Em 1974, no auge da ditadura militar, Joseph Safra empreende a construção da sede de sua então recente instituição bancária. Para tanto, contrata Oscar Niemeyer, arquiteto de prestígio que então retorna do exílio. Apesar da repercussão mundial que o edifício geraria, o projeto é abortado repentinamente por Joseph Safra após a execução dos primeiros tubulões (1).
Tal episódio revela-se inauditamente promissor para uma aproximação à arquitetura de Niemeyer, ao projeto moderno e à modernização brasileira.
Apesar de ser um dos arquitetos modernos brasileiros que mais projetou edifícios em altura, apenas recentemente tal setor de sua produção mereceu pesquisas específicas, sendo negligenciado ou ocupando posição marginal na extensa bibliografia sobre o arquiteto. As matrizes explicativas de sua obra em geral enfatizam a paisagem e o clima tropical e a herança da arquitetura barroca brasileira como elementos geradores de sua arquitetura, ou evidenciam a evolução de um traço genuinamente brasileiro, marcado pelas formas livres.
O tema do arranha-céu não se encaixa, assim, na abordagem de Niemeyer como o arquiteto das formas livres. Tampouco combina, pela costumeira associação aos prismas de vidro do International Style, com a experiência da arquitetura moderna brasileira – da vertente que se torna hegemônica, de matriz corbusiana –, da qual Niemeyer é o maior representante.
Na outra mão, ainda que o edifício fundador de tal vertente, o Mesp, seja um edifício em altura, a contradição entre dois projetos modernizadores – um baseado na atuação de intelectuais junto ao Estado, outro baseado na iniciativa privada – leva à rápida passagem, na historiografia da arquitetura moderna brasileira, do arranha-céu para a arquitetura do equipamento social e do palácio governamental.
Tal passagem, por sua vez, passa pelo tratamento plástico conferido aos edifícios visando a expressão da identidade nacional, em contraposição à plástica do arranha-céu americano, regida pela representação do poder e racionalidade econômica das grandes corporações.
É no cruzamento destes três vetores – o projeto moderno brasileiro em arquitetura, o arranha-céu moderno e a plástica niemeyriana – que o projeto não construído da sede do Banco Safra é considerado. Busca-se uma (re)aproximação a tais universos, que contribua com novos elementos e leituras, bem como estenda leituras existentes. Efetua-se uma análise do ponto de vista do fazer arquitetônico, que incorpora dados relativos ao mercado, legislação, condicionantes e atuação de intervenientes, e que o considere no conjunto de projetos de arranha-céus do arquiteto.
A pesquisa reúne documentação gráfica e fotográfica esparsa nos acervos da Fundação Oscar Niemeyer e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP, além de material inédito dos acervos pessoais de Jacinto Guidolin e Euclides Sordi. Informações obtidas em entrevistas com os intervenientes foram modeladas física e computacionalmente, recuperando a trajetória da atividade de projetação.
A dimensão urbana do projeto da sede do Banco Safra
O projeto da sede do Banco Safra destinava-se à avenida Paulista, esquina com a rua Augusta, em São Paulo e abrangia 3 subsolos, térreo inferior, térreo superior e torre com 19 pavimentos, dos quais os 1º e 12º configuravam pavimentos intermediários, e o 19º consistia em ático (casa de máquinas e reservatório) junto com espaços de escritório.
Já no início do memorial descritivo do projeto, Niemeyer afirma que sua intenção fora “dar a sede do Banco Safra uma concepção diferente, que a destacasse dos prédios vizinhos, tornando-a, se possível, um ponto de atração na arquitetura da cidade” (2).
Apesar do caráter convencional do lote, Niemeyer trata plasticamente o projeto, com a intenção de torná-lo um marco nos Campos de Piratininga, associado à marca da instituição bancária. Para tanto, inaugura a utilização do prisma octogonal, evitando a solução retangular “que normalmente ocorreria e que daria, obrigatoriamente, à fachada principal de menor dimensão, aspecto secundário” (3).
O prisma octogonal é implantado no centro do lote e possui estrutura em apoio central. Esta solução parte de uma condicionante técnica: por um acordo com o Metrô, as fundações da torre não podiam alinhar-se à testada do lote, pois a estação prevista penetrava o subsolo do terreno (4). Tal informação não é confirmada pelo engenheiro Francisco Baptista (2017), do Metrô, de todo modo, realmente existe um projeto em que a estação, localizada entre a rua Augusta e a rua Haddock Lobo, conecta os edifícios Center 3 (1958) e Conjunto Nacional (1958) por meio de uma galeria. Este projeto aproveitava as obras, iniciadas em 1972 e interrompidas em 1973, do projeto Nova Paulista, que previa seis pistas locais na superfície, seis pistas expressas em trincheira e abaixo destas, a linha do Metrô (5). O projeto de Niemeyer, porém, já previa os 10 metros de desapropriação previstos por este projeto.
Ainda que inconclusivo, esse episódio aponta para a habilidade do arquiteto ao lidar com condicionantes adversas, incorporando-as plástica e estruturalmente em sua arquitetura, o que contraria versões como a de Yves Bruand (6), que vê em tais condicionantes técnicas e de mercado, obstáculos para a expressão de sua arquitetura.
A altura de piso a piso de 4,20m dos pavimentos da torre, demandada pelos perfis estruturais em balanço, tira partido da legislação que estabelecia limites de número de pavimentos, mas não de gabarito. Aliado a isso, a minimização da taxa de ocupação da torre em combinação com a maximização de número de pavimentos, na exploração da totalidade do potencial de construção, torna o edifício ligeiramente mais alto que seus vizinhos. O prédio, assim, se destaca no skyline da avenida Paulista, apesar da relativamente modesta dimensão em área.
Tal alteração do padrão de ocupação do lote resulta de uma concepção em que “[o] espaço arquitetural faz parte da arquitetura e da própria natureza, que também envolve e limita” (7). Niemeyer vê na verticalização a possibilidade de realização da cidade moderna, “sã e bela”, em oposição à reprodução especulativa do solo urbano e à “rua corredor” (8).
Esta postura é perceptível em projetos como o do Hotel Nacional (1968), do Plano Urbanístico Athaydeville (1969) (9), na Barra da Tijuca, com Lucio Costa, da Cesp (1979) (10), e do Banco Safra, ainda que neste caso não a explicite no memorial descritivo. De fato, a maximização da área construída revela-se determinante nesse projeto. Apesar de datar de 1974, o projeto não obedece aos parâmetros da lei 7805/1972, que previa coeficiente de aproveitamento 3,5 e área permeável de 80%. Isso porque um primeiro projeto havia sido aprovado em 1968, respeitando os parâmetros da lei 6877/1966, que previa coeficiente de aproveitamento 6, e não previa área permeável. Depois disso, houve substituições do projeto em 1971, 1974 e 1976 – neste último ano, com o projeto de Niemeyer – que resguardaram o direito adquirido (11). Assim, o projeto de Niemeyer aproxima-se do coeficiente de aproveitamento máximo e prevê tão somente um jardim suspenso na cobertura da agência bancária, com o térreo inferior ocupando 100% da área do lote.
Se a combinação de taxa de ocupação reduzida e coeficiente de aproveitamento elevado em gabarito elevado visa o diálogo com a paisagem, no caso da sede do Banco Safra também garante a legibilidade da forma.
Niemeyer centraliza a torre no lote afastando-a dos edifícios vizinhos, por meio de recuos maiores que os previstos em legislação; também a emoldura sobre o embasamento, que funciona como pódio, contribuindo para a autonomia formal da torre. Tal partido, recorrente no conjunto de projetos de edifícios em altura do arquiteto, repropõe no âmbito da arquitetura, a tabula rasa preconizada pelo urbanismo moderno, agora sobre o tecido da cidade tradicional e sua unidade primária: o lote (12). Se a suspensão do volume abre a superfície projetada pelo urbanista moderno, na cidade tradicional, tal suspensão repropõe o uso público do solo urbano (13).
No caso da sede do Banco Safra, a mera suspensão da torre apenas liberaria uma superfície caída para os fundos e interrompida pelas duas empenas cegas do Shopping Center 3, revelando-se inepta na constituição da cidade moderna. Ao invés disso, o arquiteto enfatiza o embasamento, fazendo-o coincidir com o perímetro do terreno e esculpindo seu volume por meio de superfícies de vidro contínuas e esbelta laje impermeabilizada. Também insere uma praça no pavimento térreo superior, ao nível da avenida Paulista. Essa praça é constituída pelo recorte da laje de cobertura, cujas pontas demarcam as extremidades do terreno, e pelo fechamento multifacetado e recuado em vidro, que faz o espaço público penetrar o espaço edificado. Repropondo o uso público do solo urbano, reflete sobre os limites entre o público e o privado – mesmo se tratando de uma instituição bancária. Revela, assim, grande habilidade de conciliação entre tais instâncias.
Na sede do Banco Safra, a calçada torna-se praça; a marquise desaparece para que a proteção se faça pela projeção do embasamento; ao invés de galerias, o pedestre pode cortar caminho pela própria agência bancária. O passeio público e a projeção do recorte da laje se prolongam até o núcleo central da torre, de modo que a praça e a portaria sejam protegidas apenas pela projeção da torre, com pé-direito duplo e iluminação e ventilação natural pelo alto. O projeto não prevê nenhuma porta no acesso à torre de escritórios. Enfatiza-se em planta e em corte uma permeabilidade para a qual o edifício, pelo seu uso institucional, não teria vocação.
Atento simultaneamente às relações com o território e com o entorno, a sede do Banco Safra não se destaca na perspectiva do eixo da avenida Paulista, ao contrário do prédio da Fiesp (1968), por exemplo. Ao invés disso, prioriza a percepção pelo transeunte que dele se aproxima. O estrangulamento entre o 11° e o 13° pavimento mostra-se preciso neste sentido, com a marcação do coroamento da torre conectando as escalas local e metropolitana.
Finalmente, Niemeyer trata as superfícies do volume de embasamento unindo arquitetura, cidade e paisagem: nos jogos de reflexos da fachada multifacetada em vidro; amenizando o impacto da fachada alta junto à estreita calçada da rua Augusta pelo uso do vidro; com o uso de lajes impermeabilizadas e acessíveis no 1º e no 12° pavimento; no acabamento plano do coroamento da torre, por meio da implantação de escritórios no nível do ático, inusualmente acessados exclusivamente por escada; e pela solução mista que combina vidro e brises de concreto, diante da banalização do curtain wall e seu impacto nos espaços das cidades (14).
O edifício sede do Banco Safra
Vários fatores concorrem para a contratação de Niemeyer: o interesse de Joseph Safra pelas artes e arquitetura; o prestígio internacional do arquiteto, que converge com a intenção de Carlos Alberto Vieira, então diretor-presidente da instituição, e do engenheiro Raimundo de Paula Soares de fortalecer a imagem de uma instituição então recente num momento de desconfiança e falências no mercado financeiro (15). Estudos apontavam para a amortização total da obra pela repercussão do projeto (16), além do que, na concorrência realizada pelo banco a proposta de Niemeyer era 70% menor que a de Maurício Kogan, que já havia concebido estudos para o edifício, e posteriormente elabora o projeto executado.
A arquitetura de Niemeyer é então, colocada a serviço do capital financeiro. No memorial descritivo do projeto, considerações sobre originalidade e inovação juntam-se àquelas sobre “conveniências internas”, acessos, flexibilidade, otimização de área e conforto: “[é] o prédio diferente, lógico e funcional que pretendíamos” (17). Revela-se a destreza do arquiteto na sedução do contratante, já que as mesmas questões e síntese plástica se repetem em outros perfis de empreendimentos por ele projetados.
Entretanto, o partido adotado é fruto de uma síntese que engloba também o diálogo de Niemeyer com os mestres da arquitetura moderna, no que tange ao tema do arranha-céu.
A configuração do projeto em dois volumes, de embasamento e torre, separados por pavimento livre ajardinado sobre o primeiro, é inaugurada na Lever House (1952), projeto de Gordon Bunshaft no escritório Skidmore, Owings & Merrill. Reflexões sobre o tema são efetuadas em São Paulo por arquitetos como David Libeskind no Conjunto Nacional (1957), Pedro Paulo Mello Saraiva no Edifício Quinta Avenida (1958), na avenida Paulista, e Carlos Milan, Jorge Wilheim e Maurício Tuck Schneider no projeto não construído da sede do Jóquei Clube de São Paulo (1959) no Largo do Ouvidor.
No caso de Niemeyer, identifica-se sua presença no conjunto Nordia (1964), no Hotel Nacional (1968) e no Panorama Palace Hotel (1972), porém, com desenho orgânico e em outra escala e porte. Nesses exemplos, Niemeyer recua ou avança o perímetro das extensas superfícies horizontais de embasamento desses conjuntos, emoldurando suas torres. Em situação muito mais compacta, na avenida Paulista, efetua um recorte na “laje de cobertura do pavimento térreo, deixando que o núcleo central do edifício descesse aparente até o solo” (18), assim possibilitando a percepção equilibrada do conjunto e garantindo a integridade da forma, importante atributo do projeto moderno (19).
Ao mesmo tempo, segundo Niemeyer, “[o] partido adotado levou-nos a criar diante da entrada do Banco Safra uma pequena praça o que lhe dá a importância procurada” (20). A ideia de se abdicar da ocupação da totalidade do terreno em favor da visualização do edifício, visando a exploração de seu caráter icônico e seu resultado financeiro, remete ao Seagram Building (1958), de Mies van der Rohe.
O diálogo de Niemeyer com os mestres modernos não para por aí, sendo fundamental o cotejamento do arranha-céu europeu. Este tem caráter mais icônico que funcional, ou seja, de reprodução do solo urbano, expressando conteúdos emancipatórios do projeto moderno (21).
O arranha-céu enquanto símbolo do projeto moderno europeu encontra em Le Corbusier importante idealizador, sendo replicado desde as formas cruciformes da Ville Contemporaine (1922), Plan Voisin (1925) e Ville Radieuse (1930), passando pela forma de Y do arranha-céu cartesiano em Argel (1930) e Hellocourt (1938) (22) até chegar ao Quartier de la Marine (1938), em formato hexagonal, com núcleo de circulação e serviços centralizado e largos brises que “alternam ritmos e espaçamentos diferentes em uma composição quase barroca” (23). O tratamento plástico conferido por Le Corbusier ao arranha-céu, por meio da lapidação de suas faces visando atenuar as perspectivas geradas por prismas retangulares de proporções massivas, encontra rebatimentos em exemplares como o Edifício Itália (1956), de Franz Heep – colaborador de Le Corbusier em Argel –, a Torre Pirelli (1958), de Gio Ponti – que havia concorrido com Heep no projeto anterior (24) – e o Congresso Nacional, nesse caso de modo inverso, acentuando a percepção das faces internas das duas torres.
Ao invés de concepção intuitiva, espontânea, ou de gesto criador, o traçado de Niemeyer para a sede do Banco Safra revela interação atenta e criteriosa com o Mesp, e os arranha-céus de Le Corbusier, Mies e do International Style, inserindo-se no processo de constituição e desenvolvimento de uma cultura arquitetônica ligada ao tema de prédios altos, na triangulação entre EUA, Europa e América do Sul.
A partir do Conjunto Nordia (1964), Niemeyer abandona a solução plástica de edifícios laminares, presente no Mesp (1936), Edifício Sede da ONU (1947), Copan (1951) e Conjunto JK (1951), entre outros, em favor de volumes cilíndricos alongados, marcantes da contribuição dada pelo arquiteto ao tema.
Os memoriais dos arranha-céus de Niemeyer sempre contêm expressões como “projetar um hotel diferente” (25), “seus aspectos inovadores” (26), “uma concepção diferente” (27), “evitamos a solução corrente” (28), “ao contrário do que normalmente ocorreria” (29).
Certamente, residem nos textos do arquiteto as afirmações que mais fortemente o associam a uma arquitetura de intenso caráter plástico, tributária e sucessora de Le Corbusier (30), emblemática da vertente hegemônica da arquitetura moderna brasileira, e caracterizada pela sensualidade das curvas possibilitadas pelo concreto armado. Autores como Ruth Verde Zein (31), David Underwood (32), William J.R Curtis (33), Josep Maria Montaner (34) e Vincent Scully Jr (35) aprofundam o entendimento sobre a plástica em Niemeyer, fornecendo leituras mais específicas de referências, em especial Le Corbusier, trazendo à tona outras, como o Surrealismo. A despeito do que, dificilmente se consegue superar a sua definição como o arquiteto das formas livres.
A abordagem plástica de Niemeyer não se manifesta numa suposta oposição entre limitações do programa, terreno e encomenda de um lado, e de outro, volume escultórico ou planta ameboide, conforme identificados por autores como Bruand (36). No caso da sede do Banco Safra, manifesta-se na torre em formato octogonal, no recorte da praça, no desenho dos brises, os quais induzem movimento à edificação. Entende-se, aqui, que a plástica na obra de Niemeyer é também forma livre, e não apenas forma livre.
O projeto revela as nuances da evolução da obra de Niemeyer no que concerne à concepção estrutural. A partir do projeto do Museu de Caracas (1954) e da autocrítica efetuada em “Depoimento” (1958), seu interesse volta-se às “soluções compactas, simples e geométricas”, com os edifícios se exprimindo “pela própria estrutura, devidamente integrada na concepção plástica original” (37). Verifica-se nessa afirmação, que a forma antecede a estrutura, o contrário sendo entendido como subordinação (38), ou seja, “sem temer as contradições de forma com a técnica e a função” (39), discurso esse assumido desde Joaquim Cardozo (40) até Bruand (41).
A sede do Banco Safra é a primeira torre de planta centralizada que Niemeyer estrutura a partir de um núcleo central com lajes em balanços. A síntese plástica e estrutural é explicitada no interior dos pavimentos-tipo, livre de pilares; e nos pavimentos intermediários, que geram impasses referentes à construtibilidade e à economicidade do projeto, no que tange a cimbramentos, componentes estruturais metálicos ou de transição (42). Por um lado, para Niemeyer, questões técnicas não precedem questões de forma, “certo que permanecem, unicamente, as soluções belas, inesperadas e harmoniosas” (43) – sendo que o custo igualmente não era problema para Safra (44). Por outro lado, tal síntese ocorre agora em bases diferentes daquelas de Brasília, em que os edifícios se caracterizavam “pelas próprias estruturas, dentro das formas concebidas” (45). Zein localiza em 1968-69, o início de uma terceira etapa na obra de Niemeyer, em que o diálogo entre concepção plástica e concepção estrutural se dá a partir do universo das grandes estruturas de concreto armado em balanços simétricos (46). O projeto da sede do Banco Safra, assim como o do WTC Itália (1974) e do edifício de escritórios em Jeddah (1975) situa-se nessa passagem, em que não se chega ainda na total “congruência entre estética/estática” (47).
Do restrito rol de engenheiros de estrutura com que Niemeyer trabalha, Joaquim Cardozo havia encerrado atividades em 1972, após o episódio da Gameleira; Bruno Contarini interrompe sua atuação na Argélia para executar a Ponte Rio-Niterói entre 1968 e 1974 (48). No caso da sede do Banco Safra, os serviços de engenharia ficariam a cargo do contratante e seriam efetivados em São Paulo (49). O engenheiro de estruturas Vicente De Stéfano era contemporâneo de faculdade de Sordi, já havia prestado serviços ao banco, e era conhecido por Joseph Safra. Jacinto Guidolin e Raimundo de Paula Soares eram os interlocutores entre engenheiro e arquiteto.
Foram dois meses entre a contratação de De Stéfano e a instalação do canteiro e o início da execução dos tubulões, sem projeto estrutural, apenas com a definição de uma carga para a torre. Segundo De Stéfano, a urgência decorria da ameaça de desapropriação para a construção da estação do Metrô; já para Sordi, o projeto caducaria se as obras não fossem iniciadas.
Duas opções foram aventadas para a estrutura dos pavimentos da torre.
A primeira previa pilares nos vértices do octógono, que descarregariam em vigas de transição misuladas, que partiriam de 3m no núcleo e chegariam a 1m no perímetro, no caso do 1º pavimento, e partiriam de 2m, no caso do 12° pavimento. Tais perfis estruturais não eram previstos no estudo de Niemeyer, e a transição superior tinha o agravante de não ter onde ser escorada (50). Talvez isso tenha motivado também a alteração do projeto do WTC italiano. Na verdade, Niemeyer nunca teve tal solução executada.
A segunda solução prevê lajes em balanço, estruturadas por vigas radiais apoiadas no núcleo que partiam de 1,20m e chegavam a 0,60m no perímetro, com vigas de borda de mesma altura. Essa solução implicava menos alterações do projeto arquitetônico e maior construtibilidade e economicidade. Tirantes em cada vértice do octógono absorviam a diferença de deformação das vigas em balanço.
Os brises de concreto de 0,20m de espessura chegam a 42m de altura no volume maior. Sua forma remete ao Palácio da Justiça (1962), porém, de ponta-cabeça. Além da superfície alinhada à fachada, que funciona como moldura, tem-se mais duas peças ligeiramente giradas, cujas terminações se fundem para acabar no mesmo ponto. Enquanto Guidolin ficava “muito entusiasmado e com muito medo” dos brises, De Stéfano não se preocupava, pois previa o seu engastamento em cada pavimento. Em planta, os brises junto aos vértices do octógono dobravam-se em L, gerando pontos de contato para o engastamento em cada pavimento; porém, o mesmo não ocorria com os outros brises, afastados da fachada. Detalhes como este, junto com a ausência de perfis estruturais e elementos construtivos acabando a zero, constituem desafios propostos por Niemeyer, a serem vencidos por meio de soluções estruturais originais e uma execução refinada, como o empreendimento sugeria, a exemplo do que ocorrera com os palácios de Brasília.
A planta do pavimento tipo foi definida “de acordo com as conveniências internas: centralizando acessos e sanitários, criando os espaços úteis que o trabalho solicita” (51). Ela é marcada pelo caráter corporativo do empreendimento: a planta octogonal funciona como variante da planta circular já utilizada pelo arquiteto em projetos anteriores, que incorpora a linha reta convencionalmente desejada para a disposição dos espaços de trabalho. Nesse sentido, e no de tratamento plástico do volume edificado, aproxima-se do arranha-céu corbusiano. De novo, tais relações suplantam em muito a mera busca de inovação ou surpresa, apesar do próprio arquiteto usar tais termos.
Ao contrário dos demais exemplares projetados pelo arquiteto, a área de infraestrutura – saída de emergência, copa, ar condicionado e instalações sanitárias – não se situa no núcleo central, mas no setor do octógono localizado na face oposta à rua Augusta. Os outros sete setores do octógono recebem layout compartimentado, com 14 espaços de escritórios numerados. O volume da escada, que atravessa as duas interrupções da torre, não aparece na maquete. Tal volume prejudicaria a percepção de uma torre apoiada por um único espigão central.
A variante de linhas retas revela-se insuficiente. Tanto a equipe do banco quanto Joseph Safra consideravam dificultosa a disposição do mobiliário em salas trapezoidais. Guidolin narra que, ao tratar da sala da presidência, Niemeyer indagou o que Safra desejava. Enquanto respondia, Niemeyer desenhava. Ao final, quando o banqueiro ponderou que ele estava desenhando sem medidas ou escala, o arquiteto deu-lhe um escalímetro que trazia no bolso e disse: “meça, tudo está na escala 1:20”. E Guidolin conclui: “realmente tudo estava com as dimensões corretas, mesa, cadeira e toda a mobília, todos ficaram de queixo caído” (52).
Talvez por influência do irmão Edmund Safra, banqueiro nos Estados Unidos, onde frequentava os arranha-céus do International Style, Joseph não se convence. Diante da não aprovação do projeto, Niemeyer desenvolve um segundo e derradeiro estudo, com a torre em formato quadrado. A nova proposta não continha o intervalo entre volumes, que gerava problemas de cimbramento, e incorpora a solução estrutural de transição entre o embasamento e a torre; os brises abandonam as grandes dimensões; o volume da saída de emergência é deslocado, participando da volumetria do conjunto; o projeto agora conta com um lobby, que fica totalmente sob a laje de cobertura do pavimento térreo superior. O tratamento plástico, porém, revela-se dificultoso, sendo que o volume da torre adquire feição massiva.
A relação entre Joseph Safra e Oscar Niemeyer é curiosa: o contratante escolhe o arquiteto em decorrência de seu prestígio e do caráter plástico de sua arquitetura, que destacaria sua marca; no entanto, demanda uma arquitetura racional e funcionalista. Esse choque entre projeto e racionalidade do capital aflora nas discussões sobre o layout das áreas de escritório.
Os depoimentos dos intervenientes revelam possíveis motivos para a rescisão do contrato com Niemeyer. Guidolin e De Stéfano a creditam ao caráter arrojado do projeto em formato octogonal e à influência de Edmund Safra; Sordi e Guidolin aventam pressões por parte do regime militar, pelo fato de Niemeyer ser comunista; De Stéfano cita o fim da ameaça de desapropriação do lote, que torna dispensável o prestígio internacional do arquiteto. Ainda que não passíveis de comprovação, demonstram contradições, que revelam o imbricado jogo de interesses presentes numa sociedade que se moderniza.
Conclusão
O projeto não construído de Oscar Niemeyer para a sede do Banco Safra revela conteúdos significativos de sua obra, relativos ao seu caráter plástico, sua relação com o tema do arranha-céu e o projeto moderno, no âmago da modernização brasileira. Considerado o maior representante da vertente que se torna hegemônica da arquitetura moderna brasileira, caracterizada pela aliança entre intelectualidade e Estado na construção da identidade nacional, incorpora e interage com a experiência tanto do arranha-céu europeu, marcado pelo seu mestre Le Corbusier, quanto do arranha-céu americano, ligado às grandes corporações privadas. E o faz projetando um empreendimento privado, especificamente uma instituição financeira, que visa explorar o potencial mercadológico de sua arquitetura, emblemática do projeto de construção de uma nação moderna.
Revela, assim, o caráter conciliador da modernização brasileira, que parece personificar exemplarmente, bem como suas contradições: ao manusear índices urbanísticos para aliar o rendimento de um empreendimento imobiliário à originalidade de um edifício icônico em sua relação com o entorno e a metrópole; ao enfatizar o tecido da cidade tradicional para reafirmar valores do urbanismo moderno; ao repropor radicalmente o uso público do solo urbano em um edifício bancário e corporativo; ao projetar uma praça que ao mesmo tempo acolhe e projeta a presença da empresa privada na cidade. Ao justapor originalidade e conveniência, combinar o quadrado e a circunferência no octógono. Enfim, ao testar os limites da relação entre forma estática e forma estética.
Tampouco o desfecho deste episódio deixa de falar algo sobre os rumos da arquitetura e da própria modernização brasileira, nos idos da década de 1970. Tanto Joseph Safra deixa de realizar um projeto emblemático do arquiteto brasileiro de maior expressão internacional, quanto perde a cidade de São Paulo a oportunidade de se ver por ele retratada no skyline da Avenida Paulista.
Não menos revelador de tais destinos, Joseph Safra adquire, em 2014, por US$1,1 bilhão (53) o edifício 30 St Mary Axe, projetado por Norman Foster, admirador de Niemeyer. Apelidado de “The Gherkin”, o arranha-céu, ícone da paisagem londrina, possui planta circular e volumetria em forma de pepino. O Grupo Safra assim justifica a aquisição:
"Em apenas dez anos, este edifício tornou-se um marco de Londres e se distingue de outros no mercado com excelente potencial de crescimento. A aquisição é consistente com nossa estratégia imobiliária de investir em propriedades que são verdadeiramente especiais – nas melhores localidades das grandes cidades"(54).
Seria essa mais uma das voltas que o mundo dá, ou um relativo arrependimento de Joseph Safra quarenta anos depois? Certamente nunca teremos essa resposta.
notas
1
GUIDOLIN, Jacinto Antônio. Depoimento a João Vitor Ricciardi Sordi, 05 mar. 2015.
2
NIEMEYER, Oscar. Banco Safra. Acervo da Fundação Oscar Niemeyer, Rio de Janeiro, 10 mai. 1974 <www.niemeyer.org.br/obra/pro166>.
3
Idem, ibidem.
4
SORDI, Euclides. Depoimento a João Vitor Ricciardi Sordi, 21 jan. 2017.
5
SACONI, Rose; ENTINI Carlos Eduardo. Na Paulista, ipês e calçadas já deram lugar aos carros. Acervo Estadão, São Paulo, 28 jun. 2015 <acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,na-paulista-ipes-e-calcadas-ja-deram-lugar-aos-carros,11203,0.htm>.
6
Bruand, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. 4a edição. São Paulo, Perspectiva, 2003.
7
NIEMEYER, Oscar. Como se faz Arquitetura. Petrópolis, Vozes, 1986, p. 9-10.
8
CORONA, Eduardo; NIEMEYER, Oscar. Oscar Niemeyer: uma lição de arquitetura. Apontamentos de uma aula que perdura há 60 anos. São Paulo, Editora Fupam, 2001.
9
NIEMEYER, Oscar. Centro da Barra. Acervo da Fundação Oscar Niemeyer, Rio de Janeiro, 23 jul. 1969 <www.niemeyer.org.br/obra/pro146>.
10
NIEMEYER, Oscar. Companhia Energética de São Paulo Sede 1º projeto. Acervo da Fundação Oscar Niemeyer, Rio de Janeiro, 20 fev. 1979 <www.niemeyer.org.br/obra/pro183>.
11
SORDI, Euclides. Op. cit.
12
QUEIROZ, Rodrigo. Forma moderna e cidade: a arquitetura de Oscar Niemeyer no centro de São Paulo. Arquitextos, São Paulo, a. 13, n. 151.08, Vitruvius, dez. 2012. <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4632>.
13
Idem, ibidem.
14
CORONA, Eduardo; NIEMEYER, Oscar. Op. cit., p. 45.
15
SORDI, Euclides.Op. cit.
16
Idem, ibidem.
17
NIEMEYER, Oscar. Banco Safra. Acervo da Fundação Oscar Niemeyer, Rio de Janeiro, 10 mai. 1974. <www.niemeyer.org.br/obra/pro166>. Grifo do autor.
18
Idem, ibidem.
19
QUEIROZ, Rodrigo. Op. cit.
20
NIEMEYER, Oscar. Op. cit.
21
FIALHO, Roberto Novelli. Edifícios de Escritório da Cidade São Paulo. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2007. p. 36.
22
FRAMPTON, Kenneth. História Crítica da Arquitetura Moderna. São Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 219.
23
SERAPIÃO Fernando. As andanças da torre europeia. Projeto Design, São Paulo, n. 306, 2005 <www.arcoweb.com.br/projetodesign/artigos/artigoas-andancas-da-torre-europeia-01-08-2005>.
24
Idem, ibidem.
25
NIEMEYER, Oscar. Panorama Palace Hotel. Acervo da Fundação Oscar Niemeyer, Rio de Janeiro, 15 abr. 1972 <www.oscarniemeyer.com.br/obra/pro221>.
26
Idem, ibidem.
27
NIEMEYER, Oscar. Banco Safra. Acervo da Fundação Oscar Niemeyer, Rio de Janeiro, 10 mai. 1974 <www.niemeyer.org.br/obra/pro166>.
28
Idem, ibidem.
29
Idem, ibidem.
30
BOTEY, Josep Maria. Oscar Niemeyer: obras y proyectos. 2a edição. Barcelona, Gustavo Gili, 1996; MONTANER, Josep Maria. Depois do movimento moderno. Arquitetura da segunda metade do século 20. 1a edição. Barcelona, Gustavo Gili, 2001.
31
ZEIN, Ruth Verde. Brutalismo, escola paulista: entre o ser e o não ser. Arqtextos, Porto Alegre, a. 1, n. 2, jan./jun. 2002, p. 6-30 <www.ufrgs.br/propar/publicacoes/ARQtextos/PDFs_revista_2/2_Ruth.pdf>.
32
UNDERWOOD, David. Oscar Niemeyer e modernismo de formas livres no Brasil. 1 a edição. São Paulo, Cosac Naify, 2002.
33
CURTIS, William J.R. Arquitetura moderna desde 1900. 3 a edição. Porto Alegre, Bookman, 2008.
34
MONTANER. Op. cit.
35
SCULLY JR, Vincent. Arquitetura moderna. 1 a edição. São Paulo, Cosac Naify, 2002.
36
BRUAND, Yves. Op. cit., p. 161.
37
NIEMEYER, Oscar. Depoimento. Módulo, Rio de Janeiro, n. 9, fev. 1958, p. 3-6.
38
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. 2a edição. São Paulo, Edusp, 2002.
39
NIEMEYER, Oscar. Forma e função na arquitetura. Módulo, Rio de Janeiro, n. 21, 1960, p. 2-7.
40
CARDOZO, Joaquim. Forma estática – forma estética. Módulo, Rio de Janeiro, n. 10, p. 3-6, ago. 1958.
41
BRUAND, op. cit., p. 152.
42
DE STÉFANO, Vicente. Depoimento a João Vitor Ricciardi Sordi, 05 mar. 2015.
43
NIEMEYER, Oscar. Op. cit., p. 5.
44
DE STÉFANO, Vicente. Op. cit.
45
CORONA, Eduardo; NIEMEYER, Oscar. Op. cit., p .119.
46
ZEIN, Ruth Verde. Op. cit.
47
Idem, ibidem.
48
NAKAMURA, Juliana. Memórias de cálculo. Construção e Mercado, São Paulo, n. 101, 2009. <www.construcaomercado.pini.com.br/negocios-incorporacao-construcao/101/artigo283690-1.aspx>.
49
SORDI, Euclides. Op. cit.
50
DE STÉFANO, Vicente. Op. cit.
51
NIEMEYER, Oscar. Banco Safra. Acervo da Fundação Oscar Niemeyer, Rio de Janeiro, 10 mai. 1974 <www.niemeyer.org.br/obra/pro166>.
52
GUIDOLIN, Jacinto Antônio. Op. cit.
53
GELLES, David; HORCH, Dan. Sem alarde, Joseph Safra amplia seu império. O Estado de São Paulo, São Paulo, 20 fev. 2015 <https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,sem-alarde-joseph-safra-amplia-seu-imperio-imp-,1636926>.
54
GRUPO SAFRA. Grupo Safra compra edifício “The Gherkin” em Londres. Archdaily, 11 nov. 2014 <www.archdaily.com.br/br/tag/the-gherkin>.
sobre os autores
João Vitor Ricciardi Sordi é arquiteto e urbanista pela Universidade Estadual de Maringá – UEM e mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Maringá – PPU UEM/UEL. Arquiteto titular de Pupin e Ricciardi Sordi Arquitetura Ltda. Ex-professor assistente do DAUUEM.
André Augusto de Almeida Alves é arquiteto e urbanista, mestre e doutor pela Faculdade de Arquitetura e urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP. Professor Associado do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Maringá – PPU UEM/UEL.