Ao que tudo indica, poucas vezes a figura do falecido engenheiro-arquiteto Elgson Ribeiro Gomes esteve em tamanha evidência. O legado deixado pelo ex-professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Paraná, é manifesto em diversos trabalhos académicos que tratam da arquitetura curitibana, entre os quais – apenas para citar alguns – os de Luís Salvador Petrucci Gnoato (1), Irã Taborda Dudeque (2) e Paulo César Braga Pacheco (3). Mais recentemente, seu filho, Péricles Varella Gomes, organizou um volume intitulado O telhado lá de casa: vida e obra de arquiteto, no qual dispõe os relatos de Elgson Gomes a respeito de seus colegas, das ruas e casas onde morou, e da parceira de vida desenvolvida com a sua esposa, Maria Varella Gomes (4).
Não obstante, o profissional formado na Faculdade de Arquitetura da Universidade Presbiteriana Mackenzie em 1958, que trabalhou com Adolf Franz Heep nos primórdios da carreira e que sonhava “elaborar algum dia, algumas teses de Doutorado...” (5), teria uma de suas obras mais importantes, o Conjunto do Edifício MAPI, destacado em matéria publicada no dia três de janeiro de 2017, intitulada “um ícone da arquitetura modernista na orla paranaense” (6). A citação de Salvador Gnoato na reportagem, “é um clássico da arquitetura moderna paranaense e a obra mais importante para a urbanização do balneário” (7), confirma que, evidentemente, trata-se de uma obra arquitetônica de grande repercussão. Razão pela qual não prescinde de estudos mais acurados, realizados com toda a recomendação de cautela.
Às contribuições anteriores, acredita-se ser possível acrescentar novas perspectivas interpretativas, bem como uma atualização sobre o atual estado de conservação do edifício e após as sucessivas modificações pelas quais a construção passou ao longo dos anos. Localizado no Balneário de Caiobá, mais especificamente no município litorâneo de Matinhos PR, o Conjunto desenvolvido para a construtora MAPI é um verdadeiro complexo, composto pelo Edifício Caiobá, o Hotel Parque Balneário, o Restaurante Panorâmico, o Parque das Piscinas, o Edifício-garagem e por uma pequena capela sobre as rochas. Obras que, embora tenham sido parcialmente executadas, ainda assim requerem valorizações que trespassem o universo da opinião, aprofundando as bases para o debate científico e o exercício crítico.
Afinal, admitir um certo grau de relativismo e subjetividade na análise arquitetônica não significa aceitar indiscriminadamente tudo aquilo que é oferecido como verdade incontestável. Diversas características presentes no projeto o fizeram ser considerado como uma magnis máxima, isto é, uma obra de grandes causas e de igualmente grandes efeitos. Entretanto, discordâncias retumbantes há que conduziram a crítica dos seus defensores e depreciadores aos extremos ocupados pela afeição e pela repulsa. Recorrendo-se à perscrutação ante a descrição dos edifícios, o presente estudo procura situar-se nesse interstício entre o louvor e o menoscabo, reconhecendo na polémica e na controvérsia propriedades do processo de formação do conhecimento.
O conjunto do edifício MAPI
Nascido em Florianópolis, Elgson Ribeiro Gomes (1922-2014) mudou-se com os pais para Curitiba de maneira a prosseguir com os estudos, pelo que em 1940, foi graduado Engenheiro Civil pela Universidade Federal do Paraná – UFPR (8). Em 1946, com o intuito de aprimorar-se profissionalmente, matriculou-se na Faculdade de Arquitetura da Universidade Mackenzie, em São Paulo, embora tenha tido de interromper os estudos por não conseguir saldar as mensalidades (9). Quando finalmente arranjou dinheiro para pagá-las, suspendeu novamente as atividades académicas por não ser capaz de acompanhar a turma (10). Para tal, seria necessário melhorar as suas habilidades como desenhista, o que o levou a conhecer Adolf Franz Heep (1902-1978) (11):
Para estudar desenho, fui durante dois anos todas as noites frequentar a Associação Paulista de Belas Artes, onde conheci um alemão sardento, de cara larga, de baixa estatura, todo raivoso. O nome deste alemão era Adolf Franz Heep, arquiteto-chefe da empresa do Jacques Pilon. [...] Apesar de um dia inteiro de atividades no Pilon, o Heep ainda ia à noite muitas vezes desenhar na Associação Paulista de Belas Artes, que só deixou de frequentar quando fundou seu próprio ateliê de projetos, ao qual me filiei por 10 anos, de 1949 até 1958 (12).
Adolf Franz Heep (1902-1978) nasceu na antiga Tchecoslováquia, estudou arquitetura na Escola de Artes e Ofícios de Frankfurt am Mein, e teve como professores Walter Gropius e Adolf Meyer (13). Mais tarde, mudou-se para a França onde ganhou prestígio ao trabalhar como colaborador de Le Corbusier. Lá, associou-se a Jean Ginsberg e conviveu com personalidades como Gertrude Stein, Matisse, Modigliani, Soutine, e Helena Rubinstein. Decorridos quinze anos, migrou para São Paulo e trabalhou no escritório de Jacques Pilon e Henrique Mindlin até abrir o gabinete na rua Barão de Itapetininga, 140, 4ª andar (14). No Brasil Heep projetou uma grande quantidade de edifícios de quitinetes, atendendo às demandas do mercado imobiliário, sobretudo par a construtora Otto Meinberg (15).
A construção de uma série de edifícios habitacionais consoante um mesmo esquema tipológico chegou a ser considerada um indicador de “fidelidade a um dos princípios da arquitetura moderna racionalista,” tanto por empregar elementos construtivos fabricados em série, quanto por promover respostas às necessidades espaciais de um homem idealizado (16). O sincretismo de ideias de Walter Gropius e Le Corbusier presente em suas obras teria influenciado um número considerável de arquitetos, entre os quais Herman José Weinberg, Ivan Gilberto Castaldi, Gilberto Dutra, Moisés Soriano, Tereza Katinsky, Lourival Guimarães, Heinz Weder, Dario Montesano e Elgson Ribeiro Gomes (17). Este, a partir de meados da década de 1950 conceberia em parceria com Heep, dois edifícios eloquentes no território paranaense.
O Edifício Souza Naves - IPASE (1953-1954), construído na capital Curitiba, e o Edifício MAPI (1958-1959), erguido no Balneário de Caiobá (18), motivaram o retorno definitivo de Elgson Ribeiro Gomes ao Estado do Paraná. O primeiro, resultado de um concurso informal fechado, isto é, realizado a partir de um convite pela comissão organizadora (19); o segundo, fruto da amizade de Elgson com Osmam Pierri, um dos incorporadores do empreendimento. Para Gnoato, “A ideia de ter muitas unidades habitacionais o fez [o MAPI] um edifício não elitista, uma arquitetura para o homem comum. Mais um traço do modernismo clássico” (20). No entanto, averígua-se que apesar dos 15.000 m² construídos, certamente não foi essa a razão primordial para a existência do edifício:
Em 1957, encontrei num café do [Vale do] Anhangabaú, numa bela manhã, um antigo contemporâneo da Escola de Engenharia que também havia sido meu colega de trabalho na região carbonífera de Criciúma no Departamento Nacional de Produção Mineral, e que há muitos anos não via. Soube que estava morando em São Paulo, onde pretendia fundar uma grande empresa, pois que tinha um sócio, o Sr. Reynaldo Massi, que era um importante cafeicultor no norte do Paraná e que queria diversificar os seus investimentos. Sem saber eu, iniciava-se naquele instante o processo do meu retorno para o Paraná, que se deu de fato dois anos depois com o projeto daquele edifício que todos hoje conhecem como Edifício do MAPI, em Caiobá. ‘MA’ de Massi e ‘PI’ de Pierri, MAPI. O Edifício do MAPI é um projeto do Heep, e alguns o consideram até hoje um dos melhores projetos de Caiobá. Mas o que eu quero enfatizar é que o Osman Pierri queria um projeto de um edifício de ótimos apartamentos para vender para as pessoas do Country e do [Clube] Curitibano, uma espécie de Volkswagen, onde ele pudesse construir pelo menor custo, por ser pequeno, e vender pelo maior preço, por ser para um comprador rico. Volkswagen de rico. Participei por inteiro desse projeto (21).
No ínterim compreendido entre décadas de 1940 e 1950, verifica-se um aumento considerável no número de residências de verão, pelo que infere-se que as praias de Caiobá tenham caído no gosto dos paranaenses. Atrações como o Grande Hotel Cayobá, frequentado por famílias tradicionais do Estado como os Gomm, vinculados à produção de erva-mate (22), contribuíram sobremaneira para a popularização da região. Sem embargo, o Edifício MAPI viria a ser uma grande aposta na exploração do potencial turístico da região, cujos apartamentos ociosos fora de temporada e o alto custo venal tornaram-no muito distante do que, num país como o Brasil e mais especificamente num Estado como o Paraná, poderia vir a ser considerado como um exemplar de construção não-elitista.
A despeito da dificuldade em transportar os equipamentos e materiais indispensáveis à construção de um grande edifício dos anos 1950, o terreno sito na porção noroeste do sopé do Morro-do-Boi não poderia ter uma melhor condição de localização. O morro, para além das evidentes dimensões monumentais, possui uma silhueta característica que o destaca da envolvente, transformando-se num marco referencial (23) da paisagem do Balneário. Ponto focal da Praia Brava e divisor natural entre esta e a praia Mansa, guardava consigo o potencial de ser transformado num importante entroncamento. Situação que não só se tornou verdadeira após a implantação do edifício, como também foi sabiamente utilizada pelos projetistas que o contrapuseram à montanha, adicionando à vocação original do lugar um marco referencial artificial.
Sabe-se que, de fato, uns edifícios são mais eloquentes do que outros, seja devido aos fortes círculos de presença que a monumentalidade causa perante os demais, seja devido à iconicidade que pode até mesmo transformá-los em monumento (24). Nesse sentido, o Edifício MAPI é tanto monumental, quanto icónico, independentemente de qual tenha sido a intenção dos seus autores. Se “para Heep, o valor reside no que é sólido, no que é bem estruturado e bem construído a partir de uma base firme e consistente” (25), para Gomes não era diferente. Ainda assim, hoje o seu projeto continua a assumir múltiplas facetas, entre as quais a ideia de que como um “quadrado perfeito [...] absolutamente racionalista, transcende qualquer aparato estético” (26).
Ora, à parte de qualquer tentativa de classificação ética ou estética, o que não convém transcender é o bom senso. Este sim, talvez tenha sido um princípio norteador do projeto original do conjunto, que consistia num edifício laminar em altura com dezesseis pavimentos, térreo e mezanino; num edifício triangular com um pavimento elevado sobre pilotis; num edifício de planta retangular com seis pavimentos e um térreo; numa capela de planta trapezoidal; e num edifício-garagem composto por dois blocos com quatro pavimentos. Na proposta de implantação das edificações, ocorreria uma extensão da rua e dos espaços públicos circundantes através dos acessos aos blocos que, unidos por um amplo passeio, conectariam o lote na direção Norte-Sul e Leste-Oeste.
Os espaços vazios sob os edifícios permitiriam a livre-circulação de pessoas, bem como um acesso para o morro, localizado a Leste, pela porção Sul, que contava com uma escadaria que percorreria todos os patamares do edifício-garagem. Atitude reiterada na elevação do bloco do restaurante – ou salão de eventos – sobre pilotis, o que também propiciava vastas áreas sombreadas destinadas à permanência e ao embarque e desembarque de veículos. Para além dos recintos de sombra, a resposta às condições climáticas impostas pelo clima quente e úmido do verão revela-se presente tanto no amplo uso do elemento vazado, ou cobogó (27), na composição de diversas estruturas como os corredores de acesso ao edifício de apartamentos, quanto na disposição dos ambientes.
Ao observar os documentos originais, não se pode afirmar que o conjunto fosse articulado em torno de uma piscina que seria “um capítulo à parte, integrada às pedras e vegetação do morro vizinho” (28). Mas antes – e não seria essa uma suposição despropositada – a associação entre o edifício da capela, o restaurante e o grande bloco de apartamentos conformariam um espaço de transição entre a esfera pública e a privada. Deste modo, o espaço atualmente destinado à piscina seria um recinto de lazer cuja delimitação não dar-se-ia por grades ou diferenças de nível, mas, lateralmente, pelas rochas e pelo bloco do restaurante e, ao fundo, pelo grande bloco de apartamentos. Assim como o passeio interno seria uma extensão da rua, esse espaço semiexterior operaria como um prolongamento da própria praia.
No entanto, esta configuração pensada, por diversas razões, não foi a construída, a começar pelo bloco do edifício-garagem. Localizado a sudeste, este edifício teria os pavimentos desnivelados entre si a meia cota de altura interligados por duas rampas consoantes ao sentido de circulação dos veículos. Recurso que compensava as diferenças de cota de nível presentes no terreno e possibilitava o abrigo de cisternas. Interligados por uma escada externa – anteriormente mencionada – os pavimentos seriam encimados por uma laje plana transformada em terraço. A edificação contaria, ainda, com um painel – composição de estruturas geométricas sobressalentes afixadas nas extremidades inferior e superior – destinado à vedação dos pavimentos e ao suporte de vegetação trepadeira.
Fronte à rua e em frente ao edifício-garagem, foi edificado o bloco do hotel cuja falta de uma manutenção cuidadosa poderia ter resultado na descaracterização do conjunto arquitetônico, caso este não tivesse sido parcialmente destruído pelo projeto de “reforma” que optou por “corrigir as imperfeições da fachada de uma antiga construção em apenas 60 dias” (29). Alteração que em nome da neutralidade pretendeu ser precisamente aquilo que não foi: a recuperação da integridade do edifício. Ao recobrir a fachada principal com “mil m² de ACM” (30), ocultou-se o revestimento externo em pastilhas de vidro de coloração azul-claro que revestem também o grande bloco de apartamentos, o que acarretou em perda da materialidade e da relação existente entre os dois blocos.
A configuração especial proporcionada pela repetição regular dos anteparos verticais de proteção solar, em virtude de a fachada estar orientada a Leste, foi simplesmente aniquilada. Os paramentos que outrora salvaguardavam as esquadrias da incidência direta dos raios solares deram lugar aos vidros espelhados que refletem, em tons de verde, a pobreza arquitetônica da envolvente. Os quartos contíguos, conectados por um corredor paramentado por elementos vazados abertos para a encosta do morro do Boi, tiveram a ventilação natural –propiciada pelas aberturas basculantes junto ao teto, sobre as esquadrias – substituída pelo condicionamento artificial do ar. Do projeto original, muito pouco restou: apenas as janelas dos banheiros, portas dos elevadores e a estrutura da escadaria foram mantidas.
Destacavam-se no projeto aparentemente simples, contudo cuidadosamente resolvido – tal e qual tantos outros assinados por Franz Heep – as resoluções tomadas tanto em razão da ventilação natural quanto da circulação do utente. Na secção longitudinal, percebe-se que à medida correspondente a aproximadamente um terço do comprimento da lâmina, inserem-se os volumes destinados à caixa d’água e à circulação vertical. Esta, era realizada através de um elevador e de uma bela escadaria em curva que, apoiada nas extremidades, resultava num espaço vazio central da base ao topo do edifício. Resolução que nada tinha de rudimentar e, aliada ao requinte dos detalhamentos desenhados por Elgson Gomes, traziam complexidade à obra e dificuldades à construção.
A propósito, à medida em que os componentes do conjunto aproximavam-se da praia, mais complexas parecem ter sido as resoluções de projeto tomadas pelos projetistas, sendo o grande bloco de apartamentos um projeto mais complexo do que o edifício vizinho do hotel. Entretanto, as razões da evidente complexidade não advêm das dimensões avantajadas da edificação, tampouco da magnitude ou do largo círculo de presença que ocasiona. Pelo contrário, ela é advinda da sutileza e do exercício hábil dos detalhes: da proposição de marquises sobre o passeio que interligaria todo o conjunto, ao funcionamento das vinte e quatro aberturas basculantes duplas dispostas ao longo da fachada principal. Elgson Ribeiro Gomes, em suas memórias, assim descreve o edifício:
À esquerda da porta de entrada dos apartamentos, no nível do corredor de circulação geral, situa-se a pequena cozinha que estabelece a divisa com o espaço aberto do salão maior no nível mais elevado do apartamento, mediante um pequeno balcão que serve de mesa de refeições e à direita uma que permite o acesso a uma pequena área para tanque e máquina de lavar, mas que permite também que o banhista suba três degraus para o banheiro do qual entra para os quartos pela outra porta de cima. O apartamento foi instalado com dois quartos de dois beliches e armários, podendo também, optativamente, ser instalado com uma cama de casal de 1,4 m de largura. Todos os apartamentos possuem venezianas brancas de madeira de um metro de largura de correr por fora sobre painéis de alvenaria também brancos, num andar da esquerda para a direita e no outro ao contrário, formando uma interessante movimentação da fachada, e as janelas também, que de um metro de largura vão do piso ao teto, com ventilação por básculas para o lado de dentro (31).
Mais uma vez, assim como no prédio do hotel, os apartamentos foram dispostos contiguamente, interconectados por um corredor paramentado por elementos vazados que visavam o favorecimento da ventilação natural cruzada. Embora a ventilação tenha assumido um papel preponderante na organização do projeto, pelo que “dispensa-se o uso de ar-condicionado” (32), a opção por posicionar os banheiros na porção central exigiu o emprego de aeração permanente. Todavia o ordenamento das aberturas, na parte posterior e anterior do edifício, não serviu apenas para facilitar a circulação do ar, mas para, através do emprego de um desnível de cinquenta centímetros entre os planos de laje dos apartamentos, possibilitar a vista tanto da Praia Brava, quanto da Praia Mansa.
Para que o artifício surtisse efeito, foi necessário limitar os elementos vazados que constituem a vedação do corredor exterior à altura das janelas basculantes da área de serviço. Sem embargo, a setorização funcional do ambiente em espaços de serviço, banheiro, quartos, sala e cozinha – apartadas por um balcão de refeições – encontrou, na execução do desnível, concomitância. As diferenças de cotas de nível entre os planos dos pisos também se fazem presentes nos espaços de transição, pelo que não somente o corredor de acesso aos apartamentos e o elevador de serviço encontram-se num nível abaixo dos apartamentos, mas igualmente o hall dos dois elevadores sociais. Estes, instalados à cota de meia altura da circulação horizontal, economizam paradas e destinam-se exclusivamente ao transporte de pessoas.
Há, pois, muitas decisões racionais nas tomadas de decisão do projeto que, contudo, não o tornam isento de imperfeições e de erros categóricos que cometidos durante a sua concepção. Ao passo que o corredor de acesso, orientado a sul, possui prateleiras de luz horizontais por toda a sua extensão, as janelas basculantes dos apartamentos, orientadas a norte, estão completamente expostas, do nascente ao poente. Ainda assim, as respectivas venezianas de madeira pintada de branco criam um movimento randômico na fachada devido à sagacidade dos projetistas em estipular a planta do pavimento-tipo em oposição ao subsequente.
A decisão de abrigar no volume pretendido dez quitinetes e dois apartamentos avarandados nas extremidades do edifício resultou em espaços muito reduzidos e, por conta disso, até mesmo desconfortáveis. A falta de uma maior área para a convivência até poderia ser contornada pela existência de espaços exteriores, uma vez que o edifício operaria como um clube de verão. Entretanto, o cerceamento desses espaços ocorridos desde antes da inauguração do empreendimento, vão de encontro ao próprio pensamento conceptual dos projetistas. Como mencionado anteriormente, tanto os espaços de transição semiexteriores quanto interiores constituíam uma particularidade louvável, patente da implantação do conjunto à entrada dos apartamentos.
O que seria passagem, tornou-se parede ou pano de vidro, de maneira com que o prédio disposto num eixo perpendicular ao da rua acaba por se transformar numa grande barreira, intransponível, que seccionou o lote em duas partes. Por conta desses fechamentos não programados dos espaços vazios do pavimento térreo, realizados numa etapa posterior ao anteprojeto, o conjunto deixou de funcionar como tal. Desvalidas de sua condição inicial, as edificações passaram a operar como construções isoladas, o que certamente contribuiu para as intervenções desastrosas que então se sucederam. Ironicamente, o imóvel mais complexo do conjunto, o restaurante, foi o que sofreu as maiores e mais funestas intervenções.
Localizado na junção do areal da Praiva Brava com a avenida Augusto Blitzkow– beira-mar que se transforma em Avenida Atlântica dois quarteirões a seguir – o edifício-restaurante é o que dispõe das melhores condições de localização e visibilidade. Prisma triangular elevado sobre pilotis, exerce função crucial na conformação do que se chamou de recinto de lazer ao princípio do texto. O projeto era uma aplicação dos conceitos de planta-livre, fachada-livre, pilotis, terraço-jardim e janelas em fita, os cinco pontos da nova arquitetura defendidos por Le Corbusier. O piso térreo, destinado aos serviços, banheiros, café (bar) e acessos à circulação vertical, permitia a fluidez espacial e do solo abrigados sob a cobertura do pavimento superior.
O que na planta-baixa e na implantação se assemelha a uma série de paredes de pedra eram, na verdade, pequeninos muros de arrimo facilmente transponíveis, que não somente ajustavam a plataforma na qual se erguia o edifício, como também estabeleciam através do pequeno desnível, um limite simbólico em relação à envolvente. Uma conexão entre o areal da praia, a rua e os demais prédios do conjunto, entre a área coberta aberta aos utentes interconectada às marquises jamais edificadas. Cobertura propiciada por uma estrutura de vigas entrelaçadas em “X” que constituíam uma grelha sustentada por treze pilares (o central permanecia oculto no interior da parede) regulares e oito pequenos pilares que garantiam a interrupção das vigas para a passagem de duas escadas ortogonais.
Escadas que ao interligar o primeiro pavimento ao térreo, davam para um hall de acesso à rua que contava, ainda, com um pequeno balcão de recepção e sanitários. Numa das “quinas” do prisma triangular que compunha o edifício, uma belíssima escadaria circular transpunha todos os pavimentos, conectando-os ao terraço-jardim estendido por toda a cobertura. Devido ao fato do primeiro pavimento ter pé-direito duplo, os quatro lances de escada (e patamares) que o atravessavam eram sustentados por suspensóis, que também promoviam a entrada de luz. As outras “quinas”, localizadas nas extremidades fachada principal, davam lugar a espaços ajardinados que, alongados até a cobertura, eram vedados por elementos vazados dispostos no primeiro pavimento.
Neste, os elementos vazados e os planos de vidro seriam os protagonistas da relação interior-exterior. Enquanto os primeiros assegurariam a passagem de luz e ventilação, os segundos propiciariam visual para a praia. Entretanto, assim como no bloco de apartamentos, a orientação do edifício em relação ao movimento solar sugere que eles não poderiam estar dispostos a Leste de uma maneira eficaz. Não obstante, na extremidade posterior junto à escadaria suspensa, um jardim de inverno transmutava o ambiente e, se não o tornava mais fresco, alterava a imposição que se fazia sentir devido à imposição da regularidade geométrica sobre os utentes. Do que foi, ou melhor, do que essa edificação teria sido, muito pouco ou nada, infelizmente, restou.
À fachada Leste acrescentou-se um novo salão de refeições para os banhistas. Um espaço térreo que, recoberto por toldos plásticos, foi sendo alterado aos poucos: da nova cobertura de palha ao que hoje poderia ser definido como uma casa genérica de madeira com dois pavimentos encimados por um grande telhado de uma água. Ajustada ao alinhamento predial, num lado, e pegada na parede exterior do edifício-restaurante, noutro, contrapõe-se à arquitetura de Adolf Franz Heep e Elgson Ribeiro Gomes. Dos pouquíssimos arquitetos que poderiam reivindicar às suas obras o estatuto de serem adaptações locais a preceitos desenvolvidos na Europa, estes não o fizeram. Talvez justamente por não verem constrangimento na adopção de uma postura pragmática em relação às dificuldades dos projetos.
O clichê tudo o que poderia ter sido mas não foi para ser aplicado ao conjunto do Edifício MAPI requer alguma adequação. Isso não quer dizer, contudo, que a construção seja má. Tanto não é, que mereceu e continua a merecer estudos mais aprofundados, que saiam do âmbito das relações de causa e efeito simplistas do tipo: trata-se de uma arquitetura que emprega ideias europeias porque um de seus autores era europeu e colaborou com Walter Gropius e Le Corbusier. Apesar de ser um fato, esse modelo de argumentação gera mistificações que mais prejudicam do que contribuem à apreciação de projetos significativos como este.
O ávido se ilude pela própria avidez
Um projeto capaz de ser contemplado como um marco referencial e ponto focal, que cria propicia diferentes barreiras, planos de coberturas, percursos e aberturas; que emprega a luz, cor, textura, escala, movimento e ventilação como questões preponderantes nas tomadas de decisão projetuais; que estabelece associações cognoscíveis entre espaço e estrutura, estratificação, hierarquia e transição espacial, entre tantas outras, poderia perfeitamente bem constar no hall dos célebres da arquitetura brasileira. Tal e qual alguns pesquisadores da arquitetura paranaense desejariam. Entretanto, assim como a criação de lugares transcende o espaço, tornando-se um espaço vivido, a obra arquitetônica transcende seu próprio plano e torna-se tanto condicionante como condicionada pelas circunstâncias.
Circunstâncias que embora sejam, evidentemente, do âmbito disciplinar da arquitetura, a ele não pertencem de maneira exclusiva, como as formais-estruturais-funcionais-tecnológicas-políticas-económicas-sociais-etc. O Conjunto do Edifício MAPI é, pois, um registo do esforço dos seus construtores em erigir um portentoso artefato num sítio ainda pouco desenvolvido como o litoral paranaense. Um investimento de risco que, ao esgotar os recursos financeiros da construtora MAPI, teria sido um dos responsáveis pelo seu fim. Se é verdadeira a afirmação de que o ávido se ilude pela própria avidez, avidum sua saepe de ludit aviditas, a avidez dos idealizadores do projeto teria superestimado as condições da sociedade paranaense da época, às quais este invariavelmente submeter-se-ia.
O retorno aquém do esperado, os desvios de finalidade dos edifícios, e as modificações questionáveis senão técnica, arquitetonicamente, acarretaram numa segregação das componentes do conjunto. Ao serem consideradas isoladamente, as edificações perdem muitas das qualidades anteriormente mencionadas e que poderiam ter feito do projeto algo bastante melhor do que, infelizmente, é. Hoje, essas as construções são categórico exemplo da triste condição pela qual a conservação do património arquitetônico moderno paranaense passa atualmente. O que diriam os seus falecidos autores? Como reagiriam aos ismos impostos à sua obra? Não se sabe ao certo, mas se calhar, mediante os critérios (ou a falta deles) que regeram as útilmas manifestações, o silêncio seria a melhor resposta.
notas
NA - De janeiro de 2008 a janeiro de 2017 realizei diversos registros fotográficos com o intuito de acompanhar as transformações da paisagem urbana no litoral paranaense. Muitas delas contemplaram o Conjunto do Edifício MAPI, conquanto devido à impossibilidade de publicá-las todas, foram selecionadas as que facilitam a compreensão do texto. No final de 2014 e principio de 2015, recebi um presente mais do que especial de Maria Luiza Gomes, filha de Elgson Ribeiro Gomes: tratava-se da publicação das memórias do engenheiro-arquiteto que contribuíram sobremaneira no entendimento da sua maneira de pensar. Por indicação dela, conheci seu irmão, Péricles Varella Gomes, através do qual tive acesso aos arquivos aqui presentes que tratei de digitalizar.
Esses documentos apresentavam diferentes estágios de conservação, pelo que alguns não tinham condições de serem devidamente digitalizados. Também recorri, portanto, a outras técnicas de digitalização como a sobreposição de recortes fotográficos, sobretudo nos desenhos mais deteriorados. A planta do pavimento-tipo era, talvez, a que estava num estado mais crítico, a partir do que a imagem que aqui se dispôs é um redesenho desta, realizado ainda em vida pelo próprio Elgson Gomes. Ainda assim, digitalizei essas pranchas que, aliadas ao acervo da Prefeitura e as fotografias de época, complementam o acervo documental do conjunto arquitetônico. À família de Elgson Gomes e, em especial à Maria Luiza e Péricles Varella, os meus mais respeitosos e sinceros agradecimentos.
1
Ver: GNOATO, Luis Salvador Petrucci. A arquitetura de Curitiba, transformações do Movimento Moderno. Orientador Bruno Roberto Padovano. Tese de Doutorado. São Paulo, FAU USP, Estruturas Ambientais Urbanas, 2001; GNOATO, Luís Salvador Petrucci. Arquitetura do movimento moderno em Curitiba. Curitiba, Travessa dos Editores, 2009.
2
Ver: DUDEQUE, Irã Taborda. Espirais de Madeira: uma história da Arquitetura de Curitiba. São Paulo, Estúdio Nobel, Fapesp, 2001; DUDEQUE, Irã Taborda. Nenhum dia sem uma linha: uma história do urbanismo em Curitiba. São Paulo, Studio Nobel, 2010.
3
Ver: PACHECO, Paulo César Braga. O risco do Paraná e os concursos nacionais de arquitetura: 1962-1981. Orientador Carlos Eduardo Dias Comas. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, Propar FA UFRGS, 2004; PACHECO, Paulo Cesar Braga. A Arquitetura do Grupo do Paraná 1957-1980. Orientador Claudio Calovi Pereira. Tese de doutorado. Porto Alegre, Propar FA UFRGS, 2010.
4
Ver: Vida e obra do arquiteto Elgson Ribeiro Gomes são reunidas em livro. Caderno Haus, Curitiba, s/n, Jornal Gazeta do Povo, 10 nov. 2015 <www.gazetadopovo.com.br/haus/estilo-cultura/vida-e-obra-do-arquiteto-elgson-ribeiro-gomes-sao-reunidas-em-livro>.
5
GOMES, Elgson Ribeiro. Constatações, vocações, análise de possibilidades, reflexões, ensaios e teses. Curitiba, Elgson Ribeiro Gomes, 2003, p. 9.
6
NOGUEIRA, Daliane. Um ícone da arquitetura modernista na orla paranaense. Caderno Haus, Curitiba, s/n, Jornal Gazeta do Povo, 03 jan. 2017 <www.gazetadopovo.com.br/haus/arquitetura/um-icone-da-arquitetura-modernista-na-orla-paranaense>
7
GNOATO, Luís Salvador Petrucci. Apud NOGUEIRA, Daliane. Um ícone da arquitetura modernista na orla paranaense. Caderno Haus, Curitiba, s/n, Jornal Gazeta do Povo, jan. 2017 <www.gazetadopovo.com.br/haus/arquitetura/um-icone-da-arquitetura-modernista-na-orla-paranaense>.
8
SENKOVSKI, Antonio. Morre aos 91, Elgson Ribeiro, ícone da arquitetura moderna. Caderno G, Curitiba, s/n, 29 mar. 2014 <www.gazetadopovo.com.br/caderno-g/morre-aos-91-anos-elgson-ribeiro-icone-da-arquitetura-moderna-25d0kz37qe5fi5kums45b0tam>.
9
Cf. GOMES, Elgson Ribeiro. Palestra realizada no Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento do Paraná – IAB-PR em 30 de maio de 1995. 1995. In: BERRIEL, Andréa; SUZUKI, Juliana (Orgs.). Memória do arquiteto: pioneiros da arquitetura e do urbanismo no Paraná. Curitiba, Instituto de Arquitetos do Paraná/Universidade Federal do Paraná, 2012, p. 35-36.
10
Idem, ibidem.
11
GOMES, Elgson Ribeiro. Escola e profissão: uma linhagem profissional. Curitiba, Instituto Elgson Ribeiro Gomes, 2008, p. 313-346.
12
GOMES, Elgson Ribeiro. Palestra realizada no Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento do Paraná – IAB-PR em 30 de maio de 1995O (op. cit.), p. 36.
13
GATI, Catharine. Perfil de Arquiteto – Franz Heep. Projeto, n. 97, São Paulo, mar. 1987, p. 98.
14
Idem, ibidem, p. 99.
15
Idem, Ibidem.
16
Idem, ibidem.
17
Cf. GATI, Catharine. Op. cit., p.99.
18
Caiobá, palavra de origem tupi-guarani que pode significar tanto canoa furada quanto rio pequeno. É também, o nome dado a um balneário pertencente ao município de Matinhos, localizado na parte oriental – portanto litorânea – do Estado do Paraná, a cerca de 110 quilômetros da capital, Curitiba. Território originalmente ocupado pelos índios carijós, é colonizado de maneira acentuada entre os séculos 19 e 20 majoritariamente por portugueses, alemães e italianos. Até 1927, quando da abertura da Estrada que liga Curitiba a Paranaguá – que possibilitou a conexão através do entroncamento em Praia de Leste com Caiobá e Matinhos – o balneário resume-se a uma vila de pescadores concentrada em torno do Morro do Boi; que, além de ser um marco referencial natural, divide as praias Brava (Oceano Atlântico) e Mansa (Baía de Guaratuba).
19
GOMES, Elgson Ribeiro. Escola e profissão: uma linhagem profissional (p. cit.), p. 212.
20
GNOATO, Luís Salvador Petrucci. Apud NOGUEIRA, Daliane. Op. cit.
21
GOMES, Elgson Ribeiro. Palestra realizada no Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento do Paraná – IAB-PR em 30 de maio de 1995O (op. cit.), p. 40.
22
A erva-mate é uma árvore cujas folhas podem ser consumidas como chá quente ou fresco. É muito saborosa e rica em cafeína; por muitos anos, foi a principal fonte económica do Estado do Paraná. Ver: MACEDO, Rafael Valdomiro Greca de. Curitiba, luz dos pinhais. Curitiba, Solar do Rosário, 2016, p. 67.
23
Considera-se o marco refrencial como um ponto de referência externo ao observador. Devido à singularidade que possuem, são tanto mais fáceis de identificar no contexto quanto mais clara for a sua forma, isto é, quanto maior for o contraste da sua figura com o fundo. Também leva-se em consideração as condições de sua localização espacial. Ver: LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 88.
24
As edificações icónicas influenciarão a identificação dos lugares por remeter, tal como os ícones religiosos, ao íntimo do homem, aos princípios que o individualizam perante os demais. Ver: COSTA, André Luís Cordeiro da. O papel dos edifícios icónicos na conformação da cidade contemporânea – análise arquetípica de proeminentes equipamentos públicos de Curitiba. CITCEM, Genius Loci: lugares e significados. Porto, Universidade do Porto, 2018, p. 587-597.
25
GATI, Catharine, Op. cit. p. 103.
26
NOGUEIRA, Daliane. Op. cit.
27
Cobogó é um elemento vazado feito de cerâmica ou cimento, geralmente de superfície quadrada e com a mesma espessura de uma parede de alvenaria; o nome derivaria das iniciais dos apelidos dos engenheiros idealizadores Amadeu Oliveira Coimbra, Ernst August Boeckman, e Antônio de Góis, no início do século 20.
28
NOGUEIRA, Daliane. Op. cit.
29
Ver: CHICHINELLI, Gilese. Fachadas de alumínio exigem detalhamento preciso dos sistemas envolvidos e instalação correta dos painéis de ACM. AU – Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, n.207, Pini, jun. 2011 <www.au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/207/artigo219643-2.aspx>.
30
Idem, ibidem.
31
GOMES, Elgson Ribeiro. Escola e profissão: uma linhagem profissional (op. cit.), p. 212.
32
NOGUEIRA, Daliane. Op. cit.
sobre o autor
André Luís Cordeiro da Costa é Arquiteto e Urbanista pela Universidade Federal do Paraná (2012), Especialista em Arquitectura: Teoria, Projecto, História pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (2014), onde atualmente é doutorando. Tem artigos científicos publicados no Brasil e em Portugal, entre os quais, A crítica na arquitetura. Do panorama à realidade brasileira. Arquitextos, 2015.