A arquitetura dos jesuítas, o modo nostro
A arquitetura produzida pelos padres da Companhia de Jesus, uma ordem religiosa de caráter universal, também integra o processo de conquista e colonização empreendido pelos espanhóis a partir dos descobrimentos da América. Tanto em áreas urbanas, com suas grandes e decoradas igrejas localizadas nos quarteirões jesuíticos, quanto nos povoados de índios, onde se mesclavam influências culturais locais e europeias, essas realizações, com personalidade própria, destacavam-se.
Os jesuítas, desde o início de sua ação missionária itinerante, exerciam, em diferentes continentes e, ao mesmo tempo, distintos papéis: o de contratantes ou executores para suas igrejas, geralmente construídas ex-novo, ou o de usuários para colégios, noviciados ou residências que, às vezes, eram instalados em edificações recebidas por doação (1).
As primeiras orientações para os temas edilícios foram expressas pelo fundador dessa congregação religiosa, Ignácio de Loyola, orientando que as igrejas atendessem, o tom modesto e severo, característico do espírito da ordem, tanto na estrutura quanto na decoração, com austeridade e simplicidade, sem luxo ou distração. Ele também defendia a construção de igrejas de nave única, porque essas permitiam uma maior concentração dos fiéis nas celebrações litúrgicas (2).
Dentre as deliberações do Concílio de Trento (1545-1563) encontram-se diretrizes para o novo rito das celebrações católicas e, como decorrência, considerações sobre os espaços e instrumentos utilizados. As orientações sobre aspectos da arquitetura eclesiástica foram sintetizadas posteriormente pelo cardeal Carlo Borromeo, que organizou diretrizes de acordo com a função das edificações: as destinadas ao culto de Deus, o lugar do rito, domus Dei, ou aquelas destinadas ao uso dos homens, as residências e os colégios, onde os jesuítas viviam e ensinavam. O documento foi denominado Instructiones Fabricae et Supellectilis Ecclesiasticae (1577) e se destinava inicialmente à arquidiocese de Milão, mas, por sua grande aceitação, passou a ser reproduzido e adaptado amplamente por toda a Igreja Católica (3).
Como decorrência das decisões de Trento, os jesuítas definiram que qualquer proposta de edificação deveria ser aprovada pelo superior geral, a quem competiria definir o modo nostro de construir (4). Em 1565, foi aprovada a obrigação de todos os projetos serem submetidos à homologação e uma circular de 1566 estabelecia que a construção de qualquer edifício relevante devesse ser previamente aprovada em Roma, evitando-se edificações pouco duráveis e sem projeto.
Os princípios gerais referentes às construções jesuíticas foram registrados na Instructio de ratione aedificiorum Societatis Iesu, de 1558, instrução que passou a regrar todas as construções da Ordem (5). Para a construção das residências, foi aprovada a Ratio Domiciliorum, que não aconselhava um modelo único de edificação, mas determinava que se fizesse, para cada lugar e para cada casa, a planta mais adequada (6).
Com a expansão dos jesuítas ao redor do mundo, a solução adotada para orientar, de maneira centralizada e homogênea os projetos de edificação, assim como para avaliar propostas de doação de imóveis, foi a criação, em 1558, do cargo do consiliarius aedificorum, o conselheiro de construções. O cargo era ocupado por um arquiteto interno que definia um mecanismo centralizado, através do qual os padres da ordem, como contratantes ou executores, conseguiam difundir, em todas as suas províncias ao redor do mundo, o modo próprio de fazer arquitetura (7).
Uma das estratégias utilizadas inicialmente para facilitar os longos trâmites decorrentes das distâncias entre as províncias foi a definição, em Roma, de planos-tipos ou plantas comuns, principalmente de igrejas, que eram enviadas às províncias para utilização ou adaptação, sempre acompanhadas por instruções de uso (8).
Entre os primeiros conselheiros de construções estavam o irmão coadjutor e arquiteto Giovanni Tristano, o arquiteto Giuseppe Valeriano e, posteriormente, os professores matemáticos do Colégio Romano, Giovanni De Rosis e Orácio Grassi. A continuidade de suas orientações e diretrizes resultou na definição de tipologias de edificações que passaram a caracterizar a arquitetura jesuítica, o chamado modo nostro de construção.
As primeiras edificações construídas pelos jesuítas na Europa se localizavam em áreas urbanas consolidadas e seus programas arquitetônicos estavam relacionados principalmente a igrejas, colégios ou casas professas. As soluções tipológicas adotadas também correspondiam aos novos preceitos estilísticos da arquitetura “a la moderna” como se denominavam as obras que utilizavam a linguagem clássica que, bem depois, veio a ser chamada de Renascimento.
As etapas de desenvolvimento da arquitetura jesuítica (9), principalmente a italiana e a europeia, podem ser divididas em três períodos: o primeiro, no século 16, caracterizado por utilizar tipologias e estruturas decorativas muito simplificadas, austeras e funcionais (10); um segundo momento, nos séculos 16 e 17, com a fundação de importantes sedes caracterizadas tipologicamente pelos conjuntos de igrejas – colégios; e o terceiro, em meados do século 17 e início do 18, que se caracterizava mais pela complementação de edifícios existentes do que pelas novas construções, com execução de altares monumentais de influência barroca, com pinturas, esculturas e profusa decoração (11).
Entre as obras emblemáticas que foram utilizadas como referências na formulação inicial da arquitetura da Companhia, estão a Capela da Anunciação, primeira igreja jesuítica construída em Roma, como a igreja de Santo Ignácio e o Colégio Romano (12). No entanto, na história da arquitetura dos jesuítas, o principal marco referencial é a Igreja de Gesù, a igreja mãe, em Roma, sempre mencionada como arquétipo para muitas das edificações da ordem. Foi uma obra que levou décadas para ser executada e envolveu seis arquitetos: Giovanni Di Bartolomeo Lippi, Michelangelo Buonarotti, Jacopo Barozzi da Vignola, Giacomo Della Porta e os conselheiros jesuítas Giovanni Tristano e Giovanni De Rosis.
Dentre os referenciais teóricos utilizados na produção da arquitetura jesuítica ao redor do mundo estão o tratado De Architectura de Marcus Vitruvio Polione (1490) e as obras dos italianos Giacomo Vignola (1562), Andrea Palladio (1570), Sebastiano Serlio (1537-1451), Danielle Barbaro (1569) e Pietro Cataneo (1554) (13). Vitruvio, sem dúvida, por sua importância precursora como responsável pela geração de diversos tratados especializados produzidos no período e o Tratado de Vignola Regra das cinco ordens de arquitetura, implícito e explícito em muitas cartas e orientações enviadas aos padres (14).
A vasta produção arquitetônica dos jesuítas ao longo do tempo propiciou uma grande discussão sobre sua natureza, em que visões internas e externas à ordem religiosa, eventualmente contraditórias, buscaram responder sobre a existência de um “estilo jesuítico”. Essa polêmica envolveu um conjunto de autores, principalmente europeus, em meados do século 20, e baseou-se numa definição da segunda metade do século 19, de matriz alemã, que sustentou a existência de um estilo jesuítico, o Jesuitenstil, definido como sendo uma degeneração do estilo da Renascença, “caraterizado pela abundância, busca de efeitos e vazio de pompa”, sendo adotado a partir do século 17 na construção das suas igrejas (15). Em 1907, o jesuíta alemão Joseph Braun destruiu o mito da existência de um estilo distintivo jesuítico, em seu estudo sobre as igrejas da Companhia na Bélgica, Alemanha e Espanha (16).
No Brasil, um dos precursores a entrar nessa discussão foi Lúcio Costa quando tratou de caracterizar o conceito de arte jesuítica. Para ele, não seria correto tentar abranger, em um único termo, uma infinidade de realizações produzidas por essa ordem em matéria de arte religiosa, em diferentes países, ao longo de quase dois séculos (17 e 18) a realizações que se manifestaram “de acordo com as conveniências locais e apresentaram características estilísticas próprias, em cada lugar”. Avaliando a arquitetura jesuítica no Brasil, ele definiu que o programa das construções jesuíticas era relativamente simples, dividindo-se em três partes, sendo que cada uma delas correspondia a uma função específica: para o culto, a igreja; para o projeto, o colégio e as oficinas; para a moradia, os cubículos, a enfermaria e outras dependências de serviço, além da horta (17).
Estudos posteriores trataram de entender e descrever o processo de produção de elementos arquitetônicos isolados na produção jesuítica, buscando identificar suas filiações formais a determinados referenciais tipológicos emblemáticos, como é o caso da Igreja de Gesù de Roma. Depois de profundas reflexões sobre a questão estilística, baseadas na documentação histórica, a conclusão a que chegaram foi da inexistência de um estilo jesuítico, mas de uma tipologia arquitetônica própria.
Independentemente de estilo, os jesuítas afirmavam sua imagem a partir da estratégia de demarcar o território, nas principais cidades do mundo, em praças centrais, nos cruzamentos de ruas ou em sítios proeminentes, construindo marcos referenciais reconhecíveis como pertencentes ao denominado modo nostro de edificar (18).
Arquitetura nas reduções da Paraquária: o modo crioulo
Enquanto na Europa os jesuítas procuravam consolidar uma imagem arquitetônica para os equipamentos necessários ao seu modo peculiar de proceder e de evangelizar, os missionários nas Índias Ocidentais, assim como nas Orientais, apesar de estarem submetidos às mesmas orientações gerais encontravam-se imersos em realidades culturais e ambientais muito diversas, nas quais necessitavam criar novas estratégias para viabilizar o cumprimento de sua missão de congregação e conversão dos povos nativos.
No Novo Mundo, surgiram situações imprevisíveis, que impuseram, aos religiosos, desafios de adaptação para a própria sobrevivência e para o atendimento às orientações definidas pelas diversas instâncias administrativas às quais estavam subordinados. Tais instâncias envolviam a coroa, a Igreja Católica e a própria ordem religiosa, em uma sucessão hierárquica triangulada entre Roma, Madri e suas diversas províncias do Continente Americano.
Em âmbito regional, construíam igrejas, colégios e residências paroquiais nos quarteirões jesuíticos de cidades coloniais como Buenos Aires, Assunção ou Córdoba, que integravam a “república dos espanhóis”. Nas cidades, na medida do possível, reproduziam-se as tipologias arquitetônicas básicas propostas pela administração central da ordem, sendo semelhante o seu processo de produção, com utilização de arquitetos internos ou convidados e aquisição de materiais de construção no mercado.
Na “república dos índios”, nos novos assentamentos implantados no campo, o contexto era totalmente outro: o isolamento e a inexistência de comércio de materiais determinavam, como única alternativa, extrair e transformar a matéria-prima do ambiente. Nas reduções ou doutrinas as duplas de companheiros tinham de prover estruturas para abrigar, sustentar e defender populações relativamente extensas, em quantidades que nem os nativos, nem os jesuítas, estavam acostumados a lidar.
Para coordenar a execução desses programas arquitetônicos extensos, estavam os irmãos que tratavam dos aspectos temporais que, ocasionalmente, também eram arquitetos ou utilizavam como referência os manuais e tratados de arquitetura enviados da Europa pelos superiores. Na execução das obras, sempre estavam os Guarani, que contribuíam com o conhecimento do habitat para a identificação e extração de matérias primas ou através da adoção de seus sistemas construtivos tradicionais.
Além dos povoados, também foram organizados outros programas arquitetônicos que não estavam previstos nas diretrizes iniciais, os quais também acabaram constituindo tipologias próprias: as estâncias para criação de gado, o sistema de obrajes para a produção da indústria artesanal indígena, os postos de vigia para os campos e ervais, assim como outras obras de engenharia tais como estradas, pontes, portos e sistemas hídricos com fontes, tanques, cisternas, açudes, barragens e canalizações entre outros.
A maneira local de aplicar e adaptar, na prática, as normas, as referências e as influências espaciais na implementação dos ordenamentos urbanos e da arquitetura, apresenta-se como um processo que acabou gerando tipologias peculiares e que pode ser definido como o “modo crioulo” de proceder.
Evolução arquitetônica
Para entender a arquitetura do sistema social missioneiro, é fundamental identificar as características da organização espacial dos Guarani e de sua arquitetura tradicional. Eles costumavam construir suas moradias em clareiras naturais ou abertas na mata onde implantavam suas aldeias, o amundá, que integravam um conjunto de aldeias, o teko'á. Um único sistema construtivo era utilizado na execução das “casas grandes” das “famílias extensas”, com diferentes dimensões, onde viviam, em conjunto, várias células familiares (19).
As casas eram construídas por uma sucessão de varas cravadas no solo, curvadas e unidas nas pontas superiores e depois cobertas com fibras vegetais. Eram casas alongadas, com aberturas laterais ou nas extremidades, sem divisões internas, sustentadas por esteios de madeira, onde se penduravam as redes de dormir.
As construções nos primeiros assentamentos jesuíticos, em tempos de conquista e adaptação, tiveram caráter precário. Seus povoados foram alvo de sucessivos ataques de bandeirantes ou “mamelucos”, como eram denominados pelos indígenas, sendo abandonados e as populações trasladadas para locais mais seguros.
As características da arquitetura no primeiro período correspondem basicamente ao modo de construir dos indígenas, com a utilização de madeira nas estruturas e fibras vegetais nas coberturas e vedações, materiais de fácil combustão. Eram choças confeccionadas com uma trama de varas flexíveis cravadas no solo em duas fileiras separadas entre si, unidas nas extremidades e cobertas por folhas de palmeiras trançadas (20). Essas estruturas encurvadas de “parede-cobertura” eram utilizadas tanto nas moradias dos padres e dos índios, como para a construção dos primeiros templos (21). Uma tecnologia de tradição ancestral em que cada elemento tinha um sentido mítico, o conceito de og-jecutú ou “casa cravada” (22). Dessa primeira etapa, devido à fragilidade dos materiais, restaram apenas referências nas descrições históricas.
No segundo momento, quando os povoados adquiriram caráter mais estável, a arquitetura começou a incorporar, pouco a pouco, alguns componentes de sistemas construtivos europeus trazidos pelos jesuítas. Eram estruturas autoportantes de madeira, sistemas de caibros armados, em duas águas, cobertos por telhados cerâmicos, onde as paredes, vedações de adobe, tijolos ou pedras, eram colocadas posteriormente. Os apoios verticais eram feitos por troncos de árvores arrancadas com parte de suas raízes, chamuscadas para evitar umidade, e enterradas em buracos revestidos com pedras. A arquitetura e o sistema construtivo utilizados no segundo período é o que caracteriza especialmente a tipologia arquitetônica missioneira, sendo recorrente no conjunto dos Trinta Povos da Paracuaria (23).
Esse sistema construtivo também foi utilizado pelos jesuítas nas reduções do Oriente Boliviano, com grupos de Moxos e Chiquitos.
Esse sistema construtivo era aplicado tanto nas casas dos índios, formadas pelos longos pavilhões retangulares, como em outras edificações, tais como igreja, casas dos padres, oficinas, etc., geralmente circundadas por alpendres. Nas reduções, as tradicionais “casas grandes” das aldeias Guarani passaram a ser subdivididas, internamente, nos novos pavilhões de habitação coletiva (24).
As igrejas missioneiras da segunda etapa tinham planta retangular, geralmente com telhado longitudinal em duas águas, que avança, ultrapassando o alinhamento da fachada frontal, formando um adro ou pórtico coberto, geralmente apoiado sobre pilares de pedra ou esteios de madeira entalhada.
No alpendre frontal, eram realizadas atividades religiosas e encenações sacras. Em um dos lados das igrejas, localizava-se a torre sineira, ou campanário, com estrutura independente, de madeira, geralmente colocada no pátio dos padres.
As paredes eram construídas com alvenaria de pedras, de adobe ou em técnica mista, rebocadas e pintadas em branco, cobertas por profusas pinturas murais representando frisos, faixas e ornamentos que marcavam os vãos. As pinturas também tinham motivos e símbolos religiosos ou de referenciais locais. A decoração interna era complementada por pinturas em telas e esculturas geralmente de santos, colocadas nos retábulos e altares. Dentre os ornamentos utilizados, também estavam representados símbolos da coroa espanhola, que reafirmavam a vinculação ao regime de Patronato Real.
A um lado da igreja, localizava-se o primeiro pátio, o pátio doméstico ou claustro, com acesso direto à igreja e à praça, destinado a atender a residência dos padres e a sala onde eram ensinados os filhos dos caciques, o colégio. Ele se ligava ao segundo pátio, onde se localizavam as oficinas dos artífices e os depósitos, atividades de produção, manutenção e abastecimento da redução (25).
A tecnologia disponível ainda não permitia a construção de cúpulas em pedra, que eram substituídas, em alguns casos, por um tambor de madeira elevado sobre o transepto, com aberturas laterais para entrada de luz. No interior, a estrutura geralmente possuía um forro de madeira em abóbada, e no exterior, a cobertura era de telhas cerâmicas.
Como evolução nesta etapa, algumas fachadas passam a utilizar altos-relevos e ornamentos figurativos em pedra, estruturas que foram classificadas como fachadas-retábulos como a de Santo Inácio Miní, na Argentina.
Além das igrejas e das residências, nesse período foram estruturados outros equipamentos para atender a novas necessidades como a casa das mulheres recolhidas (cotiguaçú) e a hospedaria (tambo), entre outros. As galerias estavam sempre presentes em quase todas as edificações dos povoados conformando alpendres externos ao redor dos pátios (26).
O terceiro período desse processo corresponde à chegada de profissionais arquitetos a partir de 1730, no apogeu econômico do sistema reducional, quando algumas edificações começaram a apresentar estruturas arquitetônicas sofisticadas, com características técnicas e estilísticas plenamente europeias. As novas estruturas passam a ser portantes, formadas por maciços em pedra, sendo introduzidas estruturas de arcos e abóbadas executados com tijolos ou pedras.
Essa novidade começou em alguns povoados, na execução das igrejas de São Miguel Arcanjo (Brasil), Santísima Trinidad del Paraná e Jesus de Tavarangue (Paraguai), substituindo as estruturas anteriores.
Em Trinidad, além da igreja, as casas dos índios localizadas no entorno da praça também passaram por transformações quando suas galerias, geralmente apoiadas em pilares de madeira ou blocos de pedra, passam a ser feitas por arcadas contínuas em pedra. A Igreja de Jesus ficou inconclusa com a expulsão dos jesuítas, sem a construção da sua cobertura.
Essas novas obras, apesar de seu porte, qualidade excepcional de fábrica e técnica, não podem ser consideradas como integrantes das tipologias arquitetônicas missioneiras que foram utilizadas no conjunto dos povoados por mais de um século, mas como arquitetura construída por profissionais europeus, nas missões, com mão de obra indígena, no período do apogeu.
Uma peculiaridade da arquitetura feita pelos jesuítas ao redor do mundo são as fachadas manifesto, onde geralmente estavam representados por pinturas, relevos ou esculturas imagens de seus fundadores ou mártires, símbolos da Ordem (como IHS, A e M sobrepostos, os três cravos), ou referências locais, com função de integração cultural.
Materiais e referências arquitetônicas
No que se refere aos materiais de construção utilizados no sistema reducional, o critério para escolha foi sua disponibilidade no ambiente próximo aos povoados. Assim, os bosques, as jazidas de pedra ou de argila existentes perto dos povoados passaram a ser fontes de matéria prima, o que condicionava as características físicas das edificações. Todas as construções utilizavam como base as madeiras, as pedras, as argilas e alguns metais extraídos de pedras.
A partir de remanescentes encontrados nas antigas reduções e em descrições de época, foram identificadas quais eram as madeiras mais utilizadas assim como sua função na arquitetura, escultura e mobiliário. Dentre elas, destacavam-se o cedro (Cedrela fissilis), o pinheiro (Araucária angustifolia), o ipê (Tabebuia heptaphylla), o louro (Nectandra Lanceolata) e a timbaúva (Enterolobium contortisiliquum) (27).
Quanto à pedra, nas edificações da região da Paracuaria, foram utilizados principalmente o arenito (botucatu) e o itacurú (laterita). O arenito era usado em muros, paredes e ornamentos, de acordo com sua qualidade e resistência. O itacurú também era usado em fundações e muros secundários. Por sua ocorrência em grande parte da região, o basalto também foi utilizado nas missões, principalmente nas fundações (28). A produção de metais na região dos Sete Povos se iniciou por obra do padre Antonio Sepp, que utilizou itacurú na redução de São João Batista para extrair o minério de ferro.
A argila da região, muito avermelhada e rica em ferro, foi utilizada na confecção de cerâmicas de todo tipo: telhas, ladrilhos, pisos; o barro negro (ñaú) era usado no assentamento de pisos ou sobre taquaras, nos telhados, para acomodar as telhas; o barro claro e acinzentado (tabatinga) para branquear muros, como tinta (29).
Uma das reiteradas menções na documentação histórica refere-se à inexistência de cal na região das missões, pelo menos até meados do século 18 (30). Em alguns casos, descreve-se a produção da cal a partir da calcinação de conchas de moluscos para utilização em argamassas, o que ainda pode ser visto na Igreja de São Miguel. Em alguns lugares, no entanto, com a descoberta de jazidas de cal, foram instaladas as “caleiras” jesuíticas, como a das Órfãs ou a das Vacas, cujos remanescentes atualmente encontram-se em território Uruguaio.
Existem registros na correspondência entre missionários e o superior da ordem, em Roma, que mencionam, explicitamente, solicitações de livros de arquitetura. No que se refere à arte sacra, pintura e escultura, a difusão de imagens se fazia tradicionalmente por meio de gravuras impressas que depois eram reproduzidas, transformando-se em referências para novas obras. Eventualmente, os padres traziam gravuras ou pequenas esculturas, ou faziam modelos em barro, utilizadas pelos índios para reprodução (31). Especificamente quanto aos livros de arquitetura, os inventários feitos após a expulsão dos jesuítas listaram vários títulos e tratados de arquitetura existentes nas bibliotecas das reduções (32).
Arquitetos, artistas, artífices
Entre os religiosos que vieram para a América, estavam profissionais com formação em arquitetura ou artes, que foram responsáveis pela execução de importantes obras arquitetônicas e artísticas na região. No campo artístico, o maior destaque é para o arquiteto José Brassanelli, escultor e pintor, que trabalhou nas igrejas das reduções de Itapúa, São Borja, Loreto e Santa Ana e, provavelmente, em São Xavier e Santo Ignácio Miní. Na arquitetura, destacou-se o italiano Giovanni Battista Primoli que desenvolveu as principais obras do último período da arquitetura nas reduções, as igrejas de São Miguel Arcanjo, Trinidad e Concepción. Ele também deixou obras em Buenos Aires e Córdoba, algumas com Andrea Bianchi. Da mesma forma, devem-se referenciar os padres Francisco Rivera e José Grimau, também autores de São Miguel.
Também se envolveram com arquitetura os padres Bartolomé Cardenosa, como autor de várias igrejas, Domingo Torres, na redução de São Nicolau, São Carlos, Loreto e Santo Ignácio Miní, Antonio Sepp, fundador de São João Batista e Juan Kraus, que trabalhou com Sepp nessa redução e depois em Santo Tomé.
Na maior parte dessas obras de arquitetura nas reduções da Paracuaria, sempre se procurou compensar a simplicidade, a rusticidade e os poucos materiais disponíveis com uma diversidade de dimensões, formas e desenhos geométricos ou decorativos que eram aplicados em pisos, forros e paredes. Complementando o cenário de gosto barroco, com diversidade de formas, brilhos e cores, atendendo à tradição, as igrejas missioneiras também eram decoradas com ornamentos vegetais e florais (33).
Independentemente das regras e dos modelos, cada obra, seja arquitetônica ou artística, expressa a maestria dos artífices índios, a criatividade e o conhecimento técnico dos mestres europeus, que traduzem, em suas realizações, os seus conhecimentos, as suas crenças, mas, principalmente, os seus pagos.
notas
NE – Primeira parte desse artigo: CUSTÓDIO, Luiz Antônio Bolcato. Ordenamentos urbanos nas Missões Jesuíticas dos Guarani – parte 1. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 200.05, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.200/6398>.
1
MICOZZI, Pier Luigi. Una introduzione al ‘Modo Nostro’. In Gaudenzi, Luciana. La Chiesa di Gesù a Roma, gli ultimi restauri. Viterbo, BetaGamma Editrice, 1996, p. 5.
2
RODRÍGUEZ GUTIÉRREZ DE CEBALLOS, Alfonso. La arquitectura de los jesuitas. Madrid, Edilupa, 2002, p. 22; BENEDETTI, Sandro. Tipologia, ragione volezza e pauperismo nel modo nostro della’architettura Gesuitica. In BENEDETTI, Sandro. Fuori dal classicismo. Roma, Multigrafica Editrice, 1984, p. 116; PIRRI, Pietro. L’architetto Bartomeo Ammannati e i Gesuiti. Roma, AHSI. Vol. XII, 1943, p. 29;
3
BORROMEO, Carlo. Instructiones fabricae et supellectilis ecclesiasticae. Libri Prioris, 1577, p. 1-113; MICOZZI, Pier Luigi. Op. cit. p. 5.
4
PIRRI, Pietro. Giovanni Tristano e I primordi della architettura gesuitica. Roma, BIHSI. Vol. VI, 1955, p. 267.
5
Idem, ibidem, p. 267.
6
BENEDETTI, Sandro. Op. cit., p. 77.
7
Idem, ibidem, p. 72, 75.
8
Idem, ibidem, p. 116.
9
BALDINI, Hugo (1596). La formazione scientifica degli architetti gesuiti (secoli XVI-XVII). In IAPENELLI, Filipo; PARENTE, Hugo. Atti del convegno internationale di studi promosso dalla Compagnia di Gesù e dall’Universita dell’Aquila nel IV centenario dell istituzione del Aquilanum Collegium. Roma, BIHSI LII, 2000, p. 592.
10
BENEDETTI, Sandro (1596). Il modo nostro e la prima stagione dell’architettura gesuitica. In IAPENELLI, Filipo; PARENTE, Hugo. Op. cit., p. 108.
11
PATETTA, Luciano. Storia e Tipologia. Cinque saggi sull’architettura del passato. Milano, CLUP, 1993, p. 165.
12
RODRÍGUEZ GUTIÉRREZ DE CEBALLOS, Alfonso. Op. cit., p. 22.
13
GALLEGOS, Matthew E. 2004. Charles Borromeo and catholic tradition regarding the design of catholic churches. Sacred Architecture Journal – SAJ, vol. 9, p. 1. Disponível em <www.sacredarchitecture.org/pubs/saj/9.php>; BALDINI, Hugo (1596). Op. cit., p. 599.
14
PATETTA, Luciano. Op. cit. p. 162.
15
Idem, ibidem, p. 161.
16
WITTKOWER, Rudolf & JAFFE, Irma B. Baroque art: the jesuit contribution. Nova York, Fordham University Press, 1972, p. 2.
17
COSTA, Lucio. A arquitetura dos jesuítas no Brasil. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 5, Rio de Janeiro, Sphan, 1941, p. 105-169.
18
LUCAS, Thomas M. Landmarking: city, church and jesuit strategy. Chicago, Loyola Press, 1997, p. 165.
19
MARTINS, Maria Cristina Bohn. Acerca da guerra e da paz nas crônicas jesuíticas das reduções: o caso da conquista espiritual de Montoya. Estudos Ibero-Americanos, vol. XXXIII, n. 1, Porto Alegre, PUC-RS, 2007, p. 134.
20
HERNÁNDEZ, Pablo. Organización social de las doctrinas Guaraní de la Compañía de Jesús. Barcelona, Gustavo Gilli, 1913, p. 102.
21
PAGE, Carlos A. Hacia el milagro de la Inmaculada en Santa Fe. Vida y martirio del P. Pedro de Espinosa y un aporte a la Arquitectura Jesuítico-Guaraní. Junta Provincial de Estudios Históricos de Santa Fe, n. LXIX, Santa Fe (Revista Oficial), 2011, p. 43.
22
SUSTERSIK, Bosidar Darko. Templos Jesuítico-Guaraní. Buenos Aires, Facultad de Filosofía y Letras, UBA, 1999, p. 253.
23
CUSTÓDIO, Luiz Antônio Bolcato. Arquitetura e Urbanismo Jesuítico Guarani: regras e resultados. Porto Alegre, Editora UniRitter, 2011, p. 190; CUSTÓDIO, Luiz Antônio Bolcato. Ordenamientos Urbanos y Arquitectónicos en el Sistema Reduccional Jesuítico Graraní de la Paracuaria: entre su Normativa y su Realización. Tesis Doctoral, Universidad Pablo de Olavide, Sevilla, 2010, p. 224.
24
LEVINTON, Norberto. La arquitectura del pueblo de San Cosme y San Damián. In CARBONELL, Rafael; BLUMERS, Teresa; LEVINTON, Norberto. La Reducción Jesuítica de Santos Cosme y Damián: su historia, su economía y su economía y su arquitectura (1633-1797). Asunción, Fundación Paracuaria, 2003, p. 243; HERNÁNDEZ, Pablo. Organización social de las doctrinas Guaraní de la Compañía de Jesús. Barcelona, Gustavo Gilli, 1913, p. 294.
25
PAGE, Carlos A. Op. cit. p. 43.
26
GUTIERREZ, Ramón. As Missões Jesuíticas dos Guaranis. Rio de Janeiro, Fundação Pró-Memória, Unesco, 1987, p. 24-26.
27
SCHULZE-HOFER, Maria Cristina; MARCHIORI, José Newton Cardoso. O uso da madeira nas reduções jesuítico-guarani do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Iphan, 2008, p. 33-43.
28
NOWATSKI, Carlos Henrique. O sitio arqueológico de São Miguel das Missões: uma análise sob o ponto de vista da geologia. São Paulo, All Print, 2004, p. 29.
29
SEPP S. J., Antônio. Viagem às missões Jesuíticas e trabalhos apostólicos. Belo Horizonte, Itatiaia/São Paulo, Edusp, 1980, p. 226.
30
HERNÁNDEZ, Pablo. Organización social de las doctrinas Guaraní de la Compañía de Jesús. Barcelona, Gustavo Gilli, 1913, p. 102.
31
ARSI – Archivo Romano Societatis Iesu (Roma), Paraq. 1 {42r} 1627.
32
PAGE, Carlos A. Op. cit. p. 60.; SUSTERSIK, Bosidar Darko. Op. cit. p. 97.
33
XARQUE, Francisco. Insignes misioneros de la Compañía de Jesús en la Provincia del Paraguay. Pamplona, Juan Micon, 1687, p. 341.
sobre o autor
Luiz Antônio Bolcato Custódio é arquiteto, professor do Centro Universitário Ritter dos Reis, Uniritter. Especialista em Preservação do Patrimônio Cultural (CECTI, Firenze, 1986), Mestre em Planejamento Urbano e Regional (UFRGS, Porto Alegre, 2003), Doutor em História da Arte e Gestão Cultural (UPO, Sevilha, 2011). Foi Diretor Regional e Nacional do Iphan.