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architexts ISSN 1809-6298

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O que difere os mapas produzidos por Smithson de um mapa como The Naked City de Guy Debord não é apenas sua espacialidade abstrata, mas acima de tudo sua temporalidade nitidamente absurda, desavergonhadamente ficcional e essencialmente anti-historicista.

english
O ensaio opõe duas concepções não realistas de apropriação espacial: a situacionista e a minimalista. Para tanto, aborda-se mapas de Guy Debord e Robert Smithson. Busca-se demonstrar que a distinção se baseia em regimes conflitantes de historicidade.


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LEONIDIO, Otavio. Guy Debord e Robert Smithson. Espaço, tempo e história. Arquitextos, São Paulo, ano 15, n. 176.00, Vitruvius, jan. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.176/5458>.

Mas quem virá, e por onde?
Federico Garcia Lorca, Romance Sonâmbulo

I

The Naked City é possivelmente o mais expressivo e famoso exemplo de mapa psicogeográfico situacionista (1). O mapa é uma colagem de 18 recortes do tecido urbano, extraídos de um mapa convencional da cidade de Paris e recolocados, separada e desordenadamente, no espaço do novo mapa; conta ainda com 46 setas de tamanhos e formatos diversos. De acordo com a terminologia estabelecida por seu autor, o pensador e ativista francês Guy Debord (Paris, 1931 — Bellevue-la-Montagne, 1994), os recortes representam “unidades ambientais” ou de “atmosfera”, definidas não por fronteiras administrativas, mas pela afetividade, paixões e intuição dos moradores de Paris. As setas, por seu turno, representam “eixos principais de passagem” e/ou “direções de penetração”, os quais, num plano psicogeográfico (quer dizer, não adstritos à sua localização geográfica “real”), supostamente conectam as diversas unidades de ambiência (2).

Guy Debord, The Naked City, 1957
Imagem divulgação

Claramente, o propósito do mapa é ilustrar dois fenômenos distintos e interrelacionados: a) a existência de extratos urbanos de caráter mais ou menos homogêneo no amplo contexto do espaço urbano parisiense; b) as interconexões inusitadas ensejadas por uma vivência não-convencional do espaço público urbano – mais precisamente, a experiência facultada a todas as pessoas que “renunciam, por um tempo mais ou menos longo, às razões de se deslocar e agir que conhecem nas suas relações, nos seus trabalhos e diversões, para se deixar levar pelas solicitações do terreno e encontros correspondentes” (3). Numa palavra, o mapa é a expressão gráfica da Paris construída mentalmente por uma ou múltiplas “derivas” – de acordo com a definição situacionista, “a prática de uma viagem passional extraordinária por meio de uma mudança rápida de ambiências” (4).

Não obstante seu aspecto inusitado, The Naked City não afronta os princípios básicos da cartografia convencional. Como no caso dos mapas tradicionais, ele pretende ser uma tradução gráfica mais ou menos fiel de uma determinada topografia. Em vez da morfologia urbana “real”, contudo, o que ele se propõe a registrar graficamente é a topografia que se constitui no espaço metal dos usuários da cidade – uma topografia por certo alternativa, mas nem por isso menos objetiva (no sentido de afeita ao pensamento objetivo) que a topografia da cidade “real”. Em larga medida, portanto, The Naked City é fruto do mesmo ímpeto cientificista que norteia a produção dos mapas tradicionais. E o primeiro a admitir isso é o próprio Debord. Em suas palavras, derivas e suas representações cartográficas integram “o estudo das leis exatas e dos efeitos específicos dos ambientes geográficos, conscientemente organizados ou não, sobre as emoções e comportamentos dos indivíduos” (5).

A aparente desordem de The Naked City é igualmente enganosa. O mapa é a ilustração inequívoca de uma tese, tese essa baseada num par dicotômico, ele também, bastante rígido e convencional – a saber, o que vincula, de um lado, noções como identidade e autonomia e, de outro, as de integração e conectividade. The Naked City não é apenas uma ilustração convencional; é a ilustração convencional de uma ideia convencional.

Algo semelhante pode ser dito a respeito do aspecto propriamente compositivo do mapa: ele segue uma ordem tanto rigorosa quanto consagrada. Notadamente, é patente o modo convencional como os dois tipos de elementos gráficos ali presentes (recortes e setas) foram dispostos no espaço gráfico – a saber, segundo preceitos compositivos eminentemente clássicos como distribuição equilibrada e hierarquizada das partes. Pictoricamente falando, The Naked City é um dispositivo protocolar, de linhagem clássica.

Mas, acima de tudo, o aspecto convencional de The Naked City se revela naquilo que constitui sua mais flagrante contradição: o fato de o princípio que, em tese, rege a ocupação não-convencional do espaço da cidade não se refletir, ou desdobrar, no próprio procedimento de elaboração do mapa, quer dizer no modo como se dá a ocupação do espaço gráfico. Com efeito, se há algo que Debord não fez ao elaborar seu mapa foi seguir o modelo da deriva, vale dizer, colocar em questão – para lançar mão de sua própria terminologia – suas “razões de se deslocar e agir”. Muito ao contrário, seus movimentos e ações foram guiados por um modelo preestabelecido, e em tudo convencional, de organização espacial – como destaquei acima, herdado da morfologia clássica.

II

Para um grupo de artistas contemporâneos de Debord, no entanto, a necessidade de confrontar suas “razões de se deslocar e agir” se constituiu na condição de possibilidade para tudo que faziam nos campos pictóricos e plásticos. De fato, para artistas como Frank Stella e Donald Judd, entre outros e outras, a definição de justificativas não-consagradas antecede o desempenho de qualquer uma de suas ações estéticas. Eloquentemente, o que está em jogo para esses artistas é a definição de procedimentos estéticos não-compositivos, quer dizer livres dos princípios da morfologia clássica (segundo a famosa boutade de Stella, caracterizados pelo atávico “você faz algo num canto [da tela] e contrabalança isso com algo no outro canto”) (6).

No caso específico de Stella, a solução encontrada para o problema de como proceder na hora de pintar um quadro foi deixar-se conduzir pelos movimentos sugeridos, digamos, pela geometria das próprias telas a serem pintadas. Suas famosas pinturas pretas listradas de fins dos anos 1950 são a expressão máxima dessa estratégia anti-compositiva. Um exemplo paradigmático é “Die Fahne Hoch!”, de 1959. Como destacou a crítica Rosalind Krauss, a construção dessa pintura (e de muitas outras produzidas por Stella nos anos 1960) não obedece ao modelo tradicional da intenção compositiva, senão a uma lógica estritamente “dedutiva” (no sentido de que “todas as diferenciações internas de sua superfície derivam dos aspectos literais dos limites da tela”) (7) No caso específico de “Die Fahne Hoch!”, uma vez estabelecidos os pontos médios dos quatro lados do retângulo, tudo o que Stella fez foi, nas palavras de Krauss, se limitar a “forçar” as listras “numa declaração repetitiva e contínua da expansão dos quatro quadrantes da pintura num par de reversões espelhadas” (8).

Frank Stella, Die Fahne Hoch!, 1959
Imagem divulgação [Whitney Museum of American Art, Nova York]

O mesmo tipo de auto-contenção caracteriza as ações estéticas de Judd, ainda que sua estratégia anti-compositiva não coincida com a de Stella. Em seu caso, o caminho adotado foi o da repetição sistemática de um determinado elemento plástico – um procedimento que Judd voluntariamente associou à ação (em termos da estética clássica, bem pouco “estética”) de colocar “uma coisa depois da outra” (9). Eloquentemente, quando publicou seu mais conhecido e influente ensaio (“Objetos Específicos”, de 1965), Judd fez questão de transcrever uma das mais conhecidas máximas Lockeanas referentes à motivações da ação humana, segundo o qual “O motivo para mudar é sempre alguma inquietação: nada nos instigando a uma mudança de estado, ou a uma nova ação, senão uma inquietação" (10).

Pessoalmente, julgo que a parte mais instigante da arte norte-americana (e mesmo da não-americana) produzida desde meados do anos 1960 responde de um modo ou de outro a este problema minimalista essencial: como agir? Significativamente, tal produção jamais se restringiu a trabalhos de pintura ou escultura (ou, para falar com Judd, à produção de “objetos específicos”), muito pelo contrário. Notadamente, a questão está na origem de uma das mais instigantes manifestações artísticas contemporâneas: a Performance. Cabe ressaltar, a propósito – e isto é especialmente interessante para nós aqui –, que algumas das mais significativas performances dos anos 1960 e 70 não ocorreram no interior de ateliês, galerias e museus, mas no espaço público urbano. Como tanto, constituem exercícios excepcionais de imaginação espacial e urbana.

Um exemplo ilustre desse tipo de ação é “Following Piece”, desempenhada nas ruas de Nova York por Vito Acconci (Nova York, 1940), ao longo de todo o mês de outubro de 1969. À primeira vista, “Walking piece” se assemelha muito a uma deriva situacionista. Acconci descreveu assim sua performance:

“A cada dia eu escolho aleatoriamente uma pessoa andando na rua. Eu sigo uma pessoa diferente todos os dias; Eu me mantenho seguindo-a até que aquela pessoa entre em um espaço privado (casa, escritório, etc) onde eu não posso entrar” (11).

Que “Walking Piece” não se desdobre na produção de um mapa não chega a surpreender. Pois essa performance não acrescenta qualquer forma de conhecimento científico adicional acerca dos modos objetivos (aí incluídos, como vimos, os modos afetivos e intuitivos) de ocupação do espaço público urbano. Em vez disso, Acconci optou pela organização do que chamou de “diário de um corpo”, no qual se limitou a descrever da maneira mais direta possível os episódios ocorridos em cada um dos dias de sua performance. Em 3 de outubro, primeiro dia da performance, o diário registra:

“9:12 AM; Em frente à porta, 112 Christopher St./ Homem vestindo terno preto; ele caminha para oeste na rua Christopher, do lado sul da rua./ Às 9:17 AM ele entra em carro estacionado em frente à agência do correio, Christopher esquina com Greenwich, e vai embora dirigindo” (12).

Já no dia 12 de outubro, Acconci anota apenas: “Eu não segui ninguém” (13).

III

Para um artista formado no ambiente minimalista, em particular, a elaboração de mapas se constitui, no entanto, num dos eixos centrais de sua produção estética. Refiro-me a Robert Smithson (Passaic, 1938 – Amarillo, 1973).

Assim como ocorre com os mapas psicogeográficos situacionistas, os mapas elaborados por Smithson têm vínculo direto com experiências mentais do espaço físico. As semelhanças entre ambos param por aí. Pois, em contraste com um mapa como The Naked City, os mapas de Smithson não pretendem ser uma representação alternativa do espaço físico “real”. Muito ao contrário, seus mapas são declaradamente ficcionais, estando vinculados ao dispositivo básico da estética smithsoniana – o par-dialético “site/nonsite” (literalmente, “sítio/não-sítio”).

Sobre esse dispositivo estético, é preciso dizer apenas que jamais foi concebido de modo a representar, de modo mais ou menos fiel, os sítios aos quais, de algum modo, se refere. Com efeito, em vez de buscar representar um sítio ou lugar, os sites/non-sites de Smithson pretendem desconstruir as próprias noções de sítio e de lugar. Numa entrevista dos anos 1970, Smithson deixou claro o propósito corrosivo de suas intervenções: “Embora o non-site designe o site”, ele declarou, “o site ele mesmo é aberto, incontido e em constante mudança” (14).

Em “Uma Teoria Provisória de Non-Sites”, Smithson discorreu sobre as diferenças essenciais entre seus mapas abstratos (15) e os mapas convencionais (aí incluídas outras representações planimétricas):

“Ao desenhar um diagrama, a planta baixa de uma casa, o mapa indicando a rua que leva até um sítio ou um mapa topográfico, desenha-se uma ‘imagem bidimensional lógica’. Uma imagem lógica difere de uma imagem natural ou realista no sentido de que ela raramente se parece com a coisa que ela representa. Trata-se de uma analogia ou metáfora bidimensional – A é Z. [...] Uma intuição lógica pode se desenvolver em um ‘sentido inteiramente novo de metáfora’, livre de qualquer conteúdo expressivo natural ou realista. Entre o sitio real [actual site] no Pine Barrens e O Não-Sítio ele mesmo existe um espaço de significado metafórico. Pode ser que ‘viajar’ nesse espaço seja uma grande metáfora. Tudo que existe entre os dois sítios pode se tornar um material físico metafórico desprovido de significados naturais e conotações realistas. Digamos que se essa pessoa decide ir ao sítio do Não-Sítio, ela empreende uma viagem fictícia. A ‘viagem’ torna-se inventada, criada, artificial; nesse sentido, pode-se chamá-la de não-viagem do Não-Sítio até o sítio”. (16).

O que cabe enfatizar aqui, fica claro, não é simplesmente o caráter abstrato dos mapas de Smithson, mas antes a evidência de que em sua origem está uma objeção essencial à noção de espaço “real”. Para Smithson, de fato, mapas e demais representações do espaço físico, não importa se realistas ou absurdas, não eram mais “ficcionais” do que o espaço físico ele mesmo. Nesse sentido, mais do que contrapor-se ao princípio de homologia formal que rege a elaboração dos mapas convencionais, os mapas de Smithson se caracterizam pela intenção de dessituar seus usuários, quer dizer fazer com que literalmente se percam no improvável desvão que se abre entre sites e non-sites.

Que Smithson era capaz de vivenciar o mundo como se este fosse um gigantesco mapa (um mapa em escala 1:1) é atestado pelo relato de seu famoso tour pelos “Monumentos de Passaic”. Em suas palavras, essa “viagem fictícia” o havia lançado numa espacialidade em tudo absurda – uma “mise-en-scène anti-romântica” feita de “direções deslocadas”, “ruínas ao reverso” e “um monumental estacionamento que dividia a cidade ao meio, transformando-a em um espelho e um reflexo”. Mais do que isso, Smithson percebeu que a cidade, ela mesma, era uma estrutura espelhada que “constantemente trocava de lugar com seu reflexo”, de modo que era impossível dizer “de que lado do espelho uma pessoa se encontrava” (17) Em suma, Smithson afirmava, aquilo que ele havia visitado não era a Passaic real, senão “um planeta que tinha o mapa de Passaic desenhado sobre sua superfície” – um “mapa sideral marcado com ‘linhas’ do tamanho de ruas, e praças e quadras do tamanho de edificações. A qualquer momento meus pés podiam perfurar o chão de papelão” (18).

O relato dá bem a medida do modo como Smithson se deslocava e agia espaço do mundo. Talvez por viver constantemente mergulhado nesse grande mapa ficcional, Smithson jamais colocou em questão suas razões de se deslocar e agir. Sua grande contribuição à estética minimalista talvez seja esta: retirar a ênfase dada a motivos e justificativas e colocá-la nas noções, por regra naturalizadas, de movimento e ação. Significativamente, Smithson sempre viu com enorme desconfiança a noção de ação – em especial, a noção de ação engajada.

Uma discussão entre Smithson e seu colega Allan Kaprow (Atlantic City, 1927-Encinitas, 2006), publicada em 1967, expõe esse aspecto essencial do pensamento de Smithson. Confrontado pela afirmação de Kaprow de que “o conceito de museu é completamente irrelevante” (em contraste com o ambiente sócio-cultural mais amplo e complexo à sua volta) Smithson retruca que “a nulidade ensejada pelo museu é na verdade um de seus maiores ativos [assets]”. Aliás, Smithson afirmava, uma das maiores virtudes dos museus era precisamente seu aspecto “aniquilador [nullifying] no que diz respeito à ação” (19).

A extensão do desprezo que Smithson sempre nutriu pela noção de ação pode ser idiossincrática; ela reflete em todo caso o modo como os artistas formados na tradição minimalista lidavam com esse tema. Nessa chave, o que as separa as ações situacionistas – em especial, a deriva – e as diversas formas de performatividade minimalista e pós-minimalista não é, me parece, o fato de que “a deriva situacionista não pretendia ser vista com uma atividade propriamente artística” (20) O que as separa é o ideal essencialmente construtivo das ações situacionistas, o fato de terem sempre sido pensadas e desempenhadas (em contraste com as não-ações minimalistas e pós-minimalistas) como ações sócio-transformadoras.

Mais do que diferentes conceitos de arte, a divergência acima aponta para uma contradição mais essencial – a que opõe as temporalidades subjacentes aos dois modelos aqui delineados (i.e., situacionismo e minimalismo). Moldadas pelo pensamento Marxista, as ações de Debord são infalivelmente pautadas por uma concepção tipicamente historicista da passagem do tempo, ou seja, por uma abordagem que vincula a ação humana ao desenvolvimento do que Reinhart Koselleck denominou o singular coletivo “História”, vale dizer uma história geral ou global que compreende e correlaciona o que até então era percebido como um sem-número de histórias individuais mais ou menos auto-suficientes. Dito de outro modo, o que a emergência (em fins do século 18) desse novo regime temporal implica é que, em contraste com concepções prévias da transição temporal, a importância e o valor de toda e qualquer ação, e dos eventos por esta engendrados, se tornam relativos e precários – vale dizer, passam a ser compreendidos e julgados em função do lugar relativo que ocupam no, e do papel que desempenham para, o desenvolvimento da “História” (21)

A concepção debordiana de arte inovadora é fruto dessa concepção historicista da história; ela pressupõe que qualquer ação não-conservadora deve estar conscientemente engajada no processo histórico. Na verdade, ela pressupõe algo ainda mais ambicioso: a transformação revolucionária do mundo “real”. De fato, como deixou registrado em um de seus mais emblemáticos ensaios, Debord jamais arredou pé do princípio de que,

“Nós pensamos que o mundo deve ser mudado. Nós queremos a mudança mais libertadora da sociedade e da vida nas quais nos encontramos confinados. Nós sabemos que essa mudança é possível através de ações apropriadas” (22).

A noção de “ação apropriada” é essencial para Debord. Ele a concebe como a ação que resulta de uma avaliação racional e judiciosa (científica, pode-se dizer) das condições históricas atuais, vale dizer do estágio atual do desenvolvimento da “História”. A principal crítica de Debord ao Surrealismo reflete essa concepção de “ação apropriada”. Segundo Debord, mais do que a opção pelo cinismo e pelo humor, o grande erro do surrealismo fora apostar na ideia de “uma riqueza infinita do inconsciente”. Donde a conclusão: “Nós precisamos tornar o mundo mais racional – o primeiro passo necessário é torna-lo mais excitante, fascinante, satisfatório” (23). Esta, precisamente, a sabedoria e a força da “vanguarda coletiva” representada pelo situacionismo:

“A própria noção de vanguarda coletiva, com o aspecto militante que ela implica, é um produto recente de condições históricas que fazem surgir, simultaneamente, a necessidade de um programa revolucionário coerente na cultura e a necessidade de lutar contra as forças que impedem o desenvolvimento desse programa. Tais grupos são levados a incorporar à sua esfera de atividades alguns métodos organizacionais originalmente criados pela política revolucionária; suas ações são doravante impensáveis desprovidas de algum vínculo com a crítica política. Nesse sentido, há um notável progresso desde o Futurismo, passando pelo Dadaísmo e o Surrealismo, até os movimentos formados após 1945. Em cada um desses estágios, no entanto, percebe-se o mesmo desejo de mudança total, e a mesma desintegração rápida quando a incapacidade de mudar o mundo real de modo suficientemente profundo conduz a um recuo defensivo às próprias posições doutrinárias cuja inadequação acabara de se revelar” (24).

Também nesse sentido The Naked City é um mapa paradigmático. Pois, como enfatiza Debord, esse mapa não é uma representação arquetípica da cidade situacionista (a cidade desconstruída e reconstruída por meio da prática da deriva), senão uma versão provisória ou precária sua. De fato, o que está ali representado não é ainda uma representação acabada, digamos, da cidade situacionista, mas uma versão incipiente sua. E a justificativa para essa precariedade advém do reconhecimento, por parte de Debord, de que tudo o que as lições retiradas das derivas até o presente momento podiam ensejar era a elaboração de

“Uma cartografia influencial que faltava até o momento, e cuja incerteza atual, inevitável antes que seja realizado um imenso trabalho, não é pior que aquela dos primeiros postulantes, com a diferença que não se trata mais de delimitar precisamente continentes duráveis, mas de mudar a arquitetura e o urbanismo” (25).

Uma vez mais, a comparação com Smithson é instrutiva. Pois se há algo que este artista sempre desprezou, e de modo visceral, foi o ideal utópico. O desprezo não jamais injustificado. Pois, como Smithson bem cedo percebeu, o conceito de utopia sempre esteve ligado (26) à visão de mundo contra a qual sua obra se volta – em suas palavras, a consciência temporal inerente ao naturalismo e ao realismo historicista (27).

Nesse sentido, o que difere os mapas produzidos por Smithson de um mapa como The Naked City não é apenas sua espacialidade abstrata, mas acima de tudo sua temporalidade nitidamente absurda, desavergonhadamente ficcional e essencialmente anti-historicista. Significativamente, em vez de conexões rápidas e inusitadas entre unidade urbanas de caráter mais ou menos estático (28), os mapas de Smithson aludem a coexistências espaciais absurdas e paradoxais, características de mundos fictícios constituídos por “multiplicações infinitas” e “identidades duplas”, “replicas” e “reflexos”, “ilusões” e “oscilações” (29).

Robert Smithson, A Nonsite, Pine Barrens, New Jersey, 1968
Imagem divulgação [www.robertsmithson.com]

Coerentemente, em vez de uma composição equilibrada de elementos gráficos, os mapas de Smithson se constituem de justaposições e duplicações, dobras e obliterações, empilhamentos e reflexos. Dizer que esses mapas não cabem na tradição cartográfica é dizer muito pouco, portanto. Como no famoso conto de Borges (30), eles conjuram um tempo e um espaço que não cabem na História.

notas

1
Cf. JACQUES, Paola Berenstein. Breve histórico da Internacional Situacionista – IS. Arquitextos, São Paulo, ano 03, n. 035.05, Vitruvius, abr. 2003 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.035/696>.

2
DEBORD, Guy. Teoria da deriva. Tradução Carlos Roberto Monteiro de Andrade. Óculum, Campinas, n. 4, 1993, p. 26-29.

3
Idem, ibidem, p. 27.

4
DEBORD, Guy. Report on the Construction of Situations and on the International Situationist Tendency's Conditions of Organization and Action. Situationist International Online, jun. 1957 <http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/report.html>. Acesso: março 2015.

5
Idem, ibidem.

6
STELLA, Frank. Questions to Stella and Judd. In BATTCOCK, Gregory (Org.). Minimal Art: A Critical Anthology. Nova York, E. P. Dutton, 1968. Originalmente publicado em Art News, set. 1966.

7
KRAUSS, Rosalind. Sense and Sensibility – Reflection on Post ‘60s Sculpture. Art Forum, nov. 1973 <https://artforum.com/inprint/issue=197309&id=34257>. Acesso: março 2015.

8
Idem, ibidem.

9
JUDD, Donald. Specific Objects. Arts Yearbook. n. 8, 1965.

10
Apud JUDD, Donald. Ibidem. Tradução do autor.

11
ACCONCI, Vito. Diary of a body (1969-1973). Milão, Charta, 2006, p. 76. Tradução do autor.

12
Idem, ibidem, p. 78.

13
Idem, ibidem.

14
SMITHSON, Robert (1972). Interview with Robert Smithson for The Archives of American Art / Smithsonian Institution. In: FLAM, Jack (Org.) Robert Smithson. The Collected Writings. Berkeley, Los Angeles/London, University of California Press, 1996, p. 295.

15
“The nonsite exists as a kind of deep three dimensional abstract map that points to a specific site on the surface of the earth. And that's designated by a kind of mapping procedure… these places are not destinations; they kind of [are] backwaters or fringe areas”. Apud: http://www.robertsmithson.com/ex_events/mapping_dislocations01.htm Acesso: Março, 2015.

16
SMITHSON, Robert (1968). A Provisional Theory of Non-Sites. In FLAM, Jack (Org.) Robert Smithson. The Collected Writings. Berkeley, Los Angeles/London, University of California Press, 1996, p. 364. Itálicos de Smithson.

17
SMITHSON, Robert. The Monuments of Passaic. Artforum, v. 6, n. 4, dez. 1967, p. 51. Tradução do autor.

18
Idem, ibidem, p. 50-51. Tradução do autor.

19
What is a Museum. Arts Yearbook, Nova York, n. 9, 1967, p. 95.

20
JACQUES, Paola Berenstein. Op. cit.

21
Ver entre outros: KOSELLECK, Reinhart. ’Space of Experience’ and ‘Horizon of Expectation’: two historical categories. In Futures past: On the semantics of historical times. Nova York, Columbia University Press, 2004.

22
DEBORD, Guy. Report on the Construction… (op. cit.).

23
Idem, ibidem.

24
Idem, ibidem.

25
DEBORD, Guy. Teoria da deriva (op. cit.), p. 28. Itálicos meus.

26
Miguel Abensour tem trabalhado com o conceito de “utopia persistente”, a um só tempo simpático e crítico com a tradição do pensamento utópico. Agradeço a Henrique Estrada por ter chamado minha atenção para o pensamento de Abensour.

27
SMITHSON, Robert. Ultramodern. Arts Magazine, v. 42, n. 1, set./out. 1967, p. 31.

28
DEBORD, Guy. Report on the Construction... (op. cit.).

29
SMITHSON, Robert. Ultramodern (op. cit.), p. 33.

30
BORGES, Jorge Luis. O jardim dos caminhos que se bifurcam. In: Ficções. São Paulo, Globo, 1969.

sobre o autor

Otavio Leonidio Arquiteto, doutor em História, professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo e Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio. Fez Pós-Doutorado no Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Stanford, Califórnia. Autor, entre outros, de Carradas de razões: Lucio Costa e a arquitetura moderna brasileira (PUC-Rio/Loyola, 2008).

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