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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Ensaio em direção à compreensão dos conceitos de sustentabilidade ao longo do século e a delicada noção de progresso.

english
Essay towards understanding the concepts of sustainability throughout the century and the delicate notion of progress.

español
Ensayo hacia la comprensión de los conceptos de sostenibilidad a lo largo del siglo y la delicada noción de progreso.


how to quote

LUZ, Vera Santana. Um fato e um filme. A propósito de dois pequenos meninos e muitas esferas. Arquitextos, São Paulo, ano 18, n. 205.02, Vitruvius, jun. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.205/6589>.

Um fato.

1945: Manhã do dia 6 de agosto – bomba atômica ‘Little Boy” explode sobre Hiroshima às oito horas, dezesseis minutos e dois segundos.

Tinian Island, Hiroshima e divisa sodoeste entre EUA e Canadá assinalados no planeta Terra
Edição da autora a partir de base de Google Maps/Google Earth

Os dias e noites persistem indiferentes, dado que a Terra – planeta aproximadamente esférico – gira sobre si mesma e prossegue seu curso cósmico em torno do Sol, em órbita levemente elíptica que Kepler (1) enunciara, posto que Copérnico (2) rompera o modelo geocêntrico ptolomaico propondo o sistema heliocêntrico (3) cuja estruturação comparativa Galileu desenvolvera (4). Newton (5) comporia a equação definitiva até Einstein – elegante e sintética – e desde então, para nós, massa e o movimento gravitacional estão indissoluvelmente articulados.

Tempos lentos, desde o século I DC até o 18. Até hoje vemos o mundo e os céus pelo olhar deles.

Estrutura celeste de Copérnico, perfeita descrição das órbitas celestes, de acordo com a mais antiga doutrina dos pitagóricos
Imagem divulgação

Embora fosse um horário preciso, 8h16’02” da manhã do dia 6 de agosto em Hiroshima, há o lapso de uma hora entre a origem da bomba ‘Little Boy’ e seu destino, justamente porque a Terra é uma esfera giratória. Na ilha Tinian, donde decolara a nave B-29 que continha este ‘pequeno menino’ de 13 kilotons, já seriam 9h16’02”. Não haveria simultaneidade na percepção do tempo do dia entre os dois lugares; muito antes das 9h16’02” – horário de Hiroshima – quase nada mais restava, tão somente escombros; em verdade um segundo depois do momento da explosão. Seu hipocentro aqueceu a 5400ºF, uma bola de fogo atingiu 900 pés de diâmetro, a nuvem em forma de cogumelo subiu a 2.500 pés, 5 milhas quadradas foram incineradas, 60.000 edifícios foram destruídos bem como toda infraestrutura urbana. Mais de 200.000 pessoas morreram sob o efeito da bomba nuclear. Pela primeira vez ‘sombras nucleares’ – manchas com os contornos de seres ou objetos evaporados, que se interpuseram à radiação térmica –, podiam ser vistas (6). Em Washington, EUA, o momento da explosão corresponde às 19h16’02” do dia anterior, 5 de agosto. No Brasil, em São Paulo, eram 20h16’02”, da mesma noite de 5 de agosto. Era domingo enquanto em Hiroshima era segunda feira.

Little Boy, bomba atômica de Hiroshima embarcando na nave B-29
Foto divulgação [Website Atomic Heritage Fondation]

Toda essa aparente ambiguidade advém de fenômenos concretos e mensuráveis. Porque assim é a Dança das Esferas. A física – entendimento da physis desde os pré-socráticos – estava então neste grau de entendimento de seus efeitos e manifestação (7).

A operação foi instrumentalizada com perfeição do ponto de vista da política institucional, logística militar e precisão técnica. A rendição do Japão Imperial se deu em 15 de agosto, assinada a 2 de setembro.

De modo inédito, por procedimentos análogos à seriação industrial, fora nesta guerra instrumentalizado o extermínio em massa de uma determinada raça, no caso a judaica, sob a égide da dominação planetária de outra raça, no caso a ariana.

Estima-se que mais de 60 milhões de pessoas morreram por efeitos da II Guerra Mundial (8).

Nuvem atômica sobre Hiroshima
Foto divulgação [Website Atomic Heritage Foundation]

Bombas nucleares só foram possíveis após a formulação einsteiniana de que energia é massa multiplicada pela velocidade da luz ao quadrado (E=mc²). Energia e massa são, portanto, estados de um mesmo princípio; tempo e espaço, nesse sistema, também são relativos e não absolutos (9). Alterara-se nosso modo de ver a dança das esferas do átomo bem como a Dança dos Planetas. Pretendemos atuar sobre ambas e, a partir das conquistas da ciência, pudemos agir sobre a estrutura infinitesimal da matéria.

Informe da US Inteligence de 23/08/2015 sobre o impacto da bomba sobre Hiroshima
Imagem divulgação [Website Atomic Heritage Foundation]

Defendo como ato inaugural para efetivação do ambientalismo como pauta internacional o advento da bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki. A relação entre os homens e entre homens e natureza chegara a um ponto de inflexão. Pela primeira vez, em termos concretos, passa a ser possível destruir toda a vida no planeta. Como possibilidade real. Evidentemente anúncios de desequilíbrio entre as ações humanas e o mundo físico e natural motivaram pensamentos de resistência e militância, característicos das várias épocas desde os inícios da Revolução Industrial e do fenômeno urbano correspondente (10). Após 1945, esforços para um concerto mundial entre as nações em torno da paz, necessária como garantia de sobrevivência no planeta, culminam na constituição da ONU – a Terra procurando ser una, ao passo que a guerra fria é circunstanciada pelo aparato de usinas nucleares como potência e poder, cujo projeto simbólico mais evidente se constitui na corrida para a Lua. A Terra dividida ao meio.

Desenvolvimento é associado em grande medida a alto grau de industrialização, acumulação de riquezas e poder bélico. Países não industrializados são denominados subdesenvolvidos.

Ao lado do sistema imperial hegemônico dos ‘ganhadores’, ambientalismo e movimentos proto-sustentáveis vão tomando forma. As primeiras ações (11), depoimentos e pactos internacionais esboçam conceitos que constroem estrutura mais nítida na Conferência das Nações Unidas de Estocolmo, em 1972. Vamos retornar a isso. Retrocedamos, todavia, quatro anos antes e nos desloquemos para contemplação de uma expressão artística sob cujo alcance de potência simbólica nos é possível vislumbrar alguns horizontes.

Fotograma de 2001 Uma Odisseia no Espaço, direção de Stanley Kubrick
Imagem divulgação

Um filme.

1968: 2001 uma Odisseia no Espaço (12).

O título já adverte, não mais somente nosso alvorecer único na linha do horizonte – a aurora do novo século será múltipla e uma saga, no espaço sideral. Se “a Terra é Azul” vista por nós do espaço, em movimento, pela primeira vez em 1961 (13), Kubrick propõe uma Dança das Esferas onde também flutuamos sob harmonia e graça da valsa Danúbio Azul (14). Ora, Platão no Timeu (15) organizara a constituição do mundo, a composição da matéria e a Dança dos Planetas ao canto das sereias a partir do número, da razão pitagórica, da proporção e da geometria (16).

A cosmologia pitagorico-platônica – o mundo belamente ordenado – surge a nossa vista deslumbrantemente como experiência possível na antológica sequência cinematográfica e nós imersos nela. Contudo essa música jamais soará, pois as ondas sonoras se propagam na matéria, no ar e há vácuo no espaço sideral. Mas nós pudemos ver pelos olhos de Kubrick, não pudemos? Portanto se não é verdade é verossimilhança (17).

E eis que surge, possivelmente, outra referência platônica: o enigmático prisma quadrangular, descendente de seu ancestral, o sólido platônico hexaedro regular – o cubo (18). Agora se apresenta espigado, vertical, ereto, com frontalidade – face a face com o homem, medida do homem. Representação da razão, do lógos?

Persistiria razão e lógos como mediação do cosmos em correspondência nas medidas da alma humana? Há leis máximas abstratas e superiores ao mundo físico do devir da natureza?

O cubo fora em essência o próprio elemento terra quando, na acepção platônica, geometria e matéria eram unívocas e corpo e pensamento teriam correspondências.

Em uma das sequencias iniciais do filme, a potência máxima de energia exalada por esse corpo prismático encontrado na Lua, sua figura absoluta e recorrente como um signo totêmico e sua aparição no alvorecer da humanidade, perante os primeiros hominídios, atestaria o desafio da razão e o consequente arbítrio e autonomia, terrível destino da espécie humana perante a natureza?

O que vemos? No filme, os primatas representados se associam em tribos, têm hierarquia e liderança. A trilha sonora indica e constrói: inicialmente somente sons da natureza – grilos, eventualmente pássaros e ruídos animais, os hominídeos primevos têm rudimentos de linguagem do ponto de vista da comunicação animal. Depreende-se que não haveria capacidade simbólica e consequentemente não poderia ocorrer expressão artística.

Desperta o líder e a seguir seu bando, ao som do Réquiem de Ligeti (19), coro murmurante de complexa estrutura micropolifônica instalado violentamente entre as possibilidades de compreensão em ser audível como som, ruído ou música; tematiza a morte. Surge o prisma, anúncio do alvorecer da humanidade. Morte e alvorecer interligados: nossos ancestrais perderiam o puro estado animal ao adquirir a condição humana. Os primatas revelam curiosidade perante o prisma, mas não é harmonia tonal o que se ouve.

Dia seguinte ou logo depois. A sonoridade da natureza passa pouco a pouco a Assim Falava Zaratustra, de Richard Strauss (20). O prisma visto em câmara baixa se interpondo como horizonte ao sol nascente (e a silueta da lua misteriosamente defronte) conduz o dó grave e profundo dos contrabaixos – quase não musical – seguindo o ataque dos trompetes do acorde sequencial dó-sol-dó, cristalino, estrutura de quinta, quarta e oitava, fundamental de música tonal e os tímpanos reforçam o ritmo quaternário. Puramente pitagórico.

Com um enunciado de origem da música em estado puro a primeira ferramenta é conquistada. Alternam-se imagens do descobrimento do osso-ferramenta como extensão da capacidade humana, à ossada massacrada de um crânio, ao animal tombado; há júbilo nessa conquista. Entrevê-se prazer na potenciação da capacidade destrutiva. A ferramenta-osso é lançada aos ares em fusão genial com a espaçonave flutuante. Tempo e espaço concentrados. Toda nossa história comprimida em dois gestos fundamentais.

Fotograma de 2001 Uma Odisseia no Espaço, direção de Stanley Kubrick
Imagem divulgação

Como refletir sobre o valor absoluto do acorde tonal sob a perspectiva de referência a Nietzsche? Parece inconciliável. Podemos arriscar inferir que, na metáfora das três metamorfoses humanas do camelo/subserviente – leão/destruidor potente – criança/inocência e recomeço, estaríamos atingindo a etapa leonina nesta sequência. Ora, Zaratustra apregoa a morte de Deus – e aqui outro Réquiem –, a prescrição do platonismo e do cristianismo como condenáveis refúgios no absoluto – pois não há duplicação do mundo, não há céu religioso nem mundos ideais – e nós homens, como qualquer animal, somos tão somente perecíveis e submetidos à finitude como única realidade incontornável. A matéria e a natureza seguem inexoravelmente seu ciclo de eterno retorno. Nós não. Tampouco nossa alma terá guarida no absoluto (21).

O super-homem nietzschiano não seria um homem elevado à máxima potência – o leão metafórico – porém um homem que atingiu a condição de superação dessa condição de busca de potência onde não há nenhuma.

Mas nos concentremos no filme.

Outros personagens: HAL 9000 – o computador extraordinário e infalível – é pura instrumentalidade. No entanto, percebe traição e trai seu desígnio de ser extensão do homem a quem serve. Após o périplo de embate com a máquina máxima, na luta entre criatura e criador, David Bowman (22) a consegue desligar e neutralizar. Está então só e à mercê do espaço cósmico. Ultrapassa em vórtice a dimensão espaço-tempo-matéria-luz e o encontramos, enfim, em uma espécie de compressão do tempo, onde se vê, como cenário, mobiliários sobrepostos de épocas diferentes em uma ambiência futurista, num continuum, acumulando diversos índices temporais simultâneos – como na memória.

David é velho mas contém todas as idades também, simultaneamente. A crua condição humana é explicitada.

Lá está o menir primordial, o prisma, contemplativo, em sua presença indiferente.

Prepara-se a sequência final, novamente ao som de Also sprach Zaratustra: a ‘criança’ (nietzschiana no último estágio de metamorfose?) envolta em uma esfera – placenta transparente – em dimensão equivalente à da Terra contempla-a em estado de possibilidade.

Fotograma de 2001 Uma Odisseia no Espaço, direção de Stanley Kubrick
Imagem divulgação

“Eu vos anuncio o Super-homem. O homem é superável. Que o fizeste para o superar? Até agora todos os seres têm apresentado alguma coisa superior a si mesmos; e vós, quereis o refluxo desse grande fluxo, preferis tornar ao animal, em vez de superar o homem? Que é o macaco para o homem? Uma irrisão ou uma dolorosa vergonha. Pois é o mesmo que deve ser o homem para o Super-homem: uma irrisão ou uma dolorosa vergonha. Percorrestes o caminho que medeia do verme ao homem, e ainda em vós resta muito do verme. Noutro tempo fostes macaco, e hoje o homem é ainda mais macaco do que todos os macacos. Mesmo o mais sábio de todos vós não passa de uma mistura híbrida de planta e de fantasma. Acaso vos disse eu que vos torneis planta ou fantasma? Eu anuncio-vos o Super-homem! O Super-homem é o sentido da terra. Diga a vossa vontade: seja o Super-homem, o sentido da terra. Exorto-vos, meus irmãos, a permanecer fiéis à terra e não acreditar naqueles que vos falam de esperanças supra-terrestres” (23).

Pegadas.

1969: 20 de julho. O principal objetivo da Missão Apollo 11 era completar a meta nacional estabelecida pelo presidente John F. Kennedy, enunciada em 25 de maio de 1961: realizar uma aterrissagem lunar com tripulação e retornar à Terra, 43 dias após Gagarin – soviético – ser o primeiro homem a tripular uma nave.

Sublinhemos a genialidade de Kubrick: um ano após o filme 2001 Uma Odisseia no Espaço, a vinte de julho, Neil Armstrong pisa na Lua e, vinte minutos após, Edwin Aldrin o faz. Uma hora e meia depois o presidente Nixon fala ao telefone com os astronautas. Armstrong passou 21 horas e 36 minutos na superfície da Lua (24). Foram deixadas em solo lunar mensagens auspiciosas de boa vontade de 73 países, nome dos congressistas e líderes da Nasa, medalhas em homenagem a astronautas mortos em missão e a bandeira americana cravada. Eu tinha 14 anos. Meu pai falecera um mês antes. Cada homem é único, a humanidade é um todo. Dependendo da medida, abstrato.

Assis Chateaubriand trouxera a televisão ao Brasil, que inaugurou suas atividades na TV Tupi em 18 de setembro de 1950. No dia 20 de julho de 1969 eu, com meus passos adolescentes, estava no extremo oeste de São Paulo em uma fazenda sem energia elétrica, sem televisão, sem telefonia. Os moradores que trabalhavam na fazenda não acreditaram na notícia, seria pura invenção a chegada do homem à Lua.

Dissera Armstrong “Um pequeno passo para o homem, um grande salto para a humanidade”. Algumas pegadas marcaram indelevelmente a superfície da Lua.

Terra ascendendo sobre o horizonte da Lua. Missão Apollo 11
Foto divulgação [Nasa – National Aeronautics Space Administration]

Edwin Aldrin no Mar da Tranquilidade na Lua, fotografado por Neil Armstrong, dois primeiros homens a pisar na lua, Missão Apollo 11
Foto Neil Armstrong [Nasa – National Aeronautics Space Administration]

Uma das primeiras pegadas na lua a 20 de julho de 1969. Missão Apollo 11
Foto divulgação [Nasa – National Aeronautics Space Administration]

Outra pegada.

1996: The Human Footprint (25):

A Pegada Ecológica ou Pegada Humana é uma metodologia quantitativa que dimensiona e analisa o impacto humano na superfície terrestre. Agora a ferramenta não imprime marcas nem atua diretamente sobre o mundo, mas mede e qualifica nossa ação na natureza em busca de novos passos menos deletérios, tendo como hipótese a preocupação com respeito a nossa ação no mundo constatada como em desequilíbrio, nos limites da catástrofe. Precisou-se 27 anos entre 1969 e 1996. Convém, então, sublinhar um outro alvorecer, qual seja o de um certo despertar para as questões ambientais de modo mais estruturado. Não mais um líder simiesco com seu bando, mas um concerto internacional organizado em hierarquia complexa e cujo alcance tecnológico alcança aprimoramento inédito. Teremos êxito?

Pegada humana
Imagem divulgação [Nasa Earth Observatory]

"Na longa e tortuosa evolução da raça humana neste planeta, um estágio foi alcançado quando, através da rápida aceleração da ciência e da tecnologia, o homem adquiriu o poder de transformar seu meio ambiente de inúmeras maneiras em uma escala sem precedentes. Ambos os aspectos do ambiente do homem, o natural e o transformado pelo homem, são essenciais para o seu bem-estar e para o gozo dos direitos humanos básicos e o direito à própria vida” (26).

A Conferência de Estocolmo, realizada pelas Nações Unidas em 1972, é positivamente inaugural e sem dúvida marco importantíssimo e ponto de inflexão na definição e organização de forças mundiais em nome da proteção do ambiente humano. De fato, humano. E talvez esse seja seu limite histórico.

Apesar de reportar e classificar com clareza os problemas de desequilíbrio em nossa relação com a natureza com precisão e competência, estabelecer uma série de instrumentos de curto, médio e longo prazo, políticos, técnicos, organizacionais e financeiros amplamente discutidos e chancelados, indubitavelmente propor equacionar posições no sentido de harmonizar as diferenças entre os países ricos, em desenvolvimento e subdesenvolvidos, assim nomeados, estruturar formas de apoio, suporte e financiamento e conclamar as responsabilidades às instâncias internacionais, governos, instituições não governamentais, empresariais, comunidades, cientistas, cidadãos em geral, do mundo rural e urbano, deslindar a importância e fragilidade dos ecossistemas, paisagens, toda bioesfera e meio natural, enunciar modos para incentivo à pesquisa, conhecimento e tecnologias, identificar programas para ampla troca de informações e cooperação, conseguir articular indissoluvelmente os direitos ambientais aos direitos humanos do ponto de vista da liberdade, igualdade, equidade social e vida digna para todos, apesar de toda essa equação de múltiplos fatores constituídos em um trabalho complexo (27), prevalece o homem como ser superior, sujeito a ter prudência perante os limites da natureza em sua escassez e distúrbios devido a nossa ocupação do mundo, por se tratar de fato inexorável e ameaça concreta, mas permanece como sujeito fundamental e em grande medida a natureza é vista como fonte de recursos para nosso desfrute. A visão antropocêntrica é recorrente (28). A terminologia ‘meio ambiente humano’ devidamente adjetivado, é sublinhada constantemente. Não há quase nenhuma compreensão do meio ambiente em si, como valor, independentemente do homem.

"De todas as coisas do mundo, as pessoas são as mais preciosas" (29).

A compreensão direitos humanos conjugada ao direito ambiental é bela, muito bela.

O princípio de que os bens naturais como ar, água, terra, flora e fauna e em especial as espécies representativas de ecossistemas naturais, a vida selvagem e seus habitats devem ser salvaguardados e cujos benefícios, transcendentes às divisões administrativas, dizem respeito a toda a humanidade e devem ser compartilhados é generosamente humanista.

As futuras gerações são miradas como imperativas para a garantia da espécie humana, assunto que será mais positivamente estruturado no futuro relatório Our Common Future, de 1987 (30). Noção muito bela, também, porém o embrião aqui já instalado tem em seu cerne a disponibilidade de todos os recursos, mantidos em sua capacidade de regeneração (em que uma das matrizes matemáticas de dimensionamento, como já citamos, seria a Pegada Ecológica) estaria ao nosso dispor. Aqui, observando nas entrelinhas, se pode tomar partido na distinção entre uma certa definição de ambientalismo e a subjacente ao termo naturalismo. Na primeira, na acepção em conta, o ambiente é contentor do homem, como seu mais importante ser vivo, para servi-lo; na última, o homem é parte de um todo maior e não ao mesmo subordinado.

"Os recursos naturais ou a Terra, incluindo o ar, a água, a terra, a flora e a fauna e amostras especialmente representativas de ecossistemas naturais, devem ser salvaguardados para o benefício das gerações presentes e futuras através de um planejamento ou gerenciamento cuidadoso, conforme apropriado. [...] O homem tem uma responsabilidade especial para salvaguardar e administrar sabiamente o patrimônio da vida selvagem e seu habitat, que agora estão gravemente ameaçados por uma combinação de fatores adversos. A conservação da natureza, incluindo a vida selvagem, deve, portanto, ser importante no planejamento do desenvolvimento econômico" (31).

A noção de progresso é posta como inerente ao homem. Mas qual é esta noção, que progresso é este? Adianto, desde já, minha opção não desenvolvimentista.

Vejamos como se deram as discussões preliminares à Conferência de Estocolmo. Ora, a hipótese em convocar uma conferência sobre meio ambiente foi apontada pelo Conselho Econômico e Social da ONU em sua 45ª seção, como uma urgência visando eliminar ou ao menos limitar a disparidade do desenvolvimento humano. A Assembleia Geral da ONU e simpósios subsequentes foram construindo a ideia de centralizar as discussões tendo em conta as necessidades específicas dos países em desenvolvimento e a inter-relação entre desenvolvimento e ambiente. Os resultados da futura Conferência deveriam ser reportados ao Conselho Econômico e Social. Pode ser depreendida a tomada de consciência com respeito à urgência em construir um equilíbrio ambiente-produção, para garantir o desenvolvimento econômico – entendido como progresso – e passível de entendimento o esforço, evidenciado na Declaração do Ambiente Humano – cerne da Conferência – em sublinhar que seria inconteste a hipótese de que o desenvolvimento econômico deveria ser equânime e inabalável.

"O desenvolvimento socioeconômico é essencial para garantir um ambiente de vida e trabalho favorável para o homem e para criar condições na Terra que são necessárias para melhorar a qualidade de vida" (32).

Foram necessários 20 anos para que ambiente, equidade social e desenvolvimento formassem uma tríade equitativa, como definição concertada, na Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro, em 1992. Não mais desenvolvimento sobre o ambiente, mas ao lado, entre cujos documentos se estabelece a Agenda 21 Global que terá desdobramento nas Agenda 21 Nacionais. Mais um esforço da ONU para equacionar a questão ambiental se dá a partir da Conferência Rio+20, de 2012 pelo apelo à construção coletiva, pelos Estados-membros, de um conjunto consistente de intenções a partir dos ODM – Objetivos do Milênio. Resulta o documento da Agenda 2030, com 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ODS e 169 metas correlatas, como um conjunto de programas, ações e diretrizes. Esta agenda, adotada oficialmente na Cúpula das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável 2015, em Nova York onde o documento O Futuro que Queremos é publicado. Mas esses são temas para uma outra reflexão em continuidade à que pretendemos aqui.

Grandes esforços. Tempos lentos.

Proclama-se a velocidade dos tempos contemporâneos, sobretudo do ponto de vista do avanço tecnológico e dos meios informacionais. Resta a nós, o ajuste necessário de nossas capacidades e nossos limites posto que – tempos lentos, tempos rápidos, em direção a quê?

Os índices de desigualdade e concentração de riquezas persiste, alarmantes e ampliados; a violência antrópica ao meio ambiente se situa à beira do colapso. Aqui evidencio meu parti pris: a natureza inteira é superior ao homem, cujas leis, inexoráveis, definirão nosso futuro possível. Sem subordinação à mesma, nossa espécie se extinguirá, não haverá remorso nem nostalgia. Pois a natureza não é conformada por corolário moral ou ético, mas por leis inclementes da physis, algumas ainda ocultas para nós. Estamos no impasse entre domínio e inserção – e disso pode depender nossa vida no planeta.

Lavoisier: nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, certo? Temos resistido a essa lei simples. Com dor. Ninguém perde, ninguém ganha nada. Perder e ganhar são próprios do vocabulário capitalista. Talvez pudéssemos começar por entender melhor os verbos dessa mesma lei de Conservação da Matéria. Prefiro: in a chemical reaction, matter is neither created nor destroyed, ou seja, em uma reação química material não é criada nem destruída. Só transformada. No que temos transformado a matéria em nossas ações?

Observo: foram condenados os testes de armas atômicas e realizado chamamento aos Estados no sentido de abandona-los, na Conferência de Estocolmo.

sobre a autora

Vera Luz é arquiteta (FAU Mackenzie/1978), Doutora (FAUUSP/2004), professora da FAU PUC-Campinas e professora convidada da Fundação Vanzolini em Sustentabilidade. Conselheira e Coordenadora Adjunta da Comissão de Ensino e Formação do CAU/SP. Colaborou em projetos urbanos nos escritórios Joaquim Guedes e Ass., Urbe/Cândido Malta Campos Filho, desenvolveu em coautoria o projeto Ligação Leste-Oeste (EEP Mackenzie) e projetos certificados no selo AQUA-HQE em coautoria com a arq. Mirtes Luciani em três dos quais foram obtidas pontuações máximas até hoje no Brasil (Programa e Concepção). Autora do livro Ordem e Origem em Lina Bo Bardi (Giostri, 2014).

notas

1
Johannes Kepler (1574-1630) em Harmonices Mundi tentou explicar a harmonia dos fenômenos astronômicos – a musica universalis – em termos musicais, a partir de entidades numéricas e geométricas.

2
Nicolau Copérnico (1473-1543) desenvolveu um modelo matemático afirmando que a Terra e todos os planetas giravam em torno do Sol em órbitas de circunferência cuja teoria se completou em 1541, impressa com alterações não autorizadas em “Das Revoluções dos Corpos Celestes” em 1543.

3
Galileu Galilei (1564-1642) publicou em 1632 Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo – o Ptolomaico e o Copernicano”, incluído no Index de livros proibidos pela Igreja católica.

4
Ptolomeu (78-161 DC) descreveu em “Almagesto “ ou “A Grande Síntese” sistema cosmológico fundado na teoria geocêntrica aristotélica, no qual a terra se encontraria no centro do Universo e os planetas girariam em torno da mesma.

5
Isaac Newton (1643-1727) formulou a lei da gravitação universal em “Princípios Matemáticos de Filosofia Natural”.

6
ATOMIC HERITAGE FOUNDATION. Hiroshima and Nagasaki Bombing Timeline. <www.atomicheritage.org/history/hiroshima-and-nagasaki-bombing-timeline>.

7
Os pré-socráticos ou físicos, do primeiro período da filosofia grega (século VII a V A.C.) procuravam explicar a origem do mundo nos elementos da natureza, dos quais restaram fragmentos escritos interpretados pela doxografia.

8
The National WW II Museum – New Orleans. By the Numbers: World-Wide Deaths. <www.nationalww2museum.org/learn/education/for-students/ww2-history/ww2-by-the-numbers/world-wide-deaths.html?referrer=https://pt.wikipedia.org/>.

9
A bomba atômica se baseia na aplicação de energia ao núcleo de determinados átomos de modo que este se desintegre. Dado que os átomos se formam por núcleo e elétrons que gravitam em órbita em torno do mesmo, pequenas massas podem ser convertidas em gigantesca quantidade de energia.

10
Citemos, a exemplo, o americano Henry David Thoreau (1817-1862), George Perkins Marsch (1801-1882), autor de “Man and Nature” e mais propriamente ligados à arte, ao desenho e à arquitetura os britânicos William Morris (1832-1896) e John Ruskin (1819- 1900).

11
Como o livro pioneiro de Rachel Louise Carson, Silent Spring, de 1962 e The Limits of Grouth, relatório do Clube de Roma, de 1972.

12
2001 – Uma Odisseia no Espaço (“2001: A Space Odyssey”), direção de Stanley Kubrick, roteiro de Stanley Kubrick e Arthur C. Clark, filme de ficção científica, 2h41, 1968, baseado em livro homônimo.

13
Vostok I, lançada pela URRS, foi a primeira nave tripulada por um ser humano, em 12 de abril de 1961. O astronauta Yuri Gagarin teria dito “A Terra é Azul”, cuja veracidade exata sob o momento da frase é controversa. Gagarin morreu em 1968 um ano antes da Missão Apollo 11 atingir a Lua. A primeira fotografia a cores da Terra foi realizada em 22 de dezembro de 1968, por tripulantes da Missão Apollo 8.

14
Valsa composta por Johann Strauss Jr, apresentada pela primeira vez a 15 de fevereiro de 1867 em Viena como também na Exposição Universal de Paris, no mesmo ano.

15
PLATÃO. Timeu e Crítias ou A Atlântida. Tradução de Norberto de Paula Lima. São Paulo, Hemus, s/d, 32 a b, c, p. 83.

16
PLATÃO. República. Tradução de Jacob Guinsburg, notas de Robert Baccou. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1965, Livro X, p. 253. O canto das Sereias é descrito por Er, no Livro X da República de Platão 615 e a 618 a, explicando o movimento dos astros. VASCONCELOS, Fernando de Almeida. História das matemáticas na antiguidade. Paris/Lisboa, Livrarias Aillaud e Bertrand, 1925, p. 207 descreve como Platão concebia as revoluções dos planetas de acordo com os números das proporções musicais, sendo os raios das suas órbita s os números 2, 3, 4, 8, 9, 27, correspondentes respectivamente ao Sol, Vênus, Mercúrio, Marte, Júpiter e Saturno.

17
Faço aqui, de modo livre, alusão à poética aristotélica.

18
PLATÃO. Timeu e Crítias ou A Atlântida (op. cit.), 55e até 56b, p. 124 a 126.

19
Réquiem para soprano e mezzosoprano solistas, coro misto e orquestra (1963-1965), de György Sándor Ligeti (1923-2006), compositor húngaro contemporâneo.

20
Also sprach Zaratustra, op. 30, poema sinfônico (1986) de Richard Strauss (1864-1949), inspirado no tratado homônimo de filosofia de Friedrich Nietzsche cujas partes se nomeiam conforme os capítulos do livro. A Introdução – O Nascer do Sol – é utilizada nesta sequência do filme.

21
“Noutros tempos blasfemar contra Deus era a maior das blasfêmias; mas Deus morreu, e com eles morreram tais blasfêmias. Agora o mais espantoso é blasfemar da terra, e ter em maior conta as entranhas do impenetrável do que o sentido da terra”. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Tradução José Mendes de Souza. Coleção Saraiva de Bolso. São Paulo, Nova Fronteira, 2012, p. 3. A propósito ver também capítulo Das Três Transformações.

22
Bow, arco, proa, besta. Bowman, arqueiro, homem da proa, besta humana?

23
NIETZSCHE, Friedrich. Op. cit. p. 2.

24
Nasa – National Aeronautics Space Administration <https://www.nasa.gov/mission_pages/apollo/missions/apollo11.html>.

25
Primeiramente concebido por Wackernagel e Rees, em 1996, o modelo da Pegada Ecológica ou Pegada Humana é graduado em uma escala de 0 a 100 para cada bioma terrestre onde 1 indica o menor impacto humano, sendo que cada bioma tem uma escala independente de acordo com suas características específicas. Para mais informações acessar Center for International Earth Science Information Network (CIESIN), Columbia University and Wildlife Conservation Society, the Bornx Zoo, NY.<http://sedac.ciesin.columbia.edu/wildares> ou ainda Global Footprint Network <www.footprintnetwork.org/>, bem como World Wildlife Found <https://www.worldwildlife.org>.

26
“In the long and tortuous evolution of the human race on this planet a stage has been reached when, through the rapid acceleration of science and technology, man has acquired the power to transform his environment in countless ways on an unprecedented scale. Both aspects of man’s environment, the natural and the man-made, are essential to his well-being and to the enjoyment of basic human rights even the right to life itself”. UNITED NATIONS. Report of the United Nations Conference on the Human Environment Stockholm, 5-16 June 1972. A/Conf.48/14/Rev. 1. United Nations Publication, Declaração do Ambiente Humano da Conferência das Nações Unidas, Capítulo I, p. 3 <www.un-documents.net/aconf48-14r1.pdf>.

27
Participaram da Conferência 113 países convidados, eleita a Presidência do anfitrião sueco Ingemund Bengtsson, constituídas as regras, eleitos membros e constituídos comitês de debate e adotadas agendas. Ao final foi estabelecida a Declaração do Ambiente Humano da Conferência das Nações Unidas com a proclamação de sete itens e 26 princípios que se constituiria como peça chave para impulso da legislação do Direito Ambiental em direção a lei internacional do meio ambiente; constituído um Plano de Ação para o Ambiente Humano tendo como objetos principais: criar o programa global de avaliação ambiental “Earthwatch”, planejar atividades de manejo ambiental, estabelecer meios internacionais para apoio e suporte a ações nacionais e internacionais de diagnóstico e manejo ambiental, tendo como pressuposto redes de cooperação; estabelecido um rol de recomendações de ação em âmbito internacional: planejamento e manejo de assentamentos humanos para qualidade ambiental, aspectos ambientais do manejo de recursos naturais, identificação e controle de poluentes de expressiva significação internacional (poluição geral, poluição marinha), aspectos educacionais, informativos, sociais e culturais dos assuntos ambientais, desenvolvimento e ambiente, perfazendo 109 recomendações; foram concertadas resoluções sobre arranjos institucionais e financeiros (criação do Conselho de Governança para Programas Ambientais, Secretariado Ambiental, Fundo Ambiental); promulgado o Dia Mundial do Meio Ambiente – 5 de junho –, mesma data do início da Conferência, conclamado o chamamento aos Estados a abandonar testes de bombas nucleares; determinada a conveniência de realizar uma segunda Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente; recomendações a ações em âmbito nacional (guardada a soberania dos Estados).

28
A propósito do conceito do antropocentrismo recomenda-se de MARQUES, Luiz. Capitalismo ou Colapso Ambiental. 2ª. edição. Campinas, Unicamp, 2016, por mim resenhado em: LUZ, Vera. Humano e/ou natureza: mal estar? Resenhas Online, São Paulo, ano 17, n. 182.05, Vitruvius, fev. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/17.182/6424>.

29
“Of all things of the world, people are the most precious”. UNITED NATIONS. Op. cit., p. 3.

30
UN DOCUMENTS. World Commission on Environment and Development. Report of the World Commission on Environment and Development: Our Common Future. 1987. <www.un-documents.net/our-common-future.pdf>

31
“The natural resources or the earth, including the air, water, land, flora and fauna and specially representative samples of natural ecosystems, must be safeguarded for the benefit of present and future generations through careful planning or management, as appropriate. […] Man has a special responsibility to safeguard and wisely manage the heritage of wildlife and its habitat, which are now gravely imperiled by a combination of adverse factors. Nature conservation, including wildlife, must therefore receive importance in planning for economic development”. UNITED NATIONS. Op. cit., p. 4. Grifo do autor.

32
“Economic and social development is essential for ensuring a favourable living and working environment for man and for creating conditions on earth that are necessary for the improvment of the quality of life”. UNITED NATIONS. Op. cit., p. 4.

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