Apresentamos, nesta exposição-homenagem, uma frente da múltipla atuação (1) da arquiteta Lina Bo Bardi: as exposições que desenhou, curou (2) e realizou. Buscamos trazer uma visão ampla e não única desta ‘trajetória expositiva’, desde as experiências aplicadas no Masp 7 de Abril, feitas com a fresca bagagem da cultura museológica italiana às grandes mostras populares do Sesc Pompeia. Foram apresentações de acervos, coleções e mostras temporárias que expuseram arte antiga, moderna, popular, objetos arqueológicos, esculturas, objetos industrializados; cultura material e imaterial. Organizadas em arranjos intrigantes e misturando criticamente o conceito entre essas categorias, suas mostras visavam sempre à experiência do observador, buscando surpreendê-lo, convidando-o a interagir através da evocação dos sentidos.
Iniciamos o encontro com este universo, destacando cronologicamente sua trajetória vista pelo viés da prática expositiva, indicando alguns pontos fundamentais experimentados em sua primeira atuação profissional ainda na Itália e a chegada ao Brasil; outras ‘maneiras de expor’ fora do ambiente museológico, com caráter mais comercial; sua contribuição ao ‘salto museológico’ que representou o primeiro Masp da rua 7 de Abril, fundamental para o estabelecimento das bases da museografia moderna no território brasileiro; o ‘projeto de civilização’ exposto através da descoberta do potencial da cultura popular brasileira a partir do período em que viveu na Bahia; a ‘revolução museográfica’ do Museu de Arte de São Paulo com suas elaborações expositivas e, por fim, as exposições do Sesc Pompeia, com os grandes ‘painéis’ sobre design e cultura do cotidiano.
Os textos selecionados para conduzir a leitura das imagens e dos desenhos na exposição permanecem aqui juntos. São trechos das apresentações e anotações da própria arquiteta, divulgados à época do lançamento de cada trabalho. Complementaram esta apresentação, cinco videoentrevistas feitas com personagens que simbolizam a interação profissional com a arquiteta na realização de sua obra ou através dela, além de três projeções de filmes de época. Na exposição foram construídos expositores em escala, a partir da pesquisa feita nos desenhos, documentos e fotografias, que permitiram montar ambientações, transformando as salas do MCB em modelos de aproximação de algumas mostras selecionadas.
Nesta publicação, ampliando a compreensão e contextualizando sua ‘obra expositiva’, incluímos os seguintes textos: O gosto moderno: o design da exposição e a exposição do design, de Renato Anelli, que esclarece as origens desta atuação enraizadas na museografia moderna internacional; Lina: gráfica a contrapelo, de Chico Homem de Melo, que aborda o tema de comunicação gráfica complementar à atividade de comunicação expositiva; e a reflexão biográfica Lina Bo Bardi, curadora: Uma vida em montagem, de Zeuler Rocha M. de Almeida Lima.
Maneiras de expor, como a própria arquiteta definiu a experiência na área, traz a público seu esforço em apresentar uma visão penetrante na realidade dos fatos, na universalidade das coisas e fenômenos expostos, nas conquistas das artes e nas soluções técnicas coletivas. Lina Bo Bardi apresentou o Brasil para os brasileiros, em uma conscientização crescente, a cada montagem, sobre o papel de formação intrínseco ao gesto de comunicar através de expor; noticiar! E isso ela fez de maneira poética, teatral e completa, integrada ao espaço arquitetônico. Ao público, o deleite estético nesse panorama sobre sua ‘arquitetura expositiva’, seus manifestos!
Origens
Em busca de maior compreensão da atitude expositiva praticada pela arquiteta Lina Bo Bardi, observamos o berço de sua formação, ligado às primeiras atuações profissionais na Itália, que antecederam sua vinda ao Brasil. Logo após o término da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Roma, em 1939, Lina mudou-se para Milão, cidade industrial em que havia um ambiente culturalmente mais arrojado e propício para trabalhar. O grupo de arquitetos que lá atuava, respirando maior liberdade diante das correntes conservadoras romanas, propunha, à época, experimentações museográficas e arranjos expositivos que despontaram durante a reconstrução do pós-guerra, abrindo novas perspectivas de comunicação para o campo museológico e museográfico. O arquiteto Franco Albini, segundo Renato Anelli, “um dos maiores produtores de museografia no pós-guerra” (3), já experimentava novas relações ligadas à apreciação de pinturas ao promover seu deslocamento das paredes, extraindo a condição inicial de ‘janela’ ou ‘buraco’ para a inserção de sua presença física no tempo e espaço presentes. Esse assunto de recontextualização do objeto histórico inserido no ‘presente histórico’ será amplamente elaborado na futura obra da arquiteta Lina Bo.
Em Milão, Lina entrou em contato com a prática de arquitetura através do arquiteto Gio Ponti, trabalhando por um período como colaboradora em seu escritório. O arquiteto, atento aos saberes populares, não se filiava totalmente às correntes arquitetônicas fascistas nem racionalistas (4) do período. Trabalhava com uma visão ampla do campo de atuação da arquitetura, desde a concepção espacial à cidade, do mobiliário aos utensílios, e buscava incorporar valores culturais advindos da produção artesanal do país. Lina descreve:
“O trabalho: desde o design de xícaras e cadeiras, desde a moda, isto é, roupas até projetos urbanísticos, como o projeto de “Abano” (estação termal do Veneto). A atividade do escritório se estendia da construção da “Montecatini” à organização das Trienais de Artes Decorativas e à redação de revistas. Assim entrei em contato direto com os reais problemas da profissão” (5).
Havia, na Itália da época, uma procura pela simplicidade em estudos sobre a arquitetura “espontânea”, uma busca do abrigo universal, indicada muitas vezes na arquitetura feita pelo homem simples, do campo, como produto ‘natural’ ao longo dos tempos. O país manifestava com vigor essa característica modernista de construir um modelo que unisse tradição histórica e identidade nacional.
Deste período até 1943, em plena guerra, ela manteve um escritório com o arquiteto Carlo Pagani, com muita dificuldade, pois eram os tempos de privação de materiais e não se construía. Ilustrou jornais e a revista Stile (fundada por Gió Ponti). Colaborou nas revistas populares semanais Tempo, Grazia e Vetrina, publicando propostas de ambientações e soluções de mobiliário e arquitetura para o leitor comum. Dirigiu a revista Domus em plena ocupação nazista.
“Junho de 1943. O Fascismo desaba. No bombardeio de 13 de agosto, perdi meu escritório. Saí do grande ateliê-escritório de Ponti. Fui então chamada para dirigir a revista “Domus”. Assumi em plena Guerra Mundial e em plena ocupação alemã” (6).
Foram tempos difíceis, e a experiência da segunda Guerra Mundial marcou-a definitivamente (7). A supressão das certezas, a subtração de meios, reduzidos ao mínimo e a dura percepção de viver nos limites do necessário, sobrevivendo a cada dia, fixou sua mirada em busca de valores éticos essenciais nas ações humanas. Um olhar atento à história, ao que se deve preservar como documento e memória, aos avanços coletivos da humanidade.
“Em tempo de Guerra, um ano corresponde a cinquenta anos, e o julgamento dos homens é um julgamento de pósteros. Entre bombas e metralhadoras, fiz um ponto da situação: importante era sobreviver, de preferência incólume, mas como? Senti que o único caminho era o da objetividade e da racionalidade, um caminho terrivelmente difícil quando a maioria opta pelo 'desencanto' literário e nostálgico. Sentia que o mundo podia ser salvo, mudado para melhor, que esta era a única tarefa digna de ser vivida, o ponto de partida para poder sobreviver. Entrei na resistência, com o Partido Comunista clandestino. Só via o mundo em volta de mim como realidade imediata, e não como exercitação literária abstrata” (8).
Esta busca pelo essencial, experimentada através do olhar atento ao redor, encontra no racionalismo moderno sua possibilidade de concretização. É o período de necessária reconstrução de casas e cidades, Lina participa do Congresso Nacional pela Reconstrução e colabora para o jornal Milano Sera, como crítica de arquitetura.
Em 1946, junto ao conhecido crítico de arquitetura, Bruno Zevi, e também Carlo Pagani, participa da fundação da revista semanal “A” Cultura della Vita, editada em Milão pelo mesmo editor da Domus. As matérias tratavam de temas e problemas enfrentados por todos, com enquetes e levantamentos de campo sobre as condições de vida após o ‘rescaldo’, como as pessoas se adaptavam às precariedades resultantes da escassez e da destruição. A primeira edição marcava: A por (H)abitação, Ansiedade, Amor, (H)abilidade, Acordo, Audácia, Aviso, Aspereza, Absurdo, Associação.
“Devemos começar desde o início, da letra A, e planejar uma vida mais feliz para todos. Nós nos propomos criar em cada homem e em cada mulher a consciência daquilo que é a casa, a cidade. Fazer com que todos conheçam os problemas da reconstrução, para que todos, e não apenas os técnicos, nela colaborem” (9).
Com viés político e antropológico, a revista avalia questões do cotidiano ajustadas à nova realidade, trata de problemas comuns à época, como, por exemplo, a presença das minas pelo campo, a existência dos riscos da bomba atômica, a modernização das casas e o planejamento familiar. Segundo Bruno Zevi,
“em nenhuma parte do mundo, nem antes de 1946, nem depois, houve uma revista semanal como A, na qual a arquitetura fosse o escopo, mas o instrumento para compreender e mudar a vida; um seminário de arquitetos, mas não de arquitetura, não para arquitetos” (10).
Foi um trabalho de campo visando à popularização das questões fundamentais para a constituição do hábitat, um chamado de conscientização coletiva. Pode-se dizer que sua atitude futura está associada a este nascente e atento olhar antropológico. Lina aproximou a simplificação inteligente dos meios necessários à reconstrução, implícita ao movimento moderno, às essencialidades espontâneas encontradas na observação dos ‘saberes’ populares. E é no Brasil que ela encontra a possibilidade de fusão entre o conhecimento técnico moderno e aquele experimentado de maneira autóctone. Ela atuou de forma indissociável destas questões iniciais, tanto na arquitetura como em suas exposições, realizou verdadeiros manifestos, trabalhou a partir de um ponto de vista humanista e através de uma visão crítica sobre as possibilidades de renovação; manteve-se em uma busca contínua pela reconstrução de outro mundo civilizado, atento à pluralidade, às vozes ‘fortes’ da sociedade, nem sempre visíveis ao senso comum.
Chegada
Ainda em 1946, Lina se casa com Pietro Maria Bardi, importante jornalista e homem das artes e segue para o Rio de Janeiro, no país da esperança e renovação dos tempos de guerra. A missão junto com Bardi era organizar, no Ministério de Educação e Saúde (MEC), uma Exposição de pintura italiana antiga (séculos XIII-XVIII), além de outras duas, uma no salão de mostras do Hotel Copacabana Palace (Exposição de objetos de arte para decoração de interiores) e outra, Exposição de pintura moderna italiana, novamente no MEC, em maio de 1947 (11).
Assis Chateaubriand, jornalista proprietário dos Diários Associados, grande rede de comunicação à época e que já havia contatado Pietro Bardi na Europa (12), consolidou, por ocasião das mostras organizadas no Rio, o convite a este reconhecido crítico de artes e marchand, para a realização de um grandioso Museu de Arte. O Rio de Janeiro havia sido inicialmente cogitado como local a ser construído, mas o museu acabou sendo viabilizado em São Paulo, onde havia maior concentração de capital. Lina registra: “Disse a Pietro que queria ficar, que encontrava aqui as esperanças das noites de guerra. Assim ficamos no Brasil” (13).
O Museu fica, então, instalado na rua 7 de Abril, n° 230, no edifício Guilherme Guinle, projeto do arquiteto Jacques Pilon, construído para ser a Sede dos Diários Associados em São Paulo. A presença de Bardi e Lina à frente do novo museu possibilitou a inserção do meio cultural paulistano e brasileiro, ainda sob as rebarbas do impacto da Semana de 22, no circuito internacional das vanguardas. O país, que expandia sua indústria e já tinha sua arquitetura moderna bem divulgada no exterior, ganhou também com a primeira ação contundente nos campos museológico e museográfico modernos. O modelo de museu proposto pelos Bardi estava sintonizado com as recentes ações internacionais de reconstrução do pós-guerra, que consideravam a constituição de museus nos centros das cidades como polo de ‘renascimento’ urbano (14). Este debate, que Bardi acompanhou de perto, ocorreu fortemente no âmbito dos CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna).
Na Itália, a cultura museológica ganhara novo fôlego através das recuperações de ‘palazzos’ para a reinstalação das coleções após os bombardeios. Entretanto, ainda como as tradições históricas pesavam nas ações de reconstrução europeia, é no modelo dos novos museus americanos em crescimento que a implantação do primeiro Masp acaba por se espelhar. A ideia de ‘Museu escola’ ou ‘Museu vivo’ tinha, naquele país, as experimentações mais representativas até o momento. O caráter didático e formativo nas origens desse modelo irá permear toda a postura expositiva da arquiteta em suas apresentações futuras.
“Um recanto de memória? Um túmulo para múmias ilustres? Um depósito ou um arquivo de obras humanas que, feitas pelos homens para os homens, já são obsoletas e devem ser administradas com um sentido de piedade? Nada disso. Os museus novos devem abrir suas portas, deixar entrar o ar puro, a luz nova. Entre o passado e o presente não há solução de continuidade. É necessário entrosar a vida moderna, infelizmente melancólica e distraída por toda espécie de pesadelos, na grande e nobre corrente da arte. Estabelecer o contato entre vida passada e presente. Nesse sentido, os museus novos, tendo compreendido sua função no mundo contemporâneo, encontram a coragem de exercê-la e estão mais adiantados que os mais progressivos organismos educativos” (15).
Maneiras de expor
Em 1948, fora do ambiente museológico e à frente do Studio de Arte e Arquitetura Palma, em parceria com o arquiteto italiano Giancarlo Palanti, que teve larga experiência museográfica na Itália, Lina pôde experimentar outras ‘maneiras de expor’ em um contexto mais comercial. Foram realizados diversos projetos de interiores e lojas, elaborados sistemas expositores flexíveis e vitrines. Foi um período de rica experimentação, que incluiu a produção de mobiliário, em paralelo à implantação do primeiro Masp.
“No entanto, a cidade é uma sala pública, uma grande sala de exposições, um museu, um livro aberto a todos no qual podem-se ler as mais sutis nuances, e quem tiver uma loja, uma vitrina, um buraco qualquer fechado por um vidro e queira expor naquela vitrina, quem quiser ter um papel ‘público’ na cidade, toma a si uma responsabilidade moral, uma responsabilidade na qual não pensa por que o faz rir, a ele, homem de negócios, ‘prático’, a ideia de que a ‘sua’ vitrina possa contribuir para a formação do gosto dos moradores, possa contribuir para dar fisionomia à cidade, denunciar a essência” (16).
Em 1951, a realização da Exposição Agricultura Paulista feita nos moldes das feiras industriais, renova suas experimentações expositivas pela cidade. Era uma ideia que não teve continuidade, em que o Masp ‘exportava’ sua expertise na organização de mostras. Destacamos a participação de Flávio Motta e Alexandre Wollner que, juntos com Lina, também desenharam o cartaz da exposição. Ambos contribuíam intensamente nas atividades do museu.
“Trata-se de uma exposição organizada pela Secretaria de Agricultura, que se dirigiu ao Museu de Arte para a realização deste trabalho. A ideia era a difusão de conhecimento dos problemas da agricultura no meio do grande público. Foi uma boa ocasião para tentar uma nova experiência na organização de uma exposição de caráter agrícola, convidando a um grupo de artistas, a fim de formar uma equipe, que mais tarde teria podido dedicar-se a outras iniciativas semelhantes” (17).
Sistemas expositivos
Retomando sua contribuição museográfica intramuros, ou seja, desenvolvida no ambiente dos Museus e Centros de Cultura por ela projetados e construídos, é notável observar que o grande conhecimento das artes cênicas, aliado a um extremo rigor técnico, serviu de base para os arranjos poéticos de suas apresentações. Destacamos algumas tipologias reincidentes em sua própria trajetória, que foram de certa forma sendo aprimoradas nos detalhes ou adaptadas de acordo com as necessidades técnicas, de materiais e dos conteúdos que se apresentavam.
São sistemas expositivos sempre pensados como suporte para apresentação de ideias, ‘bases’ para construção de discurso, desde a fruição de acervos às mostras dedicadas ao reconhecimento e afirmação da cultura brasileira. Os ambientes compostos pelos conjuntos deles acabam por retomar questões de flexibilização espacial inicialmente propostas para a pinacoteca do Museu Escola, da rua 7 de Abril, promovendo a coexistência entre obras de distintas naturezas que, dispostas de forma a permitir maior liberdade na mediação, aproximam os objetos do observador através de isolamentos ou expressão de conjuntos.
Se, por um lado, observamos, ao longo dos anos, certa diluição dos expositores no espaço, cuja presença simbólica caminha para o desaparecimento em transparência e flutuação, por outro, revela-se paradoxalmente uma maior densidade material de bases, caixas e prateleiras, cuja simplificação os aproxima ainda mais dos próprios assuntos e objetos expostos. Observamos aqui certa mimetização entre objeto e suporte. Nota-se uma sábia postura da arquiteta em ocultar e jamais sobrepor o desenho elaborado para os suportes sobre o próprio conteúdo. Ela soube marcar a presença necessária, privilegiando o discurso, jamais o meio. São estes dispositivos ‘ocultos’, e não ‘omissos’, que apresentamos abaixo.
O cavalete
Lina Bo Bardi levou a fundo a questão do deslocamento do objeto pictórico no tempo/espaço. Propôs em larga escala uma nova experiência para a mediação de coleções em museus. Inicialmente, na instalação da pinacoteca do Masp 7 de Abril, de 1947, utilizou-se de estruturas tubulares metálicas de alumínio do piso ao teto para apresentar as obras fora das paredes. Na época, com o edifício ainda em obras, a arquiteta menciona o necessário afastamento contra a umidade das paredes para proteger as pinturas. Ajustada por compressão, por meio de roscas internas ao tubo para expansão, a estrutura permitia redimensionar o espaço existente através do alinhamento dos conjuntos e da utilização de cortinas. Aparafusadas como braçadeiras, ‘pinças’ reguláveis em altura serviam para fixar as molduras pela base e pelo topo. O sistema era duplicado, incorporando mais tubos para estabilizar pinturas de maiores dimensões.
Nas apresentações do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAMB), a partir de 1960, que fora instalado no foyer do Teatro Castro Alves, em Salvador, as montagens da ‘coleção’ apresentam as pinturas de forma mais solta, adequada ao caráter rotativo típico da programação do Museu. A obra se estabiliza em uma haste vertical metálica tipo ‘cruzeta’, concretada em bases com fôrma de balde, livre das fixações piso-teto. A legenda e os suportes de apoio dos quadros eram fixados de forma ajustável na haste. Este módulo móvel, apoiado no lastro de concreto, flexibilizava as montagens e adequava-se à predominante ausência de paredes no espaço, setorizado por cortinas divisórias. A situação da obra anuncia sua inserção no espaço museológico na condição original da pintura sobre o tradicional cavalete do pintor, retomada no projeto do Masp da avenida Paulista.
Ainda no Masp 7 de Abril, Lina começa a desenvolver a solução para apresentar o acervo do Museu em sua futura sede na avenida Paulista. Mantendo o princípio de estabilidade do sistema através da base-lastro de concreto, a fixação das obras é proposta em uma lâmina de vidro vertical, ajustada através de parafuso e cunha de madeira junto à base. Trata-se de um gesto conclusivo a toda a reflexão iniciada anteriormente sobre a inserção espacial do objeto pictórico, livre das paredes e de quaisquer estruturas verticais visíveis.
“Num certo sentido – sentido errado –, pinturas em paredes tendem a ser vistas como janelas para um outro mundo, mas isto nega a realidade tátil de sua superfície pintada, i.e., a existência física de algo realmente feito – com tinta e pincel, pincelada após pincelada, no espaço” (18).
Com este sistema, as pinturas flutuam no tempo presente, apresentadas como que em ‘lamelas’ científicas, isentas de toda carga cultural de origem. No Brasil, o observador ‘isento’ fica livre para apreciar as obras simultaneamente em uma nova leitura possível, viável a uma nova civilização. Lina completa: “as legendas descritivas colocadas na parte de trás não dizem: ‘deves admirar, é Rembrandt’, mas deixam ao espectador a observação livre e o prazer da descoberta”.
É a partir da unidade articulada em conjunto, diante da concepção de extrema liberdade espacial, que se estrutura a proposta de fruição deste novo museu. Um caminho legítimo à apreensão liberta do peso histórico e tradicional do modelo museográfico dos séculos XVIII e XIX. Foi uma das articulações mais contundentes sobre a maneira contemporânea de expor, retomando a função didática dos sistemas propostos inicialmente no Masp 7 de Abril.
Painéis didáticos
Sintonizado à proposta de museu-escola, ‘destruidor’ da atmosfera sagrada dos museus tradicionais, o Masp 7 de Abril inaugurou, junto à primeira apresentação de seu acervo, a exposição didática, mostra de longa duração que deveria ser renovada a cada seis meses: 84 painéis de conteúdo pedagógico destinados à apresentação inédita de uma ‘síntese do panorama histórico das artes’ através de documentos fotográficos comentados. Esses painéis foram inicialmente feitos na Itália, com o apoio do Studio d’arte Palma, de Roma. A estrutura foi elaborada com a tipologia tubular metálica de alumínio com fixação piso-teto, suportando barras horizontais através de um sistema de juntas que permitiam diversas composições e direcionamentos. Os painéis tipo ‘dupla-face’ eram ensanduichados por duas placas de vidro de 1,20 x 1,20 m, ajustadas por ferragens e enganchadas nas barras horizontais. Feitas com um detalhamento extremamente cuidadoso e execução artesanal, as juntas, com soldagem de roscas nas peças ‘abraçadeiras’ para fixação de parafusos, receberam, assim como os ganchos dos painéis, uma pintura clara que conferia melhor acabamento para compor com a tubulação de alumínio utilizada.
A mesma tipologia estrutural foi muito adotada para a apresentação de mostras didáticas e temporárias no MAMB, com tubos metálicos mais delgados e pés reguláveis. No Masp da avenida Paulista, sistemas similares foram diversas vezes retomados como opção para apresentação de mostras temporárias e painéis didáticos complementares ao acervo.
Uma nova versão, com colunas de madeira em substituição ao modelo tubular metálico piso-teto, é criada e largamente utilizada para mostras da programação. Sarrafos duplos verticais com distanciadores de madeira sustentam, por encaixe, as barras dos painéis horizontais de compensado de madeira com possibilidade de fixação de vidro nas duas faces. A fixação superior dessas barras verticais (no teto) é feita através de trechos de madeira pré-posicionados e aparafusados na malha das vigas estruturais do edifício, restando estabilizá-las com calços no piso. Essa flexibilidade permitiu montagens na sala de mostras temporárias do primeiro andar e nas áreas de mezanino e térreo, localizados abaixo do belvedere.
Algumas situações em que exigências de curadoria e montagem demandavam superfícies planas mais extensas e opacas que aquelas oferecidas pela opção do cavalete de vidro ou dos painéis suspensos levaram à adaptação para montagem de grandes planos de madeira, divisórias em compensado com 2,75 m de vão, que não tocavam o teto, encaixadas em perfis ‘calha’ também de madeira, fixos de piso a teto. Essa foi a opção de ‘parede’ mais flexível adotada pelo Museu, ainda sob cuidados do casal Bardi.
As necessidades de maior flexibilização de montagem, dada a intensa programação do Museu (conta-se que eram feitas até cinco mostras por mês), levaram à retomada do modelo de painel dupla-face de vidro, semelhante às primeiras mostras didáticas do Masp 7 de Abril, porém em composição adaptada (19) para módulos autoportantes, dois a dois, amplamente utilizados no Museu, tanto em mostras didáticas complementares ao acervo como nas temporárias do primeiro pavimento, mezaninos e térreo.
Certo desdobramento na elaboração de painéis soltos no espaço foi elaborado a partir da experiência da mostra História em quadrinhos, de 1974. De forma inédita, ela propõe ampliar os desenhos dos quadrinhos, compondo o espaço caleidoscópico da mostra, suspendendo-os por cabos. Essa tipologia é maximizada na exposição da obra do artista e designer Roberto Sambonet, no mesmo ano, em que painéis de vidro verticais para a colocação dos desenhos e pinturas são compostos espacialmente com painéis horizontais para colocação dos objetos. O resultado, uma atmosfera de leveza e flutuação, foi uma das composições mais belas e delicadas já apresentadas no Museu.
Lina Bo Bardi teve maior participação na elaboração de mostras temporárias e supervisão dos sistemas que criou para o Masp da Paulista, até pouco depois da montagem da exposição Repassos, em 1975. Desde então, esteve praticamente afastada, sem maiores participações diretas nas montagens, até a realização de sua última exposição no Museu, África Negra, de 1988, feita em parceria com os arquitetos Marcelo Ferraz e Marcelo Suzuki. Cabe observar que, além do famoso cavalete de vidro, os sistemas descritos foram pensados para solucionar questões de montagem nos espaços do Museu, sem a necessidade de criar bloqueios, paredes e limitações à essência livre da arquitetura. Um exemplo rico de inúmeras possibilidades de arranjos que poderiam ainda hoje ser utilizados ou desenvolvidos novos com este sentido. Atualmente, assim como os cavaletes extintos em 1996, nenhum dos sistemas projetados é usado pela instituição.
Painéis-muro
Essa tipologia expositiva, composta por painéis horizontais associados a elementos verticais mais baixos, foi muito utilizada e adaptada para apresentação desde pinturas, desenhos e gravuras até objetos do cotidiano.
A apresentação da segunda pinacoteca do Masp 7 de Abril, em 1950, foi organizada pela instalação de paredes móveis de grande leveza, com apoios metálicos delgados e estabilizadas por cabos atirantados. A coloração de cinza suave compunha com a proposta de ambientação clara e leve estabelecida como neutra para melhor apreciação das obras.
Em 1959, a exposição Bahia no Ibirapuera, construída embaixo da marquise do parque, junto ao edifício da Bienal e em paralelo à V Bienal de Arte, marcou um ponto de transição em toda sua trajetória expositiva. Feita após sua primeira incursão baiana e em colaboração com Martim Gonçalves, diretor da Escola de Teatro da Universidade da Bahia, a experimentação de novos recursos sensoriais entra em cena, e a simplificação estética mais limpa e idealizada abre espaço à maior teatralidade da montagem, com inserção de múltiplos recursos complementares à concepção do ambiente cultural pretendido. Era uma pioneira apresentação das artes do cotidiano coletadas na Bahia, uma provocação ao estado da arte que se apresentava na Bienal. Os painéis que observamos, mais sólidos, ganham interferências sensoriais incorporando texturas de fundo à apresentação das obras.
Varal
Sistema utilizado na composição do ambiente da exposição Bahia no Ibirapuera, disposto ao longo das cortinas que circundavam internamente a caixa de tapumes sob a marquise, essa estrutura apresentava uma extensa documentação antropológica com fotografias de Pierre Verger, Marcel Gautherot, Silvio Robatto e Enneas Mello, entremeadas com algumas inserções de objetos pendurados.
Trata-se de estrutura horizontal para fixação das imagens, composta por madeiras roliças, reguláveis a partir de furação nas hastes verticais laterais. Essas hastes de madeira com secção retangular são fixas por um perfil metálico chato às bases de concreto cônicas, poeticamente adornadas com conchas marinhas.
Retomado em algumas montagens temporárias do MAMB, essa tipologia, mais simplificada, ressurge em 1975 na mostra Repassos: exposição-documento, feita no Masp em parceria com Edmar de Almeida, que apresentava seu trabalho de tapeçaria desenvolvido junto às comunidades de artesãs do triângulo mineiro, e Flávio Império, que realizou um videodocumentário.
A exposição tinha um grande caráter político-provocativo, mostrava uma possibilidade criativa viabilizada através do uso de materiais naturais, remontando a tradições milenares presentes nas técnicas de tingimento, um recorte antropológico de resistência cultural. Ela descreve na apresentação: “As técnicas de fiação, tecelagem e tintura, os materiais ligados à natureza e não a sucedâneos, indicam apenas a possibilidade de uma civilização que procura saídas que não são aquelas do ‘consumo’” (20).
Também localizados ao longo das paredes laterais da mostra, estes varais apresentavam a documentação fotográfica de caráter antropológico e descritivo dos processos envolvidos na produção das tapeçarias.
Bases e estantes de pinho
A partir da exposição Civilização Nordeste, de 1963, que inaugurou o Museu de Arte Popular no então recuperado Solar do Unhão, a tábua de pinho é proposta como ‘fundo geral’ para apresentação da cultura material brasileira. Ainda que pareça uma matéria pouco neutra para apreensão dos objetos em sua diversidade, foi justamente a crueza material que facilitou a leitura do conjunto proposto. Quando retomado esse sistema de bases, prateleiras e painéis de tábua de pinho na exposição A mão do povo brasileiro, foi publicado, à época (21): “A montagem de Lina Bo Bardi é despojada e, portanto, humanizada; dispostos sobre o lenho nu do pinho os objetos se mantêm livres de qualquer interferência formal”.
Esta solução reaparece também nas mostras do Sesc Pompeia Design no Brasil: história e realidade, de 1982, e Mil brinquedos para a criança brasileira, de 1983, já em versão colorida, com pintura sobre a madeira. São ambientações que remontam às feiras nordestinas e aos armazéns de secos e molhados Brasil afora, mantendo uma separação tipológica dos objetos, cuja repetição em quantidade acaba por reforçar sua presença enquanto realidade seriada, inserida no cotidiano observado.
Arestas de madeira
A construção de um ‘corpo independente’, composto espacialmente por arestas de madeira, foi diversas vezes proposta ao longo de sua carreira. Trata-se de uma estrutura simples, construída com sobreposições de pontaletes, caibros e ripas aparelhados e fixos sem encaixes. Pilares e vigas criam uma espécie de ‘gaiola’ dentro da sala, para fixação de obras e painéis, compondo uma escala mais próxima para apreensão do material exposto.
Vitrines
As soluções técnicas adotadas nas vitrines que projetou sempre foram primorosas. No primeiro momento do Masp 7 de Abril, em 1947, uma série de vitrines foi instalada entre as colunas do edifício, desenhadas para abrigar, junto à exposição didática, um conjunto de objetos arqueológicos egípcios.
No segundo momento do Museu, em 1950, quando as instalações passam a ocupar mais um andar do edifício, uma nova vitrine, didática, foi desenhada entre a exposição do acervo e a área de mostras temporárias. Além de objetos arqueológicos, foram expostas outras naturezas de objetos e distintos materiais, como produtos industrializados, formas orgânicas naturais, esculturas, arte popular e utilitários de todos os tempos. Tratava-se de um forte conteúdo didático e de formação, confrontando percepções e valores atribuídos às formas criadas pelo homem ao longo dos tempos ou não. A exposição visava “despertar a atenção sobre: proporção, racionalidade, inteligência, gosto, arte, historicidade, de toda e qualquer forma com a qual se entre em contato” (22).
A Vitrine das Formas, longa, era estruturada por colunas centrais metálicas do tipo ‘cruzeta’ e estabilizada através de cabos atirantados no forro da sala. A iluminação difusa do teto da vitrine destacava os objetos no salão em uma espécie de ‘aquário’ de formas, uma caixa de estrutura leve e com forte presença no espaço.
Em 1959, na ‘estrondosa’ exposição Bahia no Ibirapuera, outra vitrine, feita em escala reduzida, estruturalmente mais simples, apoiada em cubos de madeira, apresentava objetos relativos às origens africanas da cultura baiana.
No Masp da avenida Paulista, na sala de exposições do nível térreo, entre o restaurante, de um lado, e a biblioteca, do outro, foram propostas vitrines como divisórias expositivas de caráter didático-histórico. Montadas como caixas de vidro sobre bases sólidas de concreto, tiveram os cantos fixos por parafusos, unindo as faces perfuradas dos vidros através de ferragens especialmente desenhadas com pequenos tubos de aço inoxidável, que acabaram sendo adotados comumente pela indústria de vidros temperados.
Outras vitrines foram desenhadas com essa mesma tipologia de caixas de vidro, porém apoiadas em bases planas sobre o piso, para expor esculturas do acervo e diversos objetos nas mostras temporárias. Dentro delas, bases cúbicas para apoio das peças eram algumas vezes dispostas em alturas variadas. Uma solução adotada para apresentar objetos de menor escala foi apoiar a caixa de vidro, com altura reduzida, sobre mesas ou cubos de madeira; opção similar foi utilizada na mostra inaugural da Casa do Benim na Bahia, em Salvador, 1987.
Ao fundo, observa-se a opção de apoio do vidro sobre mesa de madeira Este modelo de caixas-vitrine foi também proposto para apresentar exposições didáticas sob o vão livre no Masp da Av. Paulista, na praça coberta do belvedere; um gesto, não realizado, que expressa a força arquitetônica e de comunicação do Museu com a cidade através da apropriação museológica da ‘praça pública’. Representa um ato de coragem no enfrentamento do espaço aberto do Museu, incluindo-o no contexto expositivo com extrema delicadeza, expressa pela transparência e aparente fragilidade do material, estabelecendo um diálogo aberto com o cidadão.
As montagens elaboradas para suas apresentações, além do aspecto técnico de sistemas descritos anteriormente, operavam recursos sensoriais vários que complementavam as ‘imersões’ propostas. Foi frequente a inclusão de trilhas sonoras e cheiros, como, por exemplo, na mostra Bahia no Ibirapuera, forrando o piso com folhas como nos terreiros de candomblé; na Civilização Nordeste, queimando incenso como nas igrejas coloniais; e, naturalmente, em Caipiras, capiaus: pau a pique, recendendo o campo pela fumaça do forno e o cheiro do alambique, apresentados ao público em pleno funcionamento. Ali fez coisas incríveis, como trazer animais para o dia da inauguração, fato impensável nos dias de hoje.
Pioneira na introdução da realidade cultural do país junto aos museus, promovia uma abordagem ampla dos fenômenos culturais, envolvendo apresentações de dança (exposições Bahia no Ibirapuera e África Negra, por exemplo) e comidas a servir (na abertura, no Ibirapuera, serviu acarajé).
A abertura do espaço museológico para a discussão de temas amplos acerca do presente, envolvendo a sociedade como um todo, também foi, além do rompimento das fronteiras estabelecidas no campo das artes, um gesto pioneiro, uma atitude consequente em antecipar os museus como espaço democrático e de apropriação pública diversa, fato tão exaltado nos dias de hoje.
Arquitetura expositiva
A observação de sua obra expositiva pode ser compreendida como um desdobramento da própria prática arquitetônica, mais uma das diversas frentes em que atuou no amplo campo da arquitetura. Tanto pela decorrência ‘natural’ da elaboração dos sistemas expositivos internos aos próprios edifícios que construiu, como pela adoção de posturas claras na concepção das exposições que desenhou, no mesmo padrão considerado para conceber e construir edifícios (23).
O assunto tratado por ela, assim como sua arquitetura, não estabeleceu fronteiras entre espaço e conteúdo, teatro e arquitetura.
“Lina fez teatro durante toda a sua vida. Projetou vários deles, bem como cenografias, e participou da concepção e direção de várias peças. Citava Walter Gropius ao dizer que, para um arquiteto, a observação do teatro é fundamental. Se a arquitetura é a concretização do espaço onde se desenvolve o comportamento humano, este espaço é também definidor deste ou daquele comportamento, tal como podemos ver de forma clara no teatro. Situações-limite levadas às últimas consequências pelo teatro ajudam o bom observador-arquiteto a projetar os espaços onde a vida se dará” (24).
Portanto, a concepção desses espaços interiores de comunicação, suas mostras, é indissociável do conjunto em que estão inseridos teatralmente. As apresentações são experiências dedicadas a informar e surpreender, promover vivências, sempre permitindo ao visitante uma visão total e abrangente da ‘cena’, antes da aproximação livre nos detalhes. O estudo sobre destacar obras, redimensionando seus contextos, elaborado desde a experimentação museográfica do Masp 7 de Abril, irá permear toda sua atividade no campo expositivo. Lina teve muito claro o porquê de suas apresentações, com um posicionamento politizado e mirando em profundidade o grande potencial da cultura brasileira, buscando sua expressão máxima e inserção nos meios ‘oficiais’, suscitando continuamente o enfraquecimento do ‘falso’ embate entre popular e erudito, rompendo fronteiras.
A construção de suas exposições e dos ‘ambientes para fruição e vivência de conteúdos’, considerados aqui como as áreas públicas dos museus, ocorreu inicialmente em projetos de caráter mais temporário, contidos no âmbito interno da arquitetura. Foi o caso do primeiro Masp da 7 de Abril, instalado em andares de um edifício existente, e do Museu de Arte Moderna da Bahia (MAMB), instalado no foyer do Teatro Castro Alves, quase de improviso, sintetizando as necessidades imediatas e mínimas para a operação de um modelo de museu vivo. Também a apresentação temporária da exposição Bahia no Ibirapuera, embora desvinculada da constituição de museu, representa um importante divisor de águas na concepção dos espaços expositivos da arquiteta, construído sob a marquise do Ibirapuera em área delimitada por tapumes. As demais elaborações foram feitas em projetos próprios, concebidos com extrema articulação entre a arquitetura projetada e os espaços destinados a receber mostras, como no Masp da avenida Paulista, ou nos edifícios ressignificados pelo novo uso proposto em projetos de recuperação e restauro, como ocorrido no Solar do Unhão e no Sesc Fábrica da Pompeia. Observando sua concepção de museus e centros de cultura destinados a expor, incluindo aqueles não realizados, vemos que a solução de transparência dos espaços abertos, integrados à paisagem em franco diálogo com a cidade, como é o caso do Masp, ressurge em tipologias mais fechadas e opacas, caixas ou contêineres.
O exemplo maior da interação entre o espaço concebido e a comunicação de conteúdo expositivo, pensando arquitetura e museografia juntos, talvez tenha sido seu projeto para o Pavilhão do Brasil na Feira Universal de Sevilha (25). Trata-se claramente da expressão completa 26, que antecede à elaboração formal da própria arquitetura, viabilizando, através dela, a comunicação dos conteúdos que se pretende. Considerando que as Exposições Universais são uma oportunidade dos países para exibir seus avanços tecnológicos e produtos industrializados, muitas vezes associados a aspectos culturais apresentados de forma simplista e folclorizada, tratamos aqui de um projeto-manifesto.
Um fato curioso. Durante a elaboração do projeto, a equipe aguardava as definições para o início dos desenhos, planejamento e montagem das pranchas de apresentação, o que, por se tratar de concurso, é sempre um assunto urgente. Os dias se passavam, e Lina não ‘riscava’ nada no papel. Elaborava questões sobre as novas descobertas arqueológicas resultantes das escavações promovidas pela arqueóloga Niéde Guidon no Piauí, queria entrar em contato com ela e antecipava razões fundamentais para expor all’esterno aquilo que seria a memória mais antiga de nossa civilização nas Américas, propondo uma revisão das datas originalmente consideradas para a chegada do homem no continente. As ideias foram se construindo em longas conversas com seus colaboradores até o momento em que, esclarecido o elenco de ações culturais a serem apresentadas, eleito o objeto de destaque a ser exposto, estavam concebidos, com muita simplicidade, os espaços predestinados à fruição do conteúdo pretendido.
Por fora, uma grande caixa branca, de mármore branco ‘Neve Brasil’, destacando externamente os sistemas técnicos necessários para a adequação museológica. No térreo, um restaurante com mesas coletivas para servir as “comidas daquele Brasil pré-Descobertas, trazidas para os nossos dias: a mandioca e o milho, as frutas (sucos e sorvetes), as verduras etc. Salada de palmito, manga e abacate, mamões, abacaxis, cajus, cupuaçus, pinhas jabuticabas, umbus, carambolas, seriguelas, melancias, bananas, e … laranjas…” (27). Uma escada ‘monumental’, circundando o elevador hidráulico com caixa de cristal, dava acesso ao grande salão (56 m de comprimento x 17 m de largura x 12 m de altura), um pouco nos moldes criados anteriormente para o Masp, saindo diretamente na sala expositiva. No centro desta, encontravam-se expressivamente destacados por uma iluminação dramática, ante a baixa intensidade de luz em todo o salão, os restos humanos mais antigos encontrados em São Raimundo Nonato, no Piauí. Toda a ideia de apresentação incluía uma “exposição rigorosamente científica” daquilo que eram o Brasil e a América antes dos descobrimentos, complementada com a apresentação de danças típicas (havia um teatro com galerias laterais), como a dos índios Pankararu, de Pernambuco, reproduzindo “a mesma gestualidade encontrada nas pinturas rupestres de 12 mil anos atrás”.
Trata-se de uma experiência proposta, que transcende o ideário formalista praticado comumente pelos arquitetos. Assim, a arquitetura do pavilhão nasce do conceito da exposição a serviço de uma comunicação preestabelecida. A ideia, quase uma afronta, era levar como imagem do país a representação de suas raízes mais profundas, anteriores à chegada dos descobrimentos. Mais que construir o espaço, trata-se aqui de apresentar um fenômeno cultural, uma provocação pelo ‘redescobrimento’ de nossa própria condição de origem. O nascimento mais longínquo daquilo que representa a possibilidade de construção de uma nova civilização, livre e apta a libertar-se das ‘amarras do passado’, ainda tão atreladas à história ocidental de civilização europeia. “Um Memorial para o Homem do Sempre Novo Mundo”. Arquitetura como gesto consequente daquilo que se pretende mostrar. A arquitetura-exposição, exposição-arquitetura.
notas
NE – Texto curatorial da exposição Maneiras de expor: arquitetura expositiva de Lina Bo Bardi, curadoria de Giancarlo Latorraca. Museu da Casa Brasileira, São Paulo, de 19 de agosto a 09 de novembro de 2014.
1
Lina Bo Bardi (Roma, 1914 – São Paulo 1992), ao longo de sua carreira, atuou em um amplo e abrangente espectro da arquitetura. Possui uma expressiva atividade editorial, fez cenografia de teatro e cinema, desenhou joias, mobiliário, interiores, cidades, casas, museus e foi pioneira na recuperação e restauro de edifícios históricos, redimensionando seus usos para o tempo presente.
2
No período avaliado em que a arquiteta atuou projetando, coordenando montagens e selecionando conteúdos para exposições, constatamos que os créditos publicados em jornais, revistas, catálogos e fôlderes não indicam o uso corrente do termo curador.
3
Esse tema está devidamente abordado em: ANELLI, Renato. O gosto moderno: o design da exposição e a exposição do design. Arqtexto, Porto Alegre, v.14, UFRGS, 2009, p. 92-109.
4
Nos anos 1930, o movimento racionalista italiano despontou com grande força em busca da modernização do país, impulsionado pela ampla atuação do jornalista e crítico de arte Pietro Maria Bardi, em Roma, à frente da Galleria d’Arte di Roma, uma galeria pública, importante centro de difusão de arte moderna. Em 1931, a galeria apresentou grande mostra organizada pelo Movimento Italiano para a Arquitetura Racional (MIAR), um ‘gesto’ que representou clara intensão pela renovação das artes e arquitetura do regime fascista, o que acabou por não suceder. Também à frente da revista Quadrante, Bardi difundia a ideia de modernização no amplo campo das artes que incluía arquitetura, obras de engenharia e a apresentação dos avanços da indústria. Ver “A Galleria d’Arte di Roma e L’Ambrosiano”. In TENTORI, Francesco. P.M. Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1990.
5
BARDI, Lina Bo. Curriculum literário. In: FERRAZ, Marcelo (org.). Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1993.
6
Ibid.
7
Como observa Marcelo Ferraz, arquiteto que trabalhou por quinze anos com Lina Bo Bardi, junto com os arquitetos André Vainer e Marcelo Suzuki: “a guerra foi a marca que carregou durante toda a sua vida e de onde tirou, continuamente, forças para derrubar barreiras e reconhecer que a vida está sempre por um fio – portanto, só se deve pensar e fazer aquilo que é imprescindível e vital. Daí, Lina extraiu ao mesmo tempo seu profundo senso objetivo e poético”. A poesia vital de Lina Bo Bardi – arquitetura conversável. Rio de Janeiro: Azougue, 2011.
8
BARDI, Lina Bo. Curriculum literário (op. cit).
9
Ver RUBINO, Silvana (org.). Lina por escrito – textos escolhidos de Lina Bo Bardi. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 29.
10
ZEVI, Bruno. Lina Bo Bardi: Un architetto in tragitto ansioso. In: Caramelo, n. 4. São Paulo, FAU USP, 1992.
11
Ver: O primeiro MASP, com Assis Chateaubriand (1947-1968). O lançamento europeu e mundial do museu de São Paulo. In TENTORI, Francesco. P.M. Bardi, op. cit.
12
Idem, ibidem.
13
BARDI, Lina Bo. Curriculum literário (op. cit).
14
Ver CANAS, Adriano Tomitão. O debate internacional: os museus e a cidade (capítulo 1.3). In: Masp: Museu laboratório, projeto de museu para a cidade: 1947-1957. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2010.
15 BARDI, Lina Bo. Lina Bo Bardi (op. cit.), p. 43.
16
Habitat, São Paulo, n. 5, out./dez. 1951, p. 60-61.
17
BARDI, Lina Bo. Lina Bo Bardi (op. cit.), p. 68.
18
Arquiteto Aldo Van Eyck, “Um dom superlativo”. In: Museu de Arte de São Paulo. Portugal: Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, Blau, 1997.
19
Nota-se, nos depoimentos da pesquisa, que foram importantes colaboradores para o desenvolvimento e adaptação dos sistemas: o marceneiro Bom Juan (foram encontradas, no acervo do ILBPMB, algumas anotações de serviço da arquiteta endereçadas a ele) e o serralheiro Carlos Blank. Da equipe fixa de montagem no Museu, entre muitos colaboradores, destacamos o senhor Marcondes Chaves, o senhor Agostinho e o iluminador, com experiência cênica, Luizão.
20
BARDI, Lina Bo. Lina Bo Bardi (op. cit.), p. 200.
21
Diário de São Paulo, 19/06/69.
22
Habitat, out./dez. 1950.
23
Consideram-se aqui alguns pontos fundamentais para a compreensão da obra de Lina, descritos por Marcelo Ferraz: “ideia forte, superação do formalismo/dissonância na arquitetura, rigor com liberdade, arquitetura e teatro, olhar antropológico”. A poesia vital de Lina Bo Bardi – arquitetura conversável (op. cit).
24
Idem ibidem.
25
Projeto elaborado em 1991, para o concurso nacional de arquitetura do Pavilhão do Brasil na Feira Universal de Sevilha de 1992, um dos últimos concebidos pela arquiteta, que, à época, já havia iniciado seu trabalho para a instalação da nova prefeitura de São Paulo, no Palácio das Indústrias, prevendo a construção de um novo bloco administrativo que acabou por não ser construído. O júri desconsiderou a proposta, classificando como vencedor o projeto elaborado pelo grupo de arquitetos Angelo Bucci, Álvaro Puntoni e José Oswaldo Vilela, que acabou não sendo executado. Lina faleceu em 1992.
26
Segundo Marcelo Ferraz, sobre pontos fundamentais para a compreensão da obra de Lina: “Um projeto deve nascer de um conceito central forte e consistente, capaz de alimentar todo o seu desenvolvimento. Esta ‘ideia forte’ não é necessariamente técnica nem formal. Sendo os dois ao mesmo tempo, ela é, antes de tudo, ‘poética’”. A poesia vital de Lina Bo Bardi – arquitetura conversável (op. cit).
27
As citações que aparecem deste ponto até o final do texto correspondem a trechos extraídos do memorial de apresentação do projeto. É interessante notar a inclusão da laranja no cardápio pré-descobrimento, fruta trazida do Oriente para a Europa pelos portugueses. BARDI, Lina Bo. Lina Bo Bardi (op. cit.), p. 314.
sobre o autor
Giancarlo Latorraca, arquiteto, é diretor técnico do Museu da Casa Brasileira – MCB e curador da mostra Maneiras de expor: arquitetura expositiva de Lina Bo Bardi.