São 70 projetos arquivados na FAU e esse era o acervo completo do escritório quando Carlos Millan faleceu (1) aos 37 anos: 43 residenciais (39 casas e 4 edifícios de apartamentos), 10 educacionais (escolas, faculdades ou programas relacionados), 3 edifícios de escritórios, 3 clubes de lazer e esportes, 4 religiosos (igrejas e conventos); 3 industriais, 2 quarteis militares, 1 loja e 1 consultório médico (2). Neste conjunto, alguns são projetos de reforma, interiores ou estudos iniciais. Outros podem ter extraviado, poucos, confirmado apenas um (3).
Para os padrões desta segunda década do século 21 é uma obra reduzida que, no entanto, provoca interesse como objeto de estudo. Após a conclusão da dissertação de mestrado deste autor (4), têm sido recorrentes os contatos de grupos de alunos ou professores ou outros arquitetos procurando informações mais detalhadas a respeito desta produção. Uma das questões que o fim da pesquisa suscitou foi entender este interesse no conjunto de uma obra restrita, no qual o número de projetos que realmente têm maior significado para a pesquisa arquitetônica não chega a dez.
A carreira e a produção arquitetônica de Carlos Barjas Millan estão diretamente ligados à história da Arquitetura Moderna paulista. Atuou nas áreas de arquitetura, desenho urbano, desenho de mobiliário, como docente da Faculdade de Arquitetura da Universidade Mackenzie (FAUM) e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), transitou em momentos distintos entre dois grupos da arquitetura moderna em São Paulo nas décadas de 1950 e 1960. A trajetória particular que sua carreira percorreu começou com o ingresso na graduação da FAUM, na primeira turma deste curso independente do curso de engenharia, depois o contato fundamental com Rino Levi, o convívio com grupo de arquitetos da Branco & Preto (5), a aproximação com os padres dominicanos e finalmente o encontro com Artigas e o grupo da FAUUSP.
As duas escolas de arquitetura da cidade de São Paulo na década de 50 eram a FAUUSP e a FAUM, emancipadas das escolas de engenharia dessas universidades em 1947 e 1948, respectivamente. O curso da FAUM, sob direção de Stockler das Neves (6), formava profissionais para projetarem dentro dos princípios clássicos de harmonia, equilíbrio e perfeição, não eram consideradas as novas técnicas, os novos materiais e a função do edifício. Na FAUUSP, sob direção de Anhaia Mello (7), o curso absorvia as transformações contemporâneas, dentro de uma nova proposta estética resultante de novos materiais e novas tecnologias. Proveniente da Escola Politécnica, formada por um grupo que vislumbrava na engenharia e na arquitetura formas de contribuição para construção da cidadania, o objetivo da escola ia além de formar profissionais, mas educar cidadãos aptos a pensar sobre os problemas nacionais. Dentro deste breve panorama, Dalva Thomaz escreve
“Em paralelo ao que poderíamos tomar como um inevitável intercâmbio, deveria-se lembrar ainda o interessante papel de aglutinação desempenhado pelas então recentes escolas especificamente voltadas para o ensino da arquitetura, constituídas no final dos anos 40. Como ponto de reunião para arquitetos, não raro improvisados de professores, a própria proximidade geográfica entre as duas únicas escolas, Mackenzie e FAU, se encarregava de estimular uma certa troca entre professores e estudantes, cujas diferenças de formação acadêmica permitiam que mais uma vez se estabelecesse ora o confronto, ora a paridade” (8).
Dois engenheiros-arquitetos se destacaram como lideranças nas duas faculdades: Vilanova Artigas, admirador de Anhaia Mello, formado na USP em 1937 e proveniente do interior rural do Paraná; e Miguel Forte, formado no Mackenzie em 1939 e proveniente da elite paulistana, estudioso e incentivador da arquitetura moderna, apesar da resistência do ambiente acadêmico no qual estudou. Vilanova Artigas, dentro de uma linguagem racionalista, propôs uma abordagem da arquitetura como uma forma de ação que envolve conhecimentos amplos como técnica construtiva, conhecimento artístico e participação ativa na formação social do país. Iniciou o desenvolvimento do ideário paulista com forte viés ético-político. Miguel Forte, junto a Jacob Ruchti (9), buscava uma arquitetura refinada, focada no detalhe, referenciada pela arquitetura orgânica e sem intenções de rebatimento estético ou conceitual de posições políticas. Artigas era membro atuante do Partido Comunista e declaradamente não admirava Miguel Forte. Segundo Katinsky, “esses dois grupos, devido à instalação da guerra fria, cada vez se olhavam com mais desconfiança (os ‘americanos’ seriam ‘pró imperialismo’, os ‘nacionais’ seriam ‘pró cripto bolchevismo’), até desembocar em mútuo diálogo de surdos quanto às ideias e em acirrada competição quanto às relações cotidianas. E assim perdeu-se em grande parte a consciência de que suas utopias eram partes complementares de uma mesma e generosa visão da cultura e da sociedade” (10). Carlos Millan foi o único arquiteto atuante do período a transitar de forma notável pelos dois grupos em momentos distintos.
No período de faculdade, Millan aproximou-se de Luiz Roberto de Carvalho Franco, Plínio Croce, Roberto Aflalo, Salvador Candia, Sidney Fonseca e Galiano Ciampaglia - grupo de arquitetos interessados na Arquitetura Moderna ligados a Miguel Forte e Jacob Ruchti – e estagiou nos escritórios de Abelardo de Souza (11), Oswaldo Bratke (12) e Rino Levi (13). Dentre os poucos escritórios de arquitetura que projetavam para a clientela particular, independente dos arquitetos construtores, talvez os de maior destaque tenham sido os de Levi e Bratke. Traçaram linhas de trabalho que foram determinantes na caracterização de uma conduta profissional da geração seguinte de arquitetos, o grupo que sedimentou a Arquitetura Moderna em São Paulo. Eram referência desde a conceituação e concepção de projetos até a organização comercial e produtiva dos respectivos escritórios. Pode-se creditar ao período de trabalho de Millan com Levi, e também ao convívio profissional com o grupo de arquitetos da Branco & Preto, o cuidado quase obsessivo ao longo de toda a atividade profissional com detalhamentos de soluções construtivas em seus projetos. Admirou profundamente Rino Levi, o refinamento de obras como a Residência Olivo Gomes em São José dos Campos (1949/1951) e seu domínio do processo construtivo, observou detalhes do método de trabalho, meio social que frequentava e como captava e se relacionava com os clientes. Esta influência foi constante em sua produção, a mudança de linguagem formal ao longo da carreira não implicou um abandono do detalhamento exaustivo do projeto, mostrando um cuidado constante com as diferentes características dos materiais empregados, cuidados de execução, montagem, manutenção e atenção às características de durabilidade e envelhecimento de cada material, um cuidado para que a obra executada fosse longeva e significativa em todos os aspectos da época em que foi construída.
Foi João Batista Vilanova Artigas, no entanto, o principal personagem na definição de uma linguagem paulista na Arquitetura Moderna brasileira após a segunda metade da década de 50. Artigas pesquisava uma linguagem arquitetônica própria baseada em um compromisso moral entre forma estética e verdade construtiva, esta foi uma orientação que norteou sua produção e foi determinante no estabelecimento de uma linha paulista de se fazer e pensar arquitetura. O verdadeiro projeto moderno de arquitetura como agente transformador da sociedade começava a tomar forma em São Paulo – independente de seus resultados futuros – retomando a ideia inicial do movimento.
A corrente paulista desenvolveu-se a partir da possibilidade de se fazer Arquitetura Moderna sem condições tecnológicas avançadas, uma arquitetura que trabalhasse com a tecnologia construtiva disponível e fornecesse elementos para o seu desenvolvimento em uma linguagem contemporânea, de acordo com as possibilidades dos materiais utilizados. Conformava-se um grupo de arquitetos pesquisando o desenvolvimento tecnológico e buscando soluções formais, técnicas e estéticas próprias com raízes culturais inseridas em um projeto de modernização do país. Esta arquitetura que se consolida em São Paulo a partir dos anos 1950, com afirmação marcante nos anos 60, era outra corrente de interesse na arquitetura brasileira no momento em que Brasília era o tema de maior importância dentro desse cenário.
Ruth Zein faz uma caracterização conceitual não limitada às características construtivas da arquitetura paulista do período:
“quanto às características conceituais da escola paulista [...]:
a) ênfase na construtividade da obra, no didatismo e clareza de sua estrutura;
b) ênfase na noção do edifício como protótipo, ou mesmo 'modelo', de uma solução que busca ser cabal para se tornar exemplar e, no limite, repetível;
c) ênfase na ideia de pré-fabricação, muito poucas vezes realizada de fato nas obras desse período, mas vista sempre como horizonte conceitual próximo e necessário, para o qual essas mesmas obras serviriam de experimento;
d) as ênfases no 'experimental' e no 'exemplar' levantam agudamente a consciência da necessidade de mudança social para a plena efetivação do ideal utópico dessa arquitetura; e como consequência indébita, há um sentimento latente de frustração quando do acirramento da situação política após 1964;
e) como consequência do exposto no item anterior, verifica-se, já em finais dos anos '60, e mais enfaticamente nos anos '70, uma certa 'exacerbação' das características formais e construtivas desenvolvidas até então” (14).
No final de 1955, talvez no início de 1956 (15), após o encontro com Joaquim Guedes e Vilanova Artigas, Millan aproxima sua produção do grupo paulista de arquitetos que se organizava em busca de alternativas à linguagem formal de forte impacto visual carioca, associada a volumetrias rebuscadas e de forte influência corbusiana.
Este artigo retorna então ao momento inicial do texto, que questiona sobre o contínuo interesse sobre produção arquitetônica de Carlos Millan. Quais aspectos destacam esta produção no panorama paulista da Arquitetura Moderna?
Talvez pelo motivo de sua morte prematura, em um momento de realização profissional e ascendência no meio acadêmico da arquitetura, as referências pessoais que ficaram no meio arquitetônico são positivas, certas vezes com uma imagem que carrega algum exagero em uma conceituação pessoal, social, religiosa e política. Místico, idealista, ético, bondoso, austero, generoso, introspectivo, afetuoso, modesto, espontâneo, educado são adjetivos associados a Millan garimpados nos depoimentos gravados para a pesquisa de mestrado. Segundo Carlos Lemos “se você colher dez, vinte, trinta depoimentos sobre o Carlos Millan, todos vão se sobrepor, nos mesmos elogios, na mesma seriedade” (16). Com o afastamento de 50 anos, parece haver certa mistificação da imagem pessoal que não se associa à atividade de projeto ou às obras construídas.
No curto período de atuação profissional, em pouco mais de uma década, Millan produziu uma obra não muito numerosa, relativamente circunscrita a São Paulo, na qual alguns projetos dos últimos cinco anos expressavam o desenvolvimento de uma linguagem arquitetônica própria, mesmo que não amadurecida, há variação formal e plástica e não se encontram estilemas. Porém, é uma obra que mostra um método de trabalho, um projeto detalhado e didático que expõe soluções técnicas e procedimentos. Expõe questões que um projetista enfrenta ao pensar e desenhar todo o processo da obra, como a matéria prima é trabalhada e transformada em um novo objeto, como contemplar no desenho a realização de todo processo construtivo antes de executá-lo. Isto é explicito na obra de Millan, tanto no desenho de projeto quanto na obra construída, o detalhe é claro e direto, os diferentes materiais estão dispostos e se encontram de maneira didática. Desde os primeiros trabalhos no início da década de 50, planejava todas as etapas do processo construtivo, dos serviços de terraplanagem aos projetos detalhados dos equipamentos de iluminação e do mobiliário incorporado, com detalhes de dobradiças, puxadores e frestas de ventilação. A partir dos primeiros estudos, projetava a disposição geral dos móveis nos ambientes, sem exceção, característica que manteve inclusive em projetos de maior escala como os clubes, os estudos para os quartéis militares e os edifícios comerciais que projetou. É um método de trabalho que se observa em obras como a Casa da Praia da Lagoinha ou no Clube Paineiras e na Residência Roberto Millan. Há um repertório de projeto, há um conjunto de soluções dispostas de modo claro e objetivo, que compõe a unidade da obra e se tornaram referência mais pelo método de trabalho dos materiais do que pelos resultados plásticos das obras, esses ainda oscilantes no momento em que esta produção foi encerrada. Projetos que são referências de sua época, assimilando e contribuindo com o desenvolvimento tecnológico, mas que não desprezam preceitos básicos da arquitetura, como conforto ambiental, adequação ao sítio e custos razoáveis de execução e manutenção.
Arquiteto que procurava dominar todo o processo construtivo, Millan trabalhava com um conjunto de soluções e detalhes empregado como um vocabulário de composição da linguagem de projeto. Sempre projetou com um “arquivo” de detalhes que repetia nos diferentes projetos, e isso pode ser identificado nas folhas de detalhamento com desenhos idênticos que são repetidos de projeto a projeto; alguns detalhes atravessaram todo o período de atuação profissional apenas com ajustes de desenho, como os detalhamentos de gabinetes e iluminação de cozinha, os detalhamentos de armários e luminárias embutidas na laje. Apesar da transformação plástica e funcional da produção nos quinze anos de atividade e da mudança de direção da obra arquitetônica, a metodologia de projeto é semelhante: o edifício é resolvido funcionalmente por meio de um sistema de estudo e organização das solicitações dos programas de necessidades, e o amplo repertório de detalhes e soluções técnicas específicas são aplicados e determinantes na definição espacial e plástica.
Inserido no grupo de arquitetos da FAUUSP, sintetizava conceitos e influências da Arquitetura Moderna e indicava a pesquisa por uma linguagem de projeto própria. Adicionava novos elementos à sua produção arquitetônica adaptando-os ao seu método de trabalho sem apenas incorporar novos elementos estéticos. Neste grupo, porém, não segue a mesma linguagem formal: há uma tendência de redução à mínima quantidade de materiais, à estrutura como definidora espacial, à abordagem de projeto que parte da escala do edifício rumo ao detalhe; enquanto que na obra de Millan, apesar da busca por uma síntese dos materiais e do processo construtivo, há um cuidado quantitativo e qualitativo com o detalhe, e a estrutura não atua como definidora do espaço. Millan parece percorrer o rumo oposto neste aspecto, enquanto na obra de Artigas e Paulo Mendes da Rocha a estrutura tem um caráter fundamental na definição espacial, na sua obra isso não ocorre (17). Suas estruturas são racionais, com os elementos componentes de dimensões mínimas e vãos e balanços razoáveis, em obras como a Residência Nadyr de Oliveira (1960/1961) e a Residência Carlos Millan (1959/1964) estudada nesse artigo, o projeto procura estruturas mínimas, com componentes de menores dimensões possíveis.
Os elementos estruturais são componentes da obra, assim como outros materiais empregados com rigor plástico e funcional. Há um critério de composição na simplicidade das formas e volumes, na continuidade espacial dos interiores e há clareza no uso de materiais, basicamente blocos de concreto, tijolos, esquadrias metálicas e estruturas de concreto armado. Busca-se resolver o programa de necessidades em volumes puros, limitados por fachadas trabalhadas plasticamente com componentes que indicam as funções internas e volumes secundários de circulações verticais ou caixas d’água. Nos últimos anos, na fase final de sua produção, Millan trabalha com volumes simples, geralmente prismas únicos e elevados, aos quais volumes secundários são adicionados e incorporados conforme solicitações funcionais específicas, sugerindo o desenvolvimento de uma linguagem arquitetônica própria decorrente de seu método de trabalho. Isto pode ser entendido como o catalisador do interesse por essa produção, por ser um método de projeto atual e contemporâneo ou uma possibilidade de pesquisa de arquitetura, em um momento em que se dispõe de maior oferta e possibilidades de materiais e produtos industrializados, assim como solicitações técnicas mais precisas, resultando em problemas de projeto que podem ser resolvidos por meio de estratégias semelhantes.
Nos projetos para as residências Gertrudes Wagner (1964), Barroquinha do Salmorão (aprox. 1964) e nos estudos de revisão de sua casa (aprox. 1964), mostra algumas variações de linguagem em relação a projetos anterioResidência Após o projeto para Residência Nadyr de Oliveira (1960), Millan adiciona detalhes de execução presentes em todas as casas concebidas como prismas sobre pilotis: incorpora elementos de proteção solar das aberturas em concreto ou basculantes Eternit, modifica as soluções de caixilhos e fragmenta as unidades volumétricas dos blocos suspensos pela abertura de vazios ou pela adição de volumes secundários anexados ao principal, com volumes independentes no térreo e formas livres na cobertura. De acordo com Paulo Bruna, Carlos Millan frequentemente pesquisava a bibliografia referente a Le Corbusier, e sempre citava a Unidade de Habitação de Marselha (1947/1953) em aula, “ele pesquisava a fundo a obra de Le Corbusier, sempre abria os livros e nos mostrava ‘olha como ele fez’ e falava abertamente que os projetos das casas eram um a um inspirados nos volumes da cobertura da Unidade de Habitação, nos detalhes de escadas, nos arremates de lajes, de vigas...” (18)
A influência de Millan sobre outros arquitetos, contemporâneos ou mais jovens, ocorreu no sentido de expor um método de projeto, o didatismo de como aplicar um repertório próprio e buscar uma expressão arquitetônica particular, não foi uma linguagem formal definida a ser plasticamente referenciada em outras obras. Sérgio Ferro comenta esta relação: “o Artigas tinha uma influência muito grande, mas eu aproximaria mais o que a gente tentou fazer depois do Millan do que dos outros, Pedro Paulo Saraiva, Paulo Mendes, o lado que pegou o Artigas e foi mais para o lado estetizante, formal. O Millan é muito mais o lado construtivo, o lado técnico, o Millan tinha aquela racionalidade técnica e construtiva muito forte [...] e nós desenhávamos muito, para fazer a menor casinha, saía um volume desenhos muito grande, e isso é Millan” (19).
Sua carreira teve importância pela amplitude de atividades que envolveu e por ter transitado entre dois grupos definidores da arquitetura moderna em São Paulo nas décadas de 1950 e 1960, acumulando conceitos e influências de ambos, o que colocou sua produção em um caminho particular. Deixou uma produção com espacialidade, composição plástica e técnica apuradas. Ficou sem resposta o questionamento de para onde teria seguido sua carreira, mas ficou o exemplo de um trabalho que, se não tinha uma linguagem completamente amadurecida e independente, tinha forte correspondência entre o pensar e o fazer que refletia em uma obra finalizada dentro dos princípios da boa técnica, da coerência da arquitetura realizável e perene.
Residência Carlos Millan (1959 / 1964)
Rua dos Limantos, Morumbi, São Paulo SP (não construída)
Este é o projeto que Millan desenvolveu durante quatro anos para um terreno de sua propriedade próximo ao parque do Morumbi e à residência Nadyr de Oliveira. Segundo Marta Millan (20), os irmãos Carlos e Fernando compraram na mesma época dois terrenos na região e Carlos começou a desenvolver os projetos das duas casas, que não foram executados (21).
O projeto da Residência Carlos Millan foi detalhado até o nível executivo apesar do desenvolvimento lento, pois o arquiteto priorizava os trabalhos pagantes encomendados ao seu escritório. Após a finalização do projeto, Millan começa a estudar modificações como um volume de cobertura para um ateliê, solução próxima às das residências Gertrudes Wagner (1964) e José Malfitani (aprox. 1964), mas com formas menos livResidência Outra ampliação estudada é a construção de um pavilhão anexo com acesso independente para seu escritório, que Millan pretendia mudar da Barão de Itapetininga. Essas modificações não foram desenvolvidas até o nível de anteprojeto e aparecem apenas em croquis.
A Residência Carlos Millan é uma casa-apartamento com solução similar à Residência Nadyr de Oliveira (1960/1961), porém de maiores dimensões: um volume elevado do solo que poderia ser repetido em diferentes topografias, organizado em uma planta enxuta ao redor de um núcleo central, possibilitando uma circulação periférica infinita. A casa é um prisma sobre pilotis implantada em terreno com 1600m2de declividade lateral. Millan projeta uma casa com quatro dormitórios, um banheiro de uso múltiplo e um banheiro integrado ao quarto do casal, salas de jantar e estar com terraço, lareira, cozinha, lavanderia, terraço de cobertura, dois quartos e banheiro de empregados. A planta quadrada organiza-se a partir de um núcleo central composto pelo vazio de acesso e pelo volume do banheiro, ao redor do qual estão os dormitórios, as salas, a cozinha e a lavanderia, todos os ambientes ligados por meio de uma circulação contínua e ininterrupta periférica ao núcleo central. A cozinha linear tem de um lado os armários e do outro o plano de trabalho; junto à pia fica a janela dividida em duas faixas, a superior ilumina o ambiente e a inferior o plano de trabalho e entre as duas, armários. O banheiro de uso múltiplo tem três compartimentos, dois com chuveiro e bacia sanitária e outro com dois lavatórios, além da escada caracol de acesso ao terraço de cobertura.
O térreo permanece livre com um terraço e o abrigo de automóveis sob a projeção e apenas com os volumes das escadas e do depósito construídos, as dependências de empregados ficam no subsolo. Não há banheiro social e a escada central de acesso social tem as laterais fechadas em concreto e um caixilho do piso ao teto que determina a entrada e um vestíbulo de área mínima.
A casa tem volumetria simples com pequenos volumes de iluminação zenital e da caixa d’água na cobertura e variações de fachada que indicam os usos e organizações do espaço interno. Os caixilhos da sala de estar e dos dormitórios são de ferro, com abertura de correr, do piso ao teto na sala de estar e protegidos por lâminas de quebra-sol basculantes Eternit nos dormitórios. Todos os caixilhos, exceto os da cozinha, ficam destacados na fachada pelos volumes das caixas de concreto para proteção das janelas.
O detalhamento e as soluções funcionais do projeto seguem o padrão dos últimos quatro anos de atividade de Millan: o programa de necessidades resolvido ao redor do vazio central; as escadas separadas, isolando a de serviços em escada externa com volume cilíndrico destacado do corpo principal; a lareira configurada como um volume independente separando dois ambientes; a cozinha linear com iluminação em duas faixas; as circulações internas ao redor do vazio central; a área de serviço no mesmo pavimento dos dormitórios; os sheds de iluminação zenital dos banheiros locados em posição central na planta; os detalhes de bandeiras e portas chanfradas montadas em batentes de cantoneiras de aço; os banheiros compartimentados de múltiplo uso; as soluções formais das escadas retas e em caracol; o fechamento de áreas de serviço com elementos vazados do piso ao teto ou cobogó; as gárgulas para escoamento da laje de cobertura; os receptores cilíndricos semienterrados de águas pluviais despejadas pelas gárgulas; as luminárias redondas embutidas na laje, as de sobrepor em tubos de alumínio e as arandelas de blocos de concreto.
Há poucos materiais de acabamento especificados em projeto: alvenarias de blocos de concreto aparentes ou revestidas e pintadas; pisos externos de lajotas cerâmicas, piso do vestíbulo de entrada de epóxi e elementos vazados de concreto sem acabamento. A estrutura de concreto armado permanece aparente, as lajes são fundidas na obra com enchimento de blocos cerâmicos que ficam revestidos e pintados nos forros. A estrutura de concreto de vãos regulares com balanços laterais é composta por lajes nervuradas e oito pilares cilíndricos com vinte centímetros de diâmetro que, após a obra para Nadyr de Oliveira, na qual Millan considerou os pilares muito estreitos em relação à volumetria da casa e ocorreram falhas na concretagem devido ao pequeno diâmetro destes, pode-se supor que seriam revistos no segundo projeto executivo desta casa.
Os croquis acima mostram alterações deste projeto citadas anteriormente neste artigo, como os volumes de cobertura de formas não ortogonais e nota-se que a estrutura não está representada nos desenhos. No conjunto da obra de Millan as estruturas eram abordadas como elementos de composição construtiva não essencialmente definidoras da espacialidade da obra.
Descrição do projeto
Pavimento inferior: dormitórios e banheiro de serviço, acesso ao jardim. Usualmente as dependências de serviço eram locadas no mesmo pavimento dos ambientes de convívio social, neste projeto e na Residência Nadyr de Oliveira, estão em níveis diferentes, aqui são locados no subsolo para que a entrada pelo térreo permanecesse desobstruída.
Pavimento térreo: platô de acesso e terraço definido pela cobertura do subsolo e pela pavimentação sobre o terreno.
Pilares: oito colunas delgadas com altura do terreno até a laje do pavimento principal da casa. Pode-se supor que esta estrutura seria revisada, Paulo Bastos (22) e Sérgio Ferro (23) citaram que Millan achava, após a conclusão da obra, os pilares da Residência Nadyr de Oliveira muito estreitos em relação à volumetria da casa. Neste projeto estão detalhados com os mesmos 20 cm de diâmetro e a ideia inicial, ao menos para o projeto da Nadyr, era fazê-los ainda mais estreitos com 15 cm, mas o engenheiro Gabriel Oliva Feitosa (24) não permitiu.
Pavimento térreo: componentes adicionados à volumetria primária: banco como guarda corpo do terraço, paredes da escada de acesso ao piso principal e volume do depósito.
Escadas: social e serviço, volumes secundários com funções específicas.
Laje do pavimento superior: piso principal da casa com vazio central de acesso.
Pavimento superior: os pilares atravessam a laje de piso até a de cobertura. Todos os oito pilares estão soltos no espaço e não tocam as alvenarias. As alvenarias e a organização da planta ao redor do núcleo central, com o vazio de acesso, escadas e o banheiro compartimentado.
Outros volumes secundários de composição adicionados ao volume principal: caixas de concreto para proteção de aberturas ou mobiliário incorporado (prateleiras, bancos / guarda corpo, armários de cozinha).
Escada de acesso à cobertura: outro volume secundário com função específica.
Elementos de proteção solar: quebra-sol basculante Eternit e ripado vertical de concreto pré-fabricado no canteiro de obras. Anexados às janelas dos dormitórios e à ventilação permanente da lavanderia, são tratados como componentes que possibilitam variações de fachadas.
Laje de cobertura com vazios e iluminação e terraço, volumes das iluminações zenitais, chaminés e banco do terraço em concreto.
notas
1
A carreira de Millan foi interrompida abruptamente por um acidente de automóvel em 5 de dezembro de 1964 quando voltava de Joaquim Egídio (SP).
2
O arquivo de projetos do escritório foi doado à biblioteca da FAUUSP e encontra-se no arquivo de desenhos desta. A análise e documentação deste acervo, iniciada na tese de doutorado de Carlos Faggin, pôde ser aprofundada em um trabalho de pesquisa específico, de modo a permitir melhor acesso aos projetos através de uma compilação de desenhos e fotos dos projetos e obras, que teve como produto final minha dissertação de mestrado. Não se pode afirmar que toda a produção gráfica do escritório de Millan foi arquivada na biblioteca da FAUUSP, mas o acervo é representativo de todo o conjunto da produção arquitetônica durante o período de atividade profissional do arquiteto, com alguns projetos incompletos e poucos projetos que não estão arquivados. Este acervo sobre a obra do arquiteto contém 72 títulos divididos em 69 projetos ou estudos de arquitetura, um título referente a desenhos de móveis e dois títulos referentes a desenhos e croquis variados. Ver: FAGGIN, Carlos A. M. Carlos Millan: itinerário profissional de um arquiteto paulista. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 1992; MATERA, Sergio. Carlos Millan: um estudo sobre a produção em arquitetura. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 2005.
3
Sabe-se do projeto da Residência Fernando Millan. Carlos Millan elaborou um projeto para seu irmão, porém não há informações sobre o nível de detalhamento ou da localização destes desenhos. Após seu falecimento, Fernando Millan encomendou o projeto da sua casa nesse mesmo terreno para Paulo Mendes da Rocha, que relata: “o Fernando tinha comprado um terreno para fazer uma casa, tinha já encomendado um projeto ao irmão e resolveu solenemente que então era eu quem deveria fazer, depois que o irmão morreu. Você pode imaginar o clima, para mim foi uma preocupação enorme, muita emoção. Eu não quis ver os desenhos que o Carlos teria feito. Então eu falei para o Fernando: ‘vamos fazer um pacto, eu não quero ver nada’ e fiz a casa que está lá. [...] Então, o Fernando deve ter pego esses desenhos e sumido com eles, qualquer coisa assim. Não sei. O que eu posso te dizer então, como depoimento, é que eu mesmo nunca vi esses desenhos, mas foram oferecidos. O Fernando falou: ‘você quer ver?’ Eu achei melhor não ver.” in ROCHA, PAULO A.M. Paulo Archias Mendes da Rocha: Depoimento [02 março 2005]. Entrevistador: Sergio Matera. São Paulo.
4
MATERA, Sergio. Op. cit.
5
A primeira loja de móveis modernos da cidade de São Paulo inaugurada em dezembro de 1952, a Branco & Preto era uma sociedade dos arquitetos Miguel Forte, Jacob Ruchti, Plínio Croce, Roberto Aflalo, Carlos Millan e Chen Y Hwa, todos formados no Mackenzie, exceto o chinês Chen que era formado na Universidade Estadual da Pensilvânia (Pennsylvania State University) nos Estados Unidos, todos admiradores e influenciados por Rino Levi.
6
Cristiano Stockler das Neves, diretor da FAUM, formado em 1911 na Escola de Arquitetura da Universidade de Pensilvânia (University Of Pennsylvania), na Filadélfia (EUA), sob influência da Escola de Belas Artes de Paris. Foi fundador da FAUM em 1947, prefeito da cidade de São Paulo de março a agosto de 1947 e vice-reitor da Universidade Mackenzie de 1952 a 1955. Conservador no que se referia ao ensino e prática da arquitetura, orientava o curso no sentido oposto da Arquitetura Moderna.
7
Luis Ignácio de Anhaia Mello, como diretor da FAU USP em 1948, incorporou ao corpo docente alguns arquitetos modernos com formação no Rio de Janeiro, como Abelardo de Souza, Eduardo Corona, Hélio Queiroz Duarte, Antonio Paim Vieira e Alcides da Rocha Miranda.
8
THOMAZ, DALVA E. Um olhar sobre Vilanova Artigas e sua contribuição à arquitetura brasileira. São Paulo. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 1997, p. 242
9
Jacob Ruchti graduou-se na FAUM em 1940, era filho do arquiteto suíço Frederico Ruchti que imigrou para trabalhar nas industrias da família Klabin. Sua família tinha intensa vida cultural, frequentavam os encontros culturais promovidos pelos Klabin, pelos quais passaram Warchavchik, Volpi, Di Cavalcanti, Artigas, Kneese de Mello, Mies Van der Rohe, Phillip Johnson, entre outros. Ruchti foi uma espécie de orientador de autores e publicações de Arquitetura Moderna para os alunos do Mackenzie.
10
KATINSKY, Julio. Prefácio. In: ACAYABA, Marlene M. Branco & Preto: uma história de design brasileiro nos anos 50. São Paulo, Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1994, p. 1.
11
ACAYABA, Marlene M. Op. cit., p. 50.
12
BARROS, Ary Q. Ary de Queiroz Barros: Depoimento [17 jun. 2005]. Entrevistador: Sergio Matera. São Paulo.
13
WILHEIM, Jorge. Jorge Wilheim: Depoimento [22 fev. 2005]. Entrevistador: Sergio Matera. São Paulo.
14
ZEIN, Ruth Verde. Arquitetura Brasileira, Escola Paulista e as casas de Paulo Mendes da Rocha. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, FAU UFRGS, 2000, p. 385-386.
15
GUEDES, Joaquim. Joaquim Guedes: Depoimento [23 fev. 2005]. Entrevistador: Sergio Matera. São Paulo.
16
LEMOS, Carlos A.C. Carlos Alberto Cerqueira Lemos: Depoimento [30 março 2005]. Entrevistador: Maurício Petrosino. São Paulo.
17
Exceções são os projetos para o Clube Paineiras (1961/1962), a Residência Rizkallah (1962/1963) e o Clube XV de Jaú (1962/1964).
18
BRUNA, Paulo. Paulo Bruna: Depoimento [19 set. 2005]. Entrevistador: Sergio Matera. São Paulo.
19
FERRO, Sérgio. Sérgio Ferro: Depoimento [04 nov. 2004]. Entrevistador: Sergio Matera. São Paulo.
20
Filha de Carlos Millan.
21
O projeto construído da Residência Fernando Millan é de autoria de Paulo Mendes da Rocha, ver nota nº 3.
22
BASTOS, Paulo. Paulo Bastos: Depoimento [18 fev. 2005]. Entrevistador: Sergio Matera. São Paulo.
23
FERRO, Sérgio. Op. cit.
24
FEITOSA, Gabriel O. Gabriel Oliva Feitosa: Depoimento [14 abril 2005]. Entrevistador: Maurício Petrosino. São Paulo.
sobre o autor
Sergio Matera é arquiteto formado pela FAUUSP (1991), mestre (2006) e doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela mesma instituição. É professor de Projeto Arquitetônico da Universidade São Judas Tadeu e do Centro Universitário Senac.