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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Através de uma análise comparativa entre espécies vegetais nativas e exóticas, o autor discute o papel dos paisagistas na adaptação do jardim ao meio e sua interação direta com a fauna, respeitando a coerência ecossistêmica e a sustentabilidade.

english
Through a comparative analysis between native and exotic plant species, the author discusses the role of landscapers in adapting the garden to the environment and their direct interaction with the fauna, respecting ecosystem coherence and sustainability.

español
Por un análisis comparativo entre especies vegetales nativas y exóticas, el autor discute el papel de los paisajistas en la adaptación del jardín al medio y su interacción directa con la fauna, respetando la coherencia ecosistémica y la sostenibilidad.


how to quote

BARRA, Eduardo. Abaixo a fitoxenofobia! A intolerância atinge o reino vegetal. Arquitextos, São Paulo, ano 18, n. 212.00, Vitruvius, jan. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.212/6861>.

“Seria ideal plantarem-se apenas as espécies nativas, mas isso, em certas áreas, talvez não produzisse um jardim”.
Roberto Burle Marx, Roberto Burle Marx: arte & paisagem (1)

Descobrimento do Brasil

Após séculos de predomínio das espécies vegetais exóticas em nossos jardins, em que copiamos modismos importados e conflitantes com as condições climáticas e as paisagens tropicais, eis que o brasileiro vence o torpor e dá a partida em um movimento de descobrimento e valorização da flora nativa. Não que isso tenha ocorrido de um dia para o outro, mas como resultado de um longo processo provavelmente iniciado no século 19, quando Glaziou incorporou espécies brasileiras ainda não experimentadas no paisagismo em suas significativas obras realizadas no Rio de Janeiro e arredores; mais tarde, em meados do século seguinte, quando Roberto Burle Marx cercou-se de botânicos e outros especialistas para empreender pesquisas de campo com o fim de conhecer novas espécies e estudar a associação natural entre famílias botânicas; em 1972, foi a vez da Conferência Mundial de Estocolmo desencadear a onda ecológica das últimas décadas, trazendo como resultado a consciência ambiental que terminou por condenar ao ostracismo as até então onipresentes roseiras, camélias e magnólias.

As sapucaias introduzidas por Glaziou na Quinta da Boa Vista
Foto Eduardo Barra

A compreensão da importância do emprego da flora autóctone em obras de intervenção paisagística alcançou profissionais de várias áreas de conhecimento e matizes, que, em lugar de entender o paisagismo apenas como atividade cosmética, passaram a enxergá-lo através das lentes da coerência ecossistêmica e da sustentabilidade, buscando a adaptação do jardim ao meio e sua interação direta com a fauna, bem como a racionalização dos serviços de manutenção, a eliminação ou redução radical de replantios, podas de condução e sistemas de irrigação, e, consequentemente, alto desempenho ambiental e baixo custo.

Chacel e suas obras ecogenéticas na Barra da Tijuca
Foto Eduardo Barra

É fato que alguns paisagistas apenas substituíram o exotismo anterior por outro de gosto mais recente, apostando na tendência de kaizukas, pinheiros natalinos, ciprestes e buxinhos topiarizados, que não mantêm qualquer sintonia ambiental e morfológica com a flora tropical e nossas paisagens. Mas ainda alimento a esperança de que esses colegas, em futuro próximo, compreendam que, para atender às necessidades prementes das relações entre jardim, fauna, clima e ecossistema, torna-se fundamental adotar, prioritariamente, as espécies vegetais da região e, na continuidade, admitir composições jardinísticas com estética orgânica e... naturalística (na falta de melhor expressão). Com tais princípios em mente, o arquiteto paisagista Fernando Chacel conseguiu materializar, a partir do final dos anos 1980, os conceitos da ecogênese em projetos que se tornaram emblemáticos e estabeleceram novos paradigmas para o paisagismo brasileiro (2).

Chacel e suas obras ecogenéticas na Barra da Tijuca
Foto Eduardo Barra

Entretanto, com o tempo, o conceito de vegetação nativa se ampliou – e desvirtuou –, passando a designar a flora do território geopolítico brasileiro. Em outras palavras, sem que percebêssemos, trocamos a percepção do regional e do ecossistêmico por uma equivocada noção de nacionalismo. Esse raciocínio, que sequer considera a decantada diversidade e o endemismo dos biomas brasileiros, admite como nativa qualquer planta originária do território nacional, independentemente do local em que virá a ser plantada (3). É lógico que isso nada tem a ver com coerência ambiental e sustentabilidade, tendo em vista que em Manaus, por exemplo, uma bromélia característica das encostas da Serra do Mar parece ser tão exótica quanto as kaizukas asiáticas que condenei acima. Em contrapartida, tornou-se admissível empregar um indivíduo do bioma amazônico tanto faz se no Rio de Janeiro ou em Serra Talhada, apesar de conhecermos vários exemplos não muito felizes desta prática.

De acordo com o conceito de espécies nativas vigente, tornaram-se não muito desejáveis até mesmo as espécies comprovadamente não-invasoras e até pouco tempo consideradas “naturalizadas”, ou seja, morfológica, cultural e ambientalmente adaptadas ao Brasil, como as asiáticas mangueira (Mangifera indica) e fruta-pão (Artocarpus altilis). A defesa intransigente da flora brasileira – geralmente sustentada por profissionais que não costumam compor jardins – tomou proporções assustadoras, como se até mesmo os pequenos recantos devessem assumir a missão de salvação do planeta e espécies exóticas fossem incapazes de cumprir funções biológicas e mecânicas, como fotossíntese, sequestro de carbono, abrigo da fauna, sombreamento, proteção contra ruídos e absorção de poeira, entre outras. É como se tentássemos desesperadamente recuperar o tempo perdido e remediar a destruição ambiental provocada pela urbanização desenfreada, pelas queimadas criminosas e pelas atividades extrativistas – quase uma estratégia de guerrilha e, nesse contexto, uma planta exótica estaria roubando o espaço de uma nativa.

Cabe lembrar que o Art. 4º da Resolução SMAC nº 492, de 05/07/2011, que regulamenta o Programa Municipal de Controle de Espécies Exóticas Invasoras Vegetais, do Rio de Janeiro, diz que “os projetos de recuperação ambiental e de arborização pública no município deverão privilegiar (grifo meu) o uso de espécies e vegetais autóctones, exceto em casos devidamente justificados”. No meu entender, privilegiar as nativas é diferente de abolir as exóticas, ou seja, a lei me parece mais flexível que seus intérpretes.

Nesse ponto, preciso deixar claro que não prego o uso indiscriminado de plantas estrangeiras (4), pois estou convicto de que sempre se deve dar preferência às nativas, e endosso a ideia do pequeno jardim como fragmento do ecossistema envolvente, tendo em vista sua adaptabilidade e, em consequência, a própria sustentabilidade da área verde. Mas também temos que levar em conta outras informações, como as limitações do mercado produtor nacional e, mais tristemente ainda, da produção regional de mudas para uso paisagístico, sobretudo quando atuamos em biomas pouco valorizados e conhecidos, como ocorre com o Cerrado e a Caatinga. E em certas circunstâncias, esse pequeno detalhe pode inviabilizar completamente a criação de jardins com espécies nativas.

Considero importantíssimo o papel do paisagista, do ponto de vista educativo e como elemento que deve contribuir para o rompimento do círculo vicioso dos viveiristas dedicados à produção de plantas ornamentais, mas sabemos que as mudanças no setor ocorrem de forma bem mais lenta do que desejamos, sem qualquer sincronia com os cronogramas apertados estabelecidos por nossos clientes.

O homem e o meio

Ao longo de sua existência, o homem passou de mero coadjuvante no reino animal a poderoso transformador do meio, alterando a seu gosto praticamente toda a superfície do globo. Desde muito cedo, aprendeu a fazer queimadas e empregou tal conhecimento como estratégia de domínio de novos territórios, limpando campos para facilitar a visualização do terreno e tornar a caça mais vulnerável. Além disso, as clareiras serviam para afastar animais selvagens, bruxas e monstros da floresta – perigos reais e imaginários. Os indígenas, os aborígenes e os construtores de loteamentos fazem assim até hoje.

Yuval Harari (5) conta que os homens modernos já tinham dominado a técnica da queimada quando chegaram à Austrália, há longínquos 45 mil anos. Diante daquele ambiente estranho e quiçá hostil, não perderam tempo para atear fogo em extensas florestas impenetráveis. Hoje, quando um brasileiro pensa na Austrália, logo vem à mente a praga dos eucaliptos (6), mas na época eles eram raros na região de origem e, por serem muito resistentes ao fogo – em virtude de reterem muita água em seu cerne –, foram os únicos que sobreviveram, espalhando-se por toda parte, enquanto outras espécies de árvores e arbustos desapareceram.

Os homens modificaram brutalmente não só a ecologia australiana, mas também a de outras grandes regiões, eliminando plantas e animais locais julgados inconvenientes e introduzindo os já domesticados trazidos de longe. Vacas, cabras, javalis e galinhas, que antes estavam limitados a pequenos nichos na África e na Ásia, hoje estão disseminados por todo o mundo. Os povos da América Central domesticaram o milho e o feijão, enquanto os sulamericanos se dedicaram às batatas e os do norte às abóboras. Atualmente, esses alimentos são cosmopolitas. Da Nova Guiné, herdamos a cana-de-açúcar e a banana; da China, o arroz; do Oriente Médio, o trigo – uma gramínea silvestre entre tantas outras, inicialmente confinada a uma pequena região, mas que converteu-se em um dos pilares da alimentação mundial. Se fôssemos aplicar o conceito brasileiro em voga no momento, do plantio exclusivo de espécies nativas, só cultivaríamos batata e inhame por aqui.

Na Europa Central, por exemplo, já não existe nenhum espaço intocado (7). As florestas originais desapareceram há séculos, inicialmente queimadas ou derrubadas a golpes de machado, e mais tarde pelos arados dos agricultores ancestrais. Os bosques agora encontrados aqui e ali decorrem de hercúleas empreitadas de plantio, ou seja, não são florestas naturais. Portanto, não se tem certeza se todas as espécies vegetais encontradas nesses locais são exatamente as originais da região, e é até mais provável que não sejam, já que os conceitos de ecossistema e respeito às suas relações bióticas são bastante recentes, bem posteriores ao estabelecimento de muitos desses arvoredos. Em suma, que espécies devem ser consideradas nativas em lugar tão alterado?

O homem sempre manifestou fascinação pelo diferente, pelo exótico, pelo que não existe em sua região, e transferiu de um lado para outro tudo que encontrou pelo caminho, de gladíolos a temperos, de gardênias a frutas e, mesmo sem desconfiar, de ervas daninhas a pragas. Como se sabe, o Jardim Botânico do Rio de Janeiro iniciou suas atividades no despertar do século 19 com o intuito explícito de aclimatar plantas exóticas, entre elas, especiarias e árvores frutíferas. Naquele momento, tratava-se de questão econômica de vital importância para a Coroa. Os naturalistas Spix e Martius, que aqui estiveram menos de uma década após sua fundação, relatam (8) que o sítio já contava com mangueiras e alamedas de “árvores-do-pão do Oceano Pacífico”, sendo o chá chinês “o mais importante objeto de cultivo”, entre diversas plantas da Índia Oriental, como “a caneleira, o craveiro-da-índia, a pimenteira, o gneto, a noz-moscada, a caramboleira”, e por aí vai. É muito pouco provável que hoje se possa medir com precisão as alterações provocadas pela implantação do Jardim Botânico naquele trecho de Mata Atlântica, bem como a real área de abrangência da intervenção.

Há que se considerar ainda o estrago que os descobridores europeus provocaram em quase todo nosso território, em busca do pau-brasil, do ouro e de outras riquezas pátrias. Outro caso notável no Rio de Janeiro vem a ser a supressão total da vegetação da região hoje denominada Floresta da Tijuca, em função da cultura cafeeira, posteriormente reflorestada pelo Major Archer e sua equipe de escravos com critérios certamente diferentes dos que adotaríamos hoje. Com isso, quero dizer que também não conhecemos as nossas matas nativas, com exceção do que sobreviveu através de relatos dos viajantes naturalistas e de pequenos trechos que supomos inalterados, sem saber se são mesmo.

Nos últimos anos, desenvolvemos uma série de preocupações com relação à introdução de espécies estranhas aos ecossistemas, pois adquirimos conhecimentos mais profundos sobre plantas invasoras, pragas e seus respectivos predadores, polinização, associações entre espécies e famílias botânicas, interações entre flora e fauna, disseminação de sementes e diversas outras informações inerentes ao equilíbrio ecológico, até bem pouco tempo desconhecidas ou negligenciadas. O problema é que todo esse conhecimento veio acompanhado por um certo radicalismo.

Nativas x exóticas

Como comentei antes, hoje consideramos nativas as espécies vegetais que pensamos ser originais (9) do nosso extenso território, mas para que determinada espécie seja considerada efetivamente nativa, é preciso levar em conta uma região muito menor e se orientar pela natureza, e não pelas fronteiras criadas pelo homem. Plantas são organismos autóctones que se instalam em locais que possam prover suas necessidades biológicas e físicas, como oferta de água, tipo de solo, topografia, ventos etc (10).

Bosque denso formado na margem do rio Mambucaba
Foto Eduardo Barra

Cito um exemplo. Em Mambucaba, vila residencial situada no município de Paraty RJ, tive a oportunidade de desenvolver projetos de regeneração ambiental para duas pequenas áreas distantes apenas 600 metros entre si, mas que representam ecossistemas com características completamente distintas – restinga e mata ciliar da planície costeira. Na certa, boa parte das espécies nativas plantadas em uma das áreas não teria chance de sobreviver na outra, jogando por terra qualquer ideia ampla e generalista de espécie nativa.

Parque de educação ambiental implantado em terreno costeiro situado próximo à foz do rio Mambucaba. Apesar da pequena distância entre as duas áreas, encontramos ecossistemas completamente diferentes entre si. O conceito generalista de espécies nativas não
Foto Eduardo Barra

Sabemos que existe uma grande diferença entre espécie exótica – imigrante, como denomina Wohlleben (11) – e espécie invasora. Ambas estão fora do seu bioma original, mas a espécie imigrante não se reproduz descontroladamente e, portanto, não ameaça os ecossistemas nativos. Como exemplo, temos a falsa-seringueira ou ficus-italiano (Ficus elastica), cuja polinização depende de uma vespa que só existe em seu hábitat natural, a Índia; aqui, só se reproduz por estaca e, portanto, depende do homem. Wohlleben afirma que a maioria das espécies imigrantes é inofensiva para as árvores nativas e que, sem a ajuda do homem, muitas desapareceriam em, no máximo, dois séculos. Quanto a isso, não posso garantir, mas o autor é especialista no assunto.

Couroupita guianensis, da Amazônia, introduzida por Burle Marx e Luiz Emygdio no Rio de Janeiro
Foto Eduardo Barra

Em seu artigo “Vegetação nativa: desdobramentos e perspectivas no processo paisagístico” (12), Lucia Maria Sá Antunes Costa relata que Roberto Burle Marx e o botânico Luiz Emygdio de Mello Filho introduziram diversas espécies de outros biomas brasileiros no Rio de Janeiro (grande parte no Parque do Flamengo), bem como espécies asiáticas, com efeitos notáveis, que contribuem para despertar o interesse da população pelos elementos naturais e, consequentemente, pela própria natureza, sem registros de que tenham provocado problemas ambientais. Há pouco assisti no YouTube a um vídeo em que o agrônomo Harri Lorenzi orgulhosamente apresenta uma trepadeira de bela floração amarela (13) que introduziu em seu jardim botânico privado, contando que planeja apresentá-la aos viveiristas, para que entre em produção comercial. Que embates Lorenzi e os produtores de plantas ornamentais ainda enfrentarão com os radicais verdes?

Pseudobombax ellipticum, da América Central, introduzida por Burle Marx e Luiz Emygdio no Rio de Janeiro
Foto Eduardo Barra

No outro lado do grupo das espécies exóticas, encontram-se as invasoras (14), que demonstram proliferação exagerada e ameaçam os biomas, provocando a redução da biodiversidade. Essas devem ser evitadas a todo custo e criteriosamente extirpadas sempre que possível. Um dos casos mais terríveis e bastante conhecido dos brasileiros vem a ser a leucena (Leucaena leucocephala), trazida ingenuamente da América Central na década de 1940, como forrageira, mas que alastrou-se desastrosamente por todo o País. Outro exemplo digno de nota é a jaqueira (Artocarpus heterophyllus), que dispersa anualmente centenas ou até mesmo milhares de sementes viáveis, ampliando ainda a área de dispersão natural quando situada em encostas – como é corriqueiro nas vertentes da Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro.

Leucena, invasora agressiva
Foto Eduardo Barra

Jaqueira, invasora agressiva
Foto Eduardo Barra

Jardim, produto cultural

A concepção de que a natureza precisa ser transformada para poder ser plenamente usufruída pelo homem vem dos primórdios da nossa existência, com certeza intensificada e aprimorada a partir do momento em que as sociedades começaram a substituir práticas nômades pelo sedentarismo (15).

O jardim é um produto cultural resultante de intervenções humanas que levam em conta o ambiente, os recursos naturais, a paisagem envolvente, aspectos socioeconômicos, a concepção estética do momento e de vida de seus usuários, e uma gama enorme de outras condicionantes. Jardim, portanto, é um produto artificial, podendo se aproximar mais ou menos de um resultado estético naturalístico e respeitoso com as relações bióticas envolvidas em sua composição.

Roberto Burle Marx deixava clara sua posição a respeito:

“Se me indagassem qual a primeira atitude filosófica assumida para o meu jardim, logo responderia ser exatamente a mesma que traduz o comportamento do homem neolítico: aquela de alterar a natureza topográfica, para ajustar à existência humana, individual e coletiva, utilitária e prazerosa. Existem duas paisagens: a natural, existente, e a humanizada, construída” (16).

E José Tabacow complementa:

“Uma de suas frases mais frequentes, ‘o jardim é natureza organizada pelo homem e para o homem’, elimina qualquer dúvida quanto a uma intenção ‘naturalística’ em suas composições” (17).

Na prática, o paisagista brasileiro ainda tem que enfrentar a limitação do mercado produtor de espécies ornamentais, tendo em vista que as exóticas gozam de favoritismo, detalhe que reflete a demanda do público em geral e dos colegas paisagistas em particular (18).

Pretender que um punhado de jardineiras de concreto sobre a laje de um prédio ou mesmo o pequeno quintal isolado de uma residência urbana venha a contribuir efetivamente para a recuperação ambiental da região, soa como fantasia. A expectativa de quem defende esse pensamento é de que esses microambientes venham a se somar, coalescendo em uma grande mancha verde salvadora. Pode ser, vamos torcer, mas para que o conjunto desempenhe efetivamente esse papel, precisaríamos que todos os projetos do conjunto se integrassem dentro de um planejamento regional, que levasse em conta a diversidade de espécies, a densidade de indivíduos arbóreos por hectare, as interações com a fauna e muitos outros aspectos.

A verdade é que não existe planejamento urbano ambiental e muito menos planejamento macropaisagístico, e os órgãos que poderiam se responsabilizar pela matéria sequer analisam os projetos paisagísticos que caem em suas mesas, limitando-se a revisar suas insossas listas de plantas. A meu ver, deveriam tentar compreender as condicionantes científicas, físicas e artísticas que levaram os profissionais projetistas a especificar estas ou aquelas plantas, as associações, interações e contrastes morfológicos propostos, mas não o fazem. Talvez por isso, sintam-se com liberdade para vetar espécies e determinar o uso de outras não consideradas pelos autores dos projetos.

Desventuras de um paisagista

Além de enfrentar o reduzido elenco de plantas nativas oferecidas pelo mercado produtor, o paisagista precisa aprender a conviver com uma série de critérios obscuros e objeções incompreensíveis ao desenvolver projetos para áreas públicas (19).

O projeto que desenvolvi para a extensa área afetada pelas obras da Linha 4 do metrô carioca na Barra da Tijuca (Estação Jardim Oceânico e arredores), escavada em terreno arenoso repleto de conchas e outras evidências praianas pelo menos até a profundidade de 10 metros – constatação feita durante visita às obras –, teve espécies como Andira fraxinifolia, Neomitranthes obscura, Sophora tomentosa e a cactácea Piloscereus arrabidae rejeitadas pelo órgão competente, por tratarem-se de “espécies de restinga que apenas apresentam bom desenvolvimento em solos arenosos”. Deu para entender? O órgão estava tentando me explicar que espécies de restinga não se adaptam bem na Barra da Tijuca.

As escavações para as obras do metrô, na Barra da Tijuca, demonstram a natureza arenosa do subsolo a cerca de 8 metros de profundidade
Foto Eduardo Barra

Nessa mesma oportunidade, fui informado que não seria mais admitido o plantio de qualquer espécie do gênero Erythrina, tendo em vista que E. speciosa vinha apresentando problemas fitossanitários na cidade e, a partir deste fato, considerou-se preferível condenar o gênero por completo.

Obras da estação metroviária Jardim Oceânico: muitas conchas visíveis na cota -10,00m
Foto Eduardo Barra

Caso similar ocorreu com a espécie Triplaris brasiliana. Como o exemplar jovem da espécie mantém semelhança morfológica com T. surinamensis – essa sim, inscrita na lista das espécies exóticas invasoras do município (Resolução SMAC nº 554, de 28/03/14) –, sua utilização “requer comprovação da identificação botânica” (todas requerem) e, como pode ser confundida, também foi sumariamente proibida.

Em outro projeto, enfrentei situação parecida com relação ao emprego de Dracaena arborea. Levando em conta que a planta tem origem incerta – portanto, exótica – e que outra espécie do gênero, D. fragrans, apresenta potencial invasor, o órgão decidiu por vetá-la. Ou seja, se seu primo é criminoso, você também será tratado como tal.

Em substituição a argumentos técnicos convincentes, os órgãos públicos costumam determinar que se evite algumas espécies simplesmente por serem “de difícil obtenção e produção em viveiro”, verdade institucional que se sobrepõe à própria vivência profissional do projetista. Nos casos em questão, relatei que havia adquirido, pouco tempo antes, mudas desenvolvidas daquelas espécies e o plantio havia sido bem sucedido, mas meu depoimento não soou convincente para os técnicos. Talvez pelas dificuldades administrativas e financeiras do Rio de Janeiro, ou por dificuldade de assumir responsabilidades, fico com a impressão de que os técnicos não querem arriscar novas alternativas, preferindo optar pela mesmice e recomendar enfaticamente o restrito rol das espécies que “deram certo”. Por exemplo, aldrago (Pterocarpus violaceus) é considerada espécie bem vinda, portanto, deve ser especificada e substituição a qualquer outra mais “complicada”; sem qualquer justificativa técnica, “recomenda-se” usar Handroanthus serratifolius em lugar de H. chrysotrichus (da restinga), mesmo em regiões de restinga, e substituir a proibida Erythrina speciosa por Paubrasilia echinata, assim como Tibouchina granulosa por Schinus molle, apesar das diferenças de porte e floração entre elas, contando ainda com o detalhe desta última ocorrer predominantemente em campos de altitude ou regiões subtropicais brasileiras.

Tibouchina granulosa. Efeitos paisagísticos completamente diferentes, mas não levados em consideração pelo órgão competente
Foto Eduardo Barra

De outra vez, tentei utilizar o nativo e já citado Piloscereus arrabidae em um jardim ornamental, mas como o jardim não se situava na beira da praia – e sim na encosta voltada para o mar, submetida a ventos fortes carregados de salinidade –, o órgão competente achou que não mantinha “relação com a área do plantio”. Na verdade, nenhuma herbácea praiana, mesmo que nativa, foi admitida na situação de encosta – todas aparentemente vetadas pela altitude, um novo conceito para mim –, com exceção da forrageira Sphagneticola trilobata, não prevista no projeto, que “apesar de ser mais comumente encontrada em restingas e, segundo a literatura, ter caráter invasor”, foi recomendada para o mesmo local, em substituição à exótica Spathiphyllum cannifolium, embora os portes, florações, folhagens e efeitos paisagísticos das duas espécies sejam completamente diferentes. E quanto ao “caráter invasor” da planta, nenhum comentário esclarecedor. Fiquei confuso.

Schinus molle à direita. Efeitos paisagísticos completamente diferentes, mas não levados em consideração pelo órgão competente
Foto Eduardo Barra

Há uma infinidade de plantas nativas ainda desconhecidas ou não experimentadas em paisagismo. A luta de todo paisagista consciente passa por sua valorização e difusão entre colegas, viveiristas e o público em geral. Fernando Chacel, por exemplo, dedicou-se particularmente à vegetação do manguezal e da restinga, e hoje vemos plantas por ele introduzidas sendo empregadas rotineiramente em projetos paisagísticos. Uma de suas grandes contribuições, penso ser a norantea (Schwartzia brasiliensis), de grande beleza e a cada dia mais presente nos jardins litorâneos, embora de forma ainda bastante tímida. Por outro lado, cabe lembrar que o próprio paisagista não se furtou a empregar espécies exóticas em seus jardins, sempre que as considerava compatíveis e harmoniosas com a flora local. A meu ver, uma atitude madura e consciente.

Pandanus utilis (exótica), usada por Fernando Chacel em seus trabalhos emblemáticos da Barra da Tijuca, com resultados fabulosos e completamente integrados à fisionomia do ecossistema
Foto Eduardo Barra

notas

1
MARX, Roberto Burle. Roberto Burle Marx: arte & paisagem. Organização e comentários de José Tabacow. 2ª edição. São Paulo, Studio Nobel, 2004.

2
Na Gleba E (atualmente Condomínio Península), no Parque Mello Barreto e em outros empreendimentos na Barra da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro, e posteriormente no Condomínio Jardim do Lago, em Búzios RJ.

3
Apenas a título de exercício mental (e piada), podemos supor que o Brasil venha a conquistar países vizinhos, incorporando-os ao seu território, ou mesmo que estabeleça colônias do outro lado do Atlântico. Segundo a lógica atual, assim o país ampliaria consideravelmente seu plantel de espécies “nativas”, passíveis de serem utilizadas em qualquer ponto de seus domínios.

4
Afinal, sou coorganizador de um livro que tem como objetivo principal a valorização da flora autóctone pelos profissionais de projeto: BARRA,‎ Eduardo; TÂNGARI,‎ Vera Regina; SCHLEE,‎ Mônica Bahia; BATISTA, Márcia Nogueira (org.). A vegetação nativa no planejamento e no projeto paisagístico. Rio de Janeiro, RioBooks, 2015.

5
HARARI, Yuval Noah. Sapiens, uma breve história da humanidade. Porto Alegre, L&PM, 2017.

6
Quem já teve a oportunidade de circular pelo interior do Espírito Santo, por exemplo, sabe do que estou falando.

7
WOHLLEBEN, Peter. A vida secreta das árvores. Rio de Janeiro, Sextante, 2017.

8
SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo, Melhoramentos, 1976.

9
Para tanto, precisamos estabelecer uma data, pois sabemos que os ecossistemas atuais se estabilizaram há apenas 4.000 anos, portanto, não mantêm as mesmas características da época dos dinossauros, por exemplo. Original, no caso, não se refere à origem.

10
WOHLLEBEN, Peter. Op. cit.

11
Idem, ibidem.

12
BARRA,‎ Eduardo; TÂNGARI,‎ Vera Regina; SCHLEE,‎ Mônica Bahia; BATISTA, Márcia Nogueira (org.). Op. cit.

13
Petraeovix bambusetorum, originária do sudeste asiático.

14
Ver lista de espécies invasoras do Município do Rio de Janeiro. Resolução SMAC nº 554, de 28/03/2014.

15
BARRA, Eduardo. Composição formal e organização funcional da vegetação nativa no projeto paisagístico. In BARRA,‎ Eduardo; TÂNGARI,‎ Vera Regina; SCHLEE,‎ Mônica Bahia; BATISTA, Márcia Nogueira (org.). Op. cit.

16
MARX, Roberto Burle. Op. cit.

17
Idem, ibidem.

18
BARRA, Eduardo. Op. cit.

19
Refiro-me ao município do Rio de Janeiro, pois desconheço a dinâmica de outros locais.

sobre o autor

Eduardo Barra é arquiteto (UFRJ, 1976) atuante nas áreas de arquitetura paisagística, desenho urbano e meio ambiente. Autor do livro Paisagens Úteis: escritos sobre paisagismo, publicado pelas editoras Senac São Paulo e Mandarim (2006) e vencedor do Prêmio IAB-RJ (2009) é titular exclusivo do Studio Eduardo Barra.

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212.00 paisagismo
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