“Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber que (...) o esplendor da manhã não se abre a faca” (27).
Uma serena tarefa tão bem realizada em alguns fortes projetos do Brasil Arquitetura que ao saber habitar, pode de modo corajoso e delicado tão bem construir.
notas
NA
A produção do escritório Brasil Arquitetura é ampla e variada. Vai de espaços públicos e institucionais como praças, largos, e museus, passando por significativo número de residências unifamiliares, ao desenho de mobiliário e museografias; da escala da cidade a escala do objeto. Ao me deter nessa variedade, entretanto alguns projetos se impuseram. Insistiam, retinham minha atenção e me fizeram tantas vezes retornar, intrigada por entender o que neles me inquietava.
Mais do que a extensão e variedade, ou mesmo a busca de um certo vocabulário formal recorrente que pudesse configurar uma “gramática” me encantou um certo procedimento. Associado a ele me intrigaram algumas reiteradas estratégias no âmbito material que me detiveram e que a meu ver cabia pensar.
Não tenho a pretensão, portanto de constituir um inventário vasto que permita compreender a ampla produção desse escritório, nem de registrar aquilo que pode ser lido como um traço majoritário ou mais presente nessa produção. Esse ensaio tão somente ambiciona poder refletir sobre os elementos e o procedimento que me instigaram à medida que me ative a essa produção. E, na trama possível daquilo que me faziam lembrar, detinha minha atenção.
Agradeço a Abílio Guerra a oportunidade, configurada pelo convite para realizar esse ensaio, o pretexto da descoberta. A Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci a generosidade com que me receberam com a disponibilidade de quem de fato tem prazer no convívio. As conversas, a partir dos projetos foram valiosas e instigante foi o tempo partilhado, rico na variedade de quem se permite visitar.
1
ROSSET, Ismael. Relato aos arquitetos sobre o andamento da obra. In: FERRAZ, João Grinspum (org.). Museu do Pão, Caminho dos Moinhos. Ilópolis, RS: Associação Amigos dos Moinhos do Vale do Taquari, 2008, p. 26-27.
2
Ver Caminho dos Moinhos, Vale do Alto Taquari, Rio Grande do Sul <www.regiaodosvales.com.br/caminhodosmoinhos>.
3
BAROSSI, Carlos; PEGORIM, Denise. Depoimentos. In: PEGORIM, Denise (org.). Francisco Fanucci – Marcelo Ferraz: Brasil Arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2005, p. 181.
4
Frase de Zé Celso Martinez Corrêa, no vídeo documentário Lina Bardi, a respeito de Lina, nos termos de Zé Celso: “Lina é dessas pessoas que acredita na potência física do sonho”. Um eco de um tempo partilhado e rico que se desdobra e re-inventa. Marcelo trabalhou com Lina desde o SESC Pompéia (1977) até o ano em que a arquiteta faleceu (1993). Foi editor do primeiro livro sobre sua obra, e, responsável junto ao Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, como seu diretor na época, de significativa divulgação do trabalho de Lina. A relação entre a obra de Marcelo Ferraz e Lina Bo Bardi nos faz lembrar Borges, que declara em sua sabedoria poética que: “No vocabulário crítico, a palavra precursor é indispensável, mas seria preciso purificá-la de toda conotação de polêmica ou rivalidade. O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, assim como há de modificar o futuro”. BORGES, Jorge Luis. Kafka e seus precursores. In: BORGES, Jorge Luis. Outras inquisições. São Paulo, Companhia das letras, 2007, p. 130. O grifo é nosso.
5
RISSELADA, Max. Apresentação. In: PEGORIM, Denise (org.). Op. cit., p. 10.
6
Aparece aqui nessa obra madura do Brasil arquitetura um lindo canto que “tece a manhã” com outros cantos, nos termos de João Cabral de Melo Neto. Como não reconhecer essa mesma ambição no Sesc Pompéia de Lina Bardi ou na Fábrica de equipamento em Salvador de Lelé para mencionarmos dois arquitetos próximos da vida desses daqui. Arquitetos que cada um a seu modo propuseram projetos que ambicionam tecer uma densa trama com a vida que se quer vivida.
7
HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis/Bragança Paulista, Vozes/Editora Universitária São Francisco, 2006, p 139.
8
Grifo nosso. Idem, ibidem, p. 127.
9
Idem, ibidem, p. 129.
10
Idem, ibidem, p. 129.
11
FERRAZ, Marcelo. Arquitetura rural na Serra da Mantiqueira. São Paulo, Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1996.
12
CÂNDIDO, Antonio. Introdução. In FERRAZ, Marcelo. Op. cit., p. 8-9.
13
FERRAZ, Marcelo. Op. cit., p. 15.
14
Em palestra proferida na Universidade São Judas Tadeu em outubro de 2007.
15
SORKIN, Michael. Patrimônio arquitetônico e metrópoles em extensão. Rua – Revista de Urbanismo e Arquitetura, Salvador, v. 1, n. 8 (Patrimônio: Maquinaria e Memória). jul/dez. 2003, p. 15.
16
Os pássaros não estão mais lá – mudaram-se para um novo viveiro no fundo do quintal – os pássaros eram das crianças, as crianças cresceram, a casa se transforma. Arquitetura não se sustenta sem a vida que a justifique.
17
CALDEIRA, Vasco. Casa Brasilis. In: PEGORIM, Denise (org.). Op. cit., p. 113-114.
18
Grifo nosso. BARTHES, Roland. Como Viver Junto. São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 141.
19
Idem, ibidem, p. 12-13.
20
Dicionário Houaiss de língua portuguesa on line, acesso em maio de 2009.
alotropia (Rubrica: fisioquímica): propriedade que possuem alguns elementos químicos de se apresentarem com formas e propriedades físicas diferentes, tais como densidade, organização espacial, condutividade elétrica (p.ex., o grafite e o diamante são formas alotrópicas do carbono)
Etimologia: gr. allotropia 'variação, variabilidade', der. do gr. allótropos 'de outro modo' (formado do gr. állos 'outro, diferente' e trópos 'modo, maneira', do v. trépin 'fazer-se, tornar-se').
21
SANTOS, Cecília Rodrigues dos. Centro Cultural Tacaruna. In: PEGORIM, Denise (org.). Op. cit., p. 92.
22
SENNET, Richard. The open City <http://esteticartografias07.files.wordpress.com/2008/07/berlin_richard_sennett_2006-the_open_city1.pdf>, p.3, acesso em setembro de 2013. Esse texto me foi apresentado por Fernando de Mello Franco, no momento em que me encontrava enredada pelos muros e buscando compreeder sua dupla função; o texto se apresentou como um pertinente instrumento a precisar os termos daquilo que eu tangenciava; a Fernando, agradeço o diálogo.
23
Idem, ibidem, p. 3.
24
MELO NETO, João Cabral de. Uma faca só lâmina / ou: serventia das idéias fixas, 1955 <www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=675&sid=337>. Acesso em setembro de 2013.
25
CALDEIRA, Vasco. Casa Mantiqueira. In: PEGORIM, Denise (org.). Op. cit. , p. 160.
26
SORKIN, Michael. El tráfico em la democracia. In: Quaderns d’Arquitectura i Urbanisme. En tránsito / In transit, Barcelona, n. 231, Col.legi d’Arquitectes de Catalunya, 2001, p. 19.
27
BARROS, Manoel de. Uma didática da invenção. In: BARROS, Manoel de. Livro das Ignorãças. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1994, p. 11.
sobre a autora
Marta Bogéa, professora da FAU USP, é arquiteta (UFES 1989), mestre (PUC/SP, 1993), doutora (FAU/USP, 2006) com doutorado publicado pela editora Senac em 2009 sob titulo Cidade errante: arquitetura em movimento. Autora de arquitetura para exposição de arte contemporânea dentre as quais Arte/Cidade III (1997), 27ª e 29ª Bienal de São Paulo (2006 e 2010), 30º e 32º Panorama da Arte Brasileira (2007 e 2011).