Avenida Paulista em São Paulo é reconhecida como um importante espaço público, pólo de atração e de representação da metrópole, construído também por condições especiais de acessibilidade. Tradicional palco de manifestações sociais, este excepcional espaço público vem se configurando como espacialidade estratégica para a articulação dos vários atores sociais, e daí como espacialidade de convivência, disputa e conflito entre eles, entre tantas diversidades. Sua importância já se afirmava como “local de manifestação política por parte de um número crescente de grupos sociais, e, da mesma forma, como lugar de diversas festas e comemorações” (1).
É o que parecem apontar aos eventos que, especialmente desde o outono de 2012, tomam cotidianamente a avenida, como palco de manifestações de diferentes grupos sociais. O que já vinha sendo rotina nos últimos anos – o confronto de interesses entre direitos de expressão de grupos sociais e os difusos direitos de ir e vir – parecem ter se ampliado para além das pistas da avenida, nas calçadas, nas estações de metrô, nas ruas do entorno.
A dimensão das manifestações na Paulista já mereceu uma regulação especial de uso do espaço da avenida (2) – um pacto entre as autoridades policiais e de trânsito para acomodar todos – manifestantes, veículos e transeuntes dessa importante artéria metropolitana. No entanto, essa questão deve ser recolocada agora, seja frente às manifestações, que já vem atravessando as quatro estações – desde a primavera árabe ao inverno brasileiro, seja frente a ideia do possível esvaziamento do espaço público que emergia desde o final dos anos de 1970 como uma constatação pessimista e de perplexidade diante dos processos de transformação histórica das espacialidades urbanas. Afinal as praças, ruas e avenidas das cidades brasileiras estão se reafirmando como esfera política de liberdade e de constituição de cidadania, ao mesmo tempo em que recrudesce o confronto entre formas de mobilidade - individual e coletiva, motorizada e não motorizada.
A Avenida Paulista, ao longo de um século assistiu a prevalência e privilégio das mobilidades individuais propiciadas pelo automóvel, que se agregariam a outros suportes tecnológicos e urbanos em direção ao acirramento do individualismo, da reclusão e de desvalorização dos espaços públicos (3). Mas também, vem se transformando no cenário de novas espacialidades, fruto das apropriações que distintos grupos e categorias sociais fazem, sobretudo, a partir da ampliação da rede de transporte coletivo de massa. Desse modo, essas novas experiências de mobilidade/espacialidade na metrópole parecem confrontar as representações simbólicas até então construídas em torno de uma espacialidade elitizada da Avenida Paulista.
Entendendo que é na dimensão do vivido e das práticas sociais que os espaços públicos urbanos são fundados e adquire significado social e histórico, tal como sinalizado por Lefebvre (4), busca-se aqui uma reflexão sobre as espacialidades urbanas da cidade contemporânea, tomando de empréstimo olhares interdisciplinares que se cruzam e onde a mobilidade é o elemento privilegiado. Cabe assim, entender o espaço público não apenas como espaço de representação, mas também, na sua dimensão do real/vivido, pois é ele que nos informa, traz a toma a interação, as relações dos atores, os significados diferenciados e simultâneos, pois os espaços não são unidirecionais, mas ‘lugares’ com significados diferenciados e compartilhados simultaneamente.
Ao mesmo tempo, cabe refletir sobre as virtudes da acessibilidade ampliada, pois até que ponto as experiências de mobilidade conseguem romper com a construção da espacialização exclusiva? Em quê a Avenida Paulista se diferencia? Trata-se de uma construção bastante singular – a construção política de uma espacialidade diferenciada - que vai representar a importância reservada a excepcionalidades exclusivas e aos privilégios em nossa sociedade, e que ao mesmo tempo, forja-se em contradições, visto que enquanto ‘centralidade’ essa espacialidade se torna atraente e atração para todos - simultaneidade de trajetórias múltiplas - e assim passa a ser apropriada pelas massas, portanto pelos comuns, indiferenciados geradores de deslocamentos e mobilidades.
Como se constroem as representações simbólicas do lugar
Obra marcante do final século 19, a Avenida Paulista foi idealizada como espaço das elites. A sua abertura “nos terrenos mais altos da cidade” acompanhava o processo de expansão da cidade, orientada pela a criação de bairros e loteamentos, como por exemplo, na Vila Buarque ou em Higienópolis, desde então mostrou-se como um empreendimento especial. “Suas características eram então desconhecidas na cidade. Reta, com ligeira inflexão na altura do parque Trianon, larga e plana, tornou-se atração na cidade. Era servida por linhas de bonde, que permitiam o acesso da população ao ‘parque da Avenida’, em frente à esplanada do Trianon, de onde se descortinava vista privilegiada do centro e das serras no horizonte” (5).
Situava-se afastada do núcleo urbano, mas talvez por orientar um loteamento destinado às classes abastadas cidade, a avenida logo se tornou uma atração, lugar de passeio e de excursão feita em bonde a tração animal (6). Mais que atração de visitantes, a Avenida Paulista desde sua implantação atrai considerações especiais por parte do poder pública – sejam obras, paisagismo, serviços e equipamentos raros ou quase nunca cogitados para as demais ruas da cidade, com direito até a aniversário em data, 8 de dezembro, que a imprensa jamais esquece.
Destacando-se na estrutura radial das avenidas paulistanas como uma das raras avenidas perimetrais, a Paulista foi traçada ao longo do Espigão Central, sempre adequada aos sistemas de transporte mais avançados, equipada com modernos artefatos de mobilidade, iluminação e sinalização. Desde a pioneira linha de bonde puxado por burros até a atual linha de metrô – Linha Verde, a Avenida Paulista recebe tratamento especial (7), tendo sido objeto de alguns projetos e investimentos significativos.
Quando de sua implantação, as obras de seu aformoseamento e iluminação mereceriam policiamento e vigilância constante, como reclamava a imprensa da época (8). O que era alegado como justificativa para um tratamento distintivo seria o fato de estar sendo realizada como um melhoramento incomparável. Justamente por sua excepcionalidade. E assim parece ter sido criada uma tradição entre políticos paulistanos no cuidado excepcional desse espaço público singular.
Desde sua inauguração, a Paulista dispôs de sistemas de transportes de excelência, condição que se reafirma hoje quando em seu subsolo operam linhas de metrô que se caracterizam por ‘constituir’ efetivamente a rede de transportes metropolitana (9). Em 1891 a Avenida Paulista já contava com um serviço regular de transportes, quando uma linha de bondes era privilegio de algumas poucas ruas na cidade. Mas não para ela, mesmo sendo uma “avenida, praticamente deserta e descontínua em relação ao restante do tecido urbano” (10).
O calçamento do leito da Avenida também já apresentava padrão de excepcionalidade: fora feito de modo a distinguir os diferentes modos de transporte – uma faixa reservada aos bondes, e o espaço para os pedestres. “Todos os terrenos com faces voltadas para a Avenida foram cercados, e as alamedas transversais foram abertas, muito embora não tenham recebido calçamento algum” (11).
Como também, a regulação do uso da avenida atesta a diferenciação que este espaço público vem sempre merecendo. Uma lei municipal criada logo após a sua abertura (Lei municipal nº 100 de 1894) proibia a passagem de boiadas pela avenida. Já a prática das corridas de veículos aos domingos não foi restringida durante algum tempo, mas logo foi considerada incompatível com o ajardinamento e arborização existente na via, e com a rotina dos passeios das famílias moradoras e da população que passa a visitar a avenida e o seu parque (12) como uma área de laser da cidade. Aliás, a avenida se tornou uma área para se visitar e de onde quase toda a cidade podia ser vista,
“e a Avenida Paulista, em especial nas cercanias do Belvedere, é o topo por excelência do espaço urbano, de onde se podem observar desde as colinas centrais adjacentes, que compõem o corpo básico da urbe, até as várzeas mais distantes do Tietê, Tamanduateí e Pinheiros, que cercam a cidade fazendo com que ela pareça uma ilha, com sua moldura de águas lodosas, ponteada de casebres humildes por toda a extensão” (13).
Cabe lembrar que a essa época o centro de São Paulo está sendo remodelado através da implantação de dois importantes espaços públicos – os parques do Anhangabaú e Dom Pedro, e junto com estes, a avenida foi alçada ao restrito grupo de espaços públicos com status de ‘cartão-postal’ graças a investimentos públicos. “Tem-se aí, pois, um tempo e um espaço que primam pela alta distinção, o que adiciona uma deliberada ressonância simbólica”, confirma Sevcenko (14).
Ressonância simbólica percebida e nutrida até os dias de hoje. Mesmo que em alguns momentos tenha enfrentado a concorrência de outros espaços públicos como novos centros ou áreas de prestígio, a Avenida Paulista mereceu constantes e sempre inéditos projeto de reurbanização, gestão e manutenção. Sempre reforçando a representação de prestígio da avenida, e mesmo que exigindo o seu rearranjo em novas espacialidades. Não existem mais “o belvedere e o edifício de dois níveis, com salão de chá e restaurante, foram palco de festas, banquetes, homenagens políticas, bailes de carnaval e festas de fim de anos nas décadas de 20 ao final dos anos 30” (15), mas o Masp ocupou o terreno com destacado arrojo. Arrojo que inspirou outros tantos edifícios erguidos ao longo da avenida, que passou a acolher sedes de bancos e instituições culturais.
Desde o sacrifício de árvores mantidas por décadas, a retirada dos ultrapassados bondes, o alargamento da avenida de modo a acomodar muitos mais automóveis, a implantação de pistas enterradas e complexo de viadutos, a Avenida Paulista construiu e reconstrói diversas espacialidades de “excepcionalidade”. Espacialidades construídas ideologicamente que, como ensina Villaça (16), são alimentadas pelo processo de segregação socioespacial que a metrópole apresenta.
Mas quando o metrô passa a atrair e a trazer milhares pessoas por hora em suas calçadas (17), graças a integração ao trem metropolitano, a Avenida Paulista torna-se um espaço acessível a muitas mais pessoas. Conectada aos quatro cantos da metrópole, como garantir sua excepcionalidade? Ou, como manter uma excepcionalidade para poucos?
Como se constrói uma espacialidade excepcional
Há cem anos, quando da abertura da Avenida Paulista, a experiência de um mundo em transformação vivida pelas elites paulistanas pode não ter sido suficiente para libertá-las de valores do passado. A expressão da arquitetura das mansões ou a regulação de seu uso refletem essa resistência à modernização, que vem sendo tentada, mas o refluxo de antigos valores sempre reaparece. A Avenida Paulista “representaria o coroamento geográfico da ascensão de alguns poucos estrangeiros: seria de imigrantes a maior parte dos palacetes erguidos na mais alta das avenidas paulistanas e não, como se crê costumeiramente, dos barões do café” (18). Falava-se (aliás, até hoje) de Barões do Café em plena República e o ecletismo da arquitetura revelava as nacionalidades de novos comerciantes e industriais que efetivamente ocuparam os terrenos e mansões da avenida. Curioso, portanto constatar que mesmo que tenham sido construídos em tempos republicanos, os casarões da Avenida Paulista procuravam manter elos com um passado que nem ao menos remontava a história vivida (19).
Recorrendo a Berman podemos encontrar uma explicação para essas tensões já seculares, constituídas na arquitetura da avenida: “ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. Os ambientes e experiências modernos cruzam todas as fronteiras da geografia e da etnicidade, da classe e da nacionalidade, toda a humanidade” (20). Enquanto para esse autor o público se multiplica, fragmenta e como um caleidoscópio assume múltiplas formas e sentidos; na Avenida Paulista, cada vez que as múltiplas formas e sentidos se tornam evidentes, ressurgem ‘projetos’, intervenções, normativas que reafirmam as fronteiras do espaço diferenciado. Ou seja, projetos de caráter modernizante, mas que não lhe conferem modernidade. Alguns exemplos apoiam esse argumento, uma vez que, ao longo de sua história, não foram poucos os investimentos feitos na avenida para reforçar sua representação de área de prestígio. Aliás, aparentemente tal prestígio se reverteu em uma valorização imobiliária perene, ainda que nem sempre como área hegemônica na cidade, já que a partir dos anos 1980 surgiram outras localizações que passam a competir com a Paulista como a dos mais altos valores de custo do terreno. Mas, sempre foram significativas as transformações de sua materialidade, como patrimônio imobiliário de valor arquitetônico e significado urbanístico, como investimentos públicos que merecem destaque.
Já a partir dos anos 1940, a Paulista foi palco de uma dinâmica imobiliária orientada pela renovação dos edifícios residenciais, agora então verticalizados, e pela e substituição dos casarões por conjuntos de atividades comerciais e de serviços. A partir daí, esse processo correspondeu a uma dinâmica mais complexa de reconfiguração da cidade em metrópole e de estruturação de sua centralidade. “Nessa mesma década (1950), quando estava em plena exuberância a Cinelândia, os restaurantes, os hotéis e o comércio instalados no Centro Novo, quando a mudança da sede do governo para os Campos Elísios atraía para suas proximidades outras repartições públicas, o comércio de luxo começa a se deslocar do Centro Novo em direção à região da Paulista e Jardins” (21).
Na passagem dos anos 1960 para os 1970, o projeto Nova Paulista será exemplo do processo de adaptação das infraestruturas viárias aliado ao de intensificação da motorização da população, estratégia que apostava na ampliação das classes médias e na mudança dos seus padrões de consumo. Os investimentos públicos na Nova Paulista refletiram o período do Milagre Brasileiro e foram acompanhados pela a instalação das instituições representativas do poder econômico financeiro e industrial. O projeto abrangia a construção de pistas subterrâneas, com características de via expressa, submersas e semicoberta pelas pistas locais, o que manteriam as características de bulevar – ajardinamento, mobiliário urbano – a Avenida Paulista. O projeto, que já previa o traçado de uma linha de metrô, cuja construção estava sendo iniciada, conferiu uma condição excepcional de acessibilidade à região dado seu traçado perimetral que interliga bairros de alto padrão (Jardins, Pacaembu, Higienópolis), beneficiando a grande parte de seus usuários de alta renda (22).
Ainda que esse projeto previsse a articulação de vários fluxos e escalas de apropriação – o tráfego de passagem, os deslocamentos locais, o metrô - é principalmente o fluxo de automóveis que estaria sendo privilegiado. Não fosse a interrupção das obras (23), o alargamento das calçadas que hoje conhecemos não teria sido garantido. A implantação da linha de Metrô cujo projeto já estava definido em 1980 só tem seu primeiro trecho (Paraíso – Consolação) entregue dez anos depois.
Quando de seu centenário, as festividades incluíram uma estratégia publicitária de produção de uma ‘referência simbólica’ para a cidade. Campanha poderosa, que até hoje continua a surtir efeito. A campanha “Eleja São Paulo” foi patrocinada pelo Banco Itaú (24), que se destacava pelo expressivo número de agências ao longo da Avenida. A Paulista obviamente foi a vencedora da campanha, desbancando outros espaços públicos e referências da cidade, como o Vale do Anhangabaú, o Viaduto do Chá ou o Parque do Ibirapuera. A ostensiva campanha de identificar a Avenida Paulista, então como ‘novo centro da cidade’, como o centro das minorias, seria segundo Villaça (25) uma estratégia ideológica, reforçando o movimento da burguesia de abandonar o centro, que então passa a ser a representação e espacialidade do “antigo”, “decadente”, “deteriorado”.
Identificar a Paulista como o “verdadeiro centro” – moderno e dinâmico – reafirmava sua condição de excepcionalidade, em relação às novas centralidades emergentes, e ao mesmo tempo, ajudava a disputar investimentos com o ‘centro velho’, cuja apropriação passava a ser predominantemente das classes populares, e recebia atenção da gestão municipal para a sua recuperação (26). Conservação das calçadas, restrição a ambulantes e mendigos eram itens da pauta de reivindicações dos defensores do Novo Centro, alegando que essas eram as características irremediáveis no Centro Velho, mas inadmissíveis na Paulista.
Assim, a Avenida Paulista tornava-se a espacialização de multiplicidades e dinamismos simultâneos que se tornam conflituosos por disputarem os mesmos espaços e que passam a demonstrar como o projeto daquele símbolo não dá conta dos diversos significados sociais que agora se revelam na Paulista. Ou, olhando por outro lado, a ampliação da acessibilidade que os transportes de massa de alta capacidade conferiram à Avenida Paulista pode ser capaz de se contrapor à estratégica de construção de sua excepcional espacialidade, pois amplia seus atributos de espaço público. E assim, torna-se ainda mais disputada. As elites não abrem mão de sua excepcionalidade...
O ajuste entre o símbolo e a realidade
O que era “apenas” símbolo de São Paulo vem agora ganhando representação real, em diferentes formas de apropriação de seus espaços, calçadas, lojas e restaurantes populares, nos fluxos cotidianos, nos passeios de fim de semana ou nos roteiros de turistas. Podemos dizer que a Avenida Paulista vem-se constituindo numa espacialidade de mobilidades múltiplas, territórios diversificados pelos diferentes ritmos e compassos de apropriação, conforme se estabelecem interfaces e conexões entre pessoas e os espaços.
Abrahão (27) vê que a opção do automóvel como principal meio de transporte urbano vem comprometendo a qualidade dos espaços públicos paulistanos e sugere que esse processo será irreversível enquanto persistir a idéia da cidade como ‘máquina de mobilidade’. O exemplo da Avenida Paulista – agora provida da excepcional acessibilidade que os transportes públicos de massa oferecem - parece responder a essa afirmação, apontando para uma ressignificação dos seus espaços públicos e das relações entre os cidadãos e suas experiências de mobilidade e espacialidade, pois nela se revelam os “atributos fundadores do conceito abrangente de espaço público, como por exemplo, espaço de permanência e espaço de convivência” (28).
Os conflitos e tensões entre grandes princípios espaciais, que segundo Lussault (29) caracterizam as sociedades contemporâneas, seriam devidos a suas normas e regulações, práticas e tecnologias, e a seus conteúdos ideológicos, e mais do que contrapostos, seriam articulados e alimentam-se mutualmente. Assim, as condições de deslocamento através da Avenida Paulista estariam potencializadas pelas múltiplas possibilidades de articulação e conectividade dadas pelo seu traçado viário – uma ligação perimetral, que articula diversas vias radiais estruturantes do setor central metrópole – e pelo tramo de metrô, igualmente articulador de linhas radiais.
No alto do Espigão Central, a Avenida Paulista tem sua geografia também apropriada por antenas de telecomunicação e por inúmeros helipontos. Ou seja, sob o primado topológico e tecnológico, caracteriza-se nela o princípio da coespacialidade, e a disputa pelo espaço por diversas utilidades que se sucedem hora a hora, dia a dia – nos dias laborais, nos fins de semana – seja pelos moradores, pela população que lá encontra trabalho; seja pelos visitantes, turistas; seja pela população atraída pelo espaço público e político de passeios e passeatas; de comemorações ou festas, de manifestações ou protestos.
No mais, largas, planas e aprazíveis calçadas transformam qualquer neurótico urbanoide da metrópole que não pode parar em um convicto flanêur. Múltiplas formas de apropriação são alimentadas por manifestações, exposições, práticas e fazeres, institucionalizados ou espontâneos, que se combina em diversas espacialidades e mobilidades. Ingênuos artezãos, artistas populares, atores e músicos iniciantes, ou artistas performáticos disputam com camelôs, trombadinhas e intrépidos esqueitistas os espaços das calçadas, recuos e átrios de edifícios.
Esses mesmos espaços ou alguns degraus, jardineiras e escadarias fazem as vezes de arquibancada, acomodando a platéia, que se mistura com aqueles que caminham, pedalam, correm, ou se deixam ir em velocidades distintas conforme seus motivos e cadencias. As calçadas conforme o ritmo do tempo acolhem mesas e cadeiras, e se transformam em cafés, bares, salas de música ou salões de forró.
Cadencias da vida cotidiana e normatização do espaço e da mobilidade
Como nos ensina Frehse (30) com o advento da modernidade puderam ser observadas mudanças nas regras de conduta dos pedestres na rua do centro de São Paulo e que estas mudanças ajudam a compreender os efeitos das transformações vividas na cidade. Considerando as transformações havidas na Avenida Paulista, por mais que seu espaço tenha sido normatizado e privilegiado – das regras urbanísticas às estratégias ideológicas de representação simbólica – a multiplicidade agora vivida pela modernidade da metrópole não mais lhe correspondia.
As cadências dos corsos dos carnavais dos anos 1930, do footing dos finais de semana dos anos 1960, das Corridas de São Silvestre a partir de 1966, ou dos territórios da contracultura dos anos 1970, corroboram a gestão de normativas da excepcionalidade – liberalidade para com formas de apropriação popular da avenida que acentuam seus predicados únicos. Até mesmo a ocupação feita por 10 mil torcedores do time de futebol Corinthians em 1977 pode ser computada também como mais uma excepcionalidade da avenida que a partir de então será buscada como local de eventuais comemorações populares. No final dos anos 1980 esse quadro se transforma, mas novas regras de conduta vão ser buscadas no âmbito das normas de trânsito: em 1989 as passeatas são proibidas na Avenida, em 1996 apenas atos cívicos são permitidos.
Podemos perceber então que a despeito de suas normativas, simbologias, instituições, projetos, gestões e calendários são suas múltiplas apropriações que lhe caracterizam - a Avenida Paulista passa a ser a espacialização de conflitos das múltiplas mobilidades que suscita e espelhando a contradição de uma metrópole desigual e dual, onde seu centro (o lugar de todos) não se pretende ser acessível a todos.
Frúgoli Jr. destaca que na Avenida Paulista importantes grupos empresariais buscam manter os benefícios de infraestrutura e equipamentos urbanos, perpetuando a alegação da excepcionalidade e da necessidade estratégica de sua manutenção como espaço de excelência na metrópole (sic). Para tanto a organização Paulista Viva, se empenha em expulsar camelôs e apoiar a vigilância das calçadas com segurança privada (31). Certamente essa norma – a privatização do espaço público por meio de segurança privada parece refletir o clima de conflitos que tiveram a Avenida Paulista como palco. Mas não apenas as calçadas seriam objeto de disputa.
Além de símbolo, a Avenida Paulista implicava a intensificação das atividades terciárias o que repercutia na atração cada vez maior de população e fluxos de pessoas, demanda muito além da capacidade do trecho de metrô ali implantado ou da infraestrutura para circulação do transporte individual. O volume crescente de ônibus que circulavam pela Avenida Paulista indicava a implantação de faixas exclusivas para melhoraria do tráfego, mas para a Paulista Viva os ônibus representavam fatores da degradação ambiental. Imediatamente, a administração pública atua no sentido contrário, reduzindo em mais da metade o número de ônibus em circulação, o que certamente atingiu a população de menor poder aquisitivo (32).
Ou seja, o espaço de excelência que estava sendo construído na Avenida Paulista não se caracterizava como um espaço acessível. Segundo Lussault (33) o espaço constitui o conjunto dos fenômenos que exprimem a regulação social sobre distâncias - o conjunto dos usos do espaço por agentes sociais. Sendo assim, a Avenida Paulista parece representar uma metrópole que não compreende a mobilidade como condição de cidadania. Essa contradição ficará evidenciada quando a linha de metrô, que percorre os subterrâneos da Avenida Paulista, foi finalmente conectada ao resto da metrópole, fazendo parte de uma rede (discreta, é verdade) de transporte de massa, mas que permite que mais de 500 mil de pessoas atravessem os portais das estações de metrô (34), que com muita excelência marcam a paisagem da Paulista.
A partir daí alguns episódios atestam a condição da Avenida Paulista como um espaço político, entendido como uma reconfiguração ativa feita através de práticas e relações de uma enorme quantidade de trajetórias e cadências vividas. O sentido da regulação do uso do espaço público não escamoteia os processos de disputa que contem. E novos pactos deverão ser ainda praticados para manter a singularidade da Avenida Paulista.
notas
1
FRUGOLI JR, Heitor. As atividades culturais no eixo da Avenida Paulista. São Paulo, EAESP/FGV/NPP – Núcleo de Pesquisas e Publicações, 1995, p. 4-5.
2
Termo de ajustamento de conduta estabelecido em 2007 pelo Ministério Público Estadual, Prefeitura e Polícia Militar para que as manifestações populares garantam ao menos uma das faixas de circulação desimpedidas.
3
SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
4
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 1999.
5
TOLEDO, Benedito Lima. A segunda fundação da cidade. In: CAMPOS, Candido Malta; GAMA, Lúcia Helena; SACCHETTA, Vladimir. (Orgs.). São Paulo, metrópole em trânsito: percursos urbanos e culturais, p. 52-61. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004, p. 56.
6
Segundo A. de Almeida Prado, 1896-1900. Apud TOLEDO, Benedito Lima. Op.cit., p. 57.
7
Talvez o mais recente e especial tratamento que a Avenida tenha merecido seja em relação ao projeto de implantação de uma ciclovia com menos de 4 km, e que faz parte de um projeto de implantação de cerca de 400 km de vias que já vem recebendo tratamento e sinalização adequados. Apenas, quando anunciado o projeto para a Avenida Paulista, a Comissão de Política Urbana da Câmara Municipal de São Paulo manifestou-se, propondo uma audiência pública para discutir o projeto como um todo e, em especial, a ciclovia na Avenida Paulista, conforme publicado no jornal O Estado de São Paulo, na edição de 11 de setembro de 2014.
8
Segundo o Diário Popular, 11 maio 1891. Apud OLIVEIRA, Marcelo A. N. Avenida Paulista: a produção contemporânea de uma paisagem de poder. Dissertação de Mestrado. Campinas, Departamento de Antropologia Social da Unicamp, 1998.
9
As linhas 2 Verde (Vila Madalena– Vila Prudente) e 4 Amarela (Butantã – Luz) conectam entre si e articulam-se às linhas 1 Azul do sistema Metrô e às linhas do Trem Metropolitano (CPTM) – Esmeralda (Osasco – Grajaú), Turquesa (Brás - Rio Grande da Serra), Rubi (Jundiaí – Luz) e Coral (Barra Funda – Estudantes), estendendo seu atendimento a vários setores da metrópole.
10
OLIVEIRA, Marcelo A. N. Op. cit., p. 84.
11
ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei – legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo, Nobel, 1997, p.112.
12
O Parque da Avenida, depois Parque Pilon, Parque Trianon e hoje Parque Siqueira Campos.
13
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo, Cia. das Letras, 1992, p. 28.
14
Idem, ibidem.
15
LIMENA, Maria Margarida Cavalcanti. A crise das cidades contemporâneas – desafios do futuro. São Paulo em perspectiva. Revista Seade, São Paulo, v. 10, n. 4, out. 1996, p. 56.
16
VILLAÇA, Flávio. O espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/Lincoln Institute, 1998, p. 343-352.
17
Em 2013 foi registrado um volume médio diário de entrada de 134 mil passageiros na Estação Consolação. Só na linha 3 – Verde, foram mais de 510 mil passageiros. Fonte: www.metro.sp.gov.br.
18
MARINS, Paulo Cesar Garcez. Tensões sociais na gestão da metrópole. In: CAMPOS, Candido Malta; GAMA, Lúcia Helena; SACCHETTA, Vladimir. (Orgs.). Op. cit., p. 66.
19
CAMARGOS, Márcia. Entre a província e a metrópole: arte e cultura. In: CAMPOS, Candido Malta; GAMA, Lúcia Helena; SACCHETTA, Vladimir. (Orgs.). Op. cit., p. 97.
20
BERMAN, Marshall. Tudo que e sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo, Cia. das Letras, 1986, p. 15.
21
FELDMAN, Sarah. A configuração espacial da metrópole. In: CAMPOS, Candido Malta; GAMA, Lúcia Helena; SACCHETTA, Vladimir. (Orgs.). Op. cit., p. 124.
22
VILLAÇA, Flávio. Elites, desigualdade e poder municipal. In: CAMPOS, Candido Malta; GAMA, Lúcia Helena; SACCHETTA, Vladimir. (Orgs.). Op. cit., p. 150.
23
Decidida durante a gestão do prefeito Figueiredo Ferraz (1970-1973).
24
O Banco Itaú à época ostentava sua logomarca num grande e visível espaço – o relógio digital no alto do Conjunto Nacional, junto a um dos mais movimentados trechos da avenida.
25
VILLAÇA, Flávio. O espaço intra-urbano no Brasil (op. cit.), p. 343-352.
26
Gestão da prefeita Luísa Erundina, entre 1989 e 1992.
27
ABRAHÃO, Sergio. Espaço público na São Paulo .+.+++do século XXI: perspectivas. Arq.Urb, São Paulo, n. 6, Universidade São Judas Tadeu, 2011, p. 77.
28
Idem, ibidem, p. 78.
29
LUSSAULT, Michel. De La lutte de classes à La lutte des places. Paris, Bernard Grasset, 2009, p. 214-215.
30
FREHSE, Fraya. Ô da Rua! O transeunte e o advento da modernidade em São Paulo. São Paulo, Edusp, 2011.
31
Conforme Setúbal, Thiele e Magalhães Jr. Apud FRÚGOLI JR, Heitor. A questão da centralidade em São Paulo: o papel das associações de caráter empresarial. Revista de Sociologia e Política, n. 16, São Paulo, jun. 2001, p. 51-66.
32
Idem, ibidem.
33
LUSSAULT, Michel. Op. cit., p. 20.
34
Estações Brigadeiro, Trianon e Consolação.
sobre as autoras
Silvana Zioni é arquiteta e urbanista, mestre em Estruturas Espaciais Urbanas e doutora em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto da Universidade Federal do ABC. É docente do Curso de Engenharia Ambiental e Urbana, dos Bacharelados em Políticas Públicas e Planejamento Territorial, e do Programa de Mestrado em Planejamento e Gestão do Território da UFABC.
Volia Regina Costa Kato é draduada em Ciências Sociais e mestre em Ciência Política pela USP, é doutora em Arquitetura e Urbanismo pela FAU Mackenzie. Professor adjunto da Universidade Presbiteriana Mackenzie. É pesquisadora nas temáticas interdisciplinares envolvendo o campo das Ciências Sociais e as intersecções entre Arquitetura e Urbanismo, Sociologia Urbana, Cultura e Cidade.