Na década de 1990 ganhou expressão, no panorama internacional, o interesse pelo legado da Arquitetura do Movimento Moderno, ocasião em que teve origem e rapidamente se difundiu por vários países o International Comitee for Documentation and Conservation of Buildings, Sites and Neighbourhoods of Modern Movement – Docomomo.
Porém, se esta atenção se espalhou mundo afora neste período, o interesse sobre o tema estava presente no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan desde muito antes, se considerarmos os tombamentos da Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha, em 1947, do Aterro do Flamengo, em 1965 ou da Catedral de Brasília, em 1967. Mas, embora pioneiras, estas iniciativas ocorreram de modo artificioso, por força de ameaças a obras de alto significado para a Arquitetura Moderna Brasileira. Tanto é assim que o tombamento da Catedral de Brasília foi decidido antes mesmo de concluída sua construção!
Em São Paulo também houve iniciativas pioneiras, porém no âmbito do órgão estadual, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo – Condephaat, que no início dos anos de 1980, havia tombado obras como o edifício do Museu de Arte de São Paulo – Masp e o edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP. Na esfera federal, porém, o assunto estava, há muito, a exigir maior atenção das atividades da Superintendência de São Paulo do Iphan. Não é difícil verificar, por exemplo, que o repertório de arquitetura moderna reconhecido até momento neste estado está muito distante de uma representação adequada.
As obras de Arquitetura Moderna atualmente tombadas pelo Iphan, em São Paulo, são as seguintes:
- Casa Modernista da rua Santa Cruz (Gregori Warchavchik);
- Casa Modernista da rua Bahia (Gregori Warchavchik);
- Casa Modernista da rua Itápolis (Gregori Warchavchik);
- Museu de Arte de São Paulo (Lina Bo Bardi);
- Casa de Vidro (Lina Bo Bardi);
- Sesc – Pompeia (Lina Bo Bardi);
- Teatro Oficina (Lina Bo Bardi e Edson Elito);
- Edifício-sede do IAB SP (vários arquitetos);
- Conjunto edificado do Ibirapuera (Oscar Niemeyer e equipe);
- Teatro Cultura Artística (Rino Levi), apenas o painel de Di Cavalcanti.
A simples enumeração destes projetos contemplados pelo tombamento deixa evidentes as enormes lacunas. O repertório é muito limitado, correspondente apenas a dez exemplares. Além do reduzido número de obras, verifica-se que a maior parte delas compreende a produção de apenas dois arquitetos, Gregori Warchavchik (três obras) e Lina Bo Bardi (quatro obras). Apesar do alto significado destes exemplares, fica evidente sua pouca representatividade no contexto da produção do século 20, no Estado de São Paulo.
Por outro lado, é necessário considerar as próprias características da produção de arquitetura moderna no contexto de São Paulo. Se é relativamente fácil identificar um repertório de arquitetura moderna associado à Escola Carioca, que deu notoriedade internacional à arquitetura moderna brasileira, quando a atenção se dirige à produção paulista, a situação é muito distinta.
Um dos aspectos mais significativos deste traço é, certamente, a diversidade da produção da arquitetura moderna paulista. No contexto do estado, comparecem várias correntes de produção de arquitetura, tanto aquelas de origem local, especialmente as sucessivas gerações de arquitetos formados na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo: as gerações de arquitetos formados no Curso de Engenharia e, mais tarde, de Arquitetura da Universidade Mackenzie; mas também a notável contribuição de arquitetos estrangeiros emigrados no entre guerras e no imediato pós-guerra, que ali se estabeleceram, desenvolvendo uma produção que conjugaria aspectos da formação europeia às condições locais.
Um levantamento realizado pela Superintendência do Iphan sobre obras do centro da cidade de São Paulo, mediante inventário preliminar de 67 edifícios permitiu verificar que cerca de 50% dos arquitetos eram de origem estrangeira. Apenas para ilustrar, além dos já mencionados Gregori Warchavchik e Lina Bo Bardi, é possível citar Jacques Pilon, Lucjan Korngold, Marjan Glogowski, Francisco Beck, Henri Sajous, August Rendu, Daniele Calabi, Herbert Duchenes, Franz Heep, Arnaldo Gladosch, Giancarlo Palanti, Giancarlo Gasperini, e tantos outros. Diante deste quadro, o mínimo a considerar é o conjunto de arquitetos que atuaram em São Paulo ao longo do século 20. Se pretendêssemos uma seleção significativa, não poderíamos deixar de contemplar um repertório quantitativamente mais expressivo de obras e arquitetos.
Nessa circunstância, não é estranho imaginar o que possa ter atraído o arquiteto Hans Broos (Gross-Lomnitz, Áustria, atualmente Eslováquia, 1921 – Brasil, 2011), em relação ao Brasil. Segundo suas próprias palavras, "as notícias chegadas sobre a arquitetura brasileiras foram tão convincentes que decidi trabalhar no Brasil" (1).
Além dessa disposição própria da condição de jovem profissional, outras atitudes revelariam a estatura de Hans Broos. Uma das mais significativas, a meu ver, foi o estudo desenvolvido para a revalidação de seu diploma, em 1957, com o trabalho de levantamento da arquitetura de origem luso-brasileira, intitulado Casas Antigas no Litoral de Santa Catarina, uma espécie de naturalização cultural do arquiteto. Não bastasse isso, foi assistente do professor Lucas Mayerhofer (1902-82), tendo colaborado na reconstrução das ruínas das Missões, no Rio Grande do Sul (2).
Tombamento
O segundo aspecto que pretendo abordar refere-se ao processo de tombamento proposto: o "Conjunto da obra de Hans Broos".
O pedido de tombamento encaminhado em 22 de junho de 2009, pelo arq. André Luiz de Lima solicita atenção do Iphan para o “Conjunto da Obra de Hans Broos”, além do acervo documental, apoiados por um documento intitulado “Memorial de Tombamento” (3).
O objetivo do pedido não é apenas legítimo, mas conceitualmente adequado, uma vez que propõe uma consideração abrangente sobre a obra do arquiteto, contemplando não apenas um conjunto de exemplares significativos, mas também o acervo documental que dá testemunho da atividade multifacetada de Broos, reveladora das suas peculiaridades de formação, atividade profissional e de sua aptidão para a pesquisa.
Colocada nestes termos, contudo, esta proposta esbarra imediatamente em questões práticas de difícil equacionamento. Há, de um lado, o problema de jurisdição, uma vez que a análise dos pedidos de tombamento é feita pelas Superintendências Regionais do Iphan. Embora grande parte das realizações de Broos se distribua pelos estados de Santa Catarina e São Paulo, ele produziu obras por todo o Brasil. Denotativo desta dificuldade é o fato de o pedido ter sido desdobrado em dois processos, um a ser analisado pela Superintendência de São Paulo, outro pela de Santa Catarina. Porém, esta divisão deixa desatendidos alguns itens, como é o caso da indicação da fábrica Hering do Nordeste, situada em Paratibe Paulista, Pernambuco (1975-78).
Outra dificuldade decorre do problema da eleição de quais seriam as obras mais representativas de sua produção. Qual o universo a ser considerado?
O “Memorial de Tombamento” destaca algumas obras principais compondo – se bem entendi – um repertório de nove principais realizações, compreendendo:
- Arquitetura Religiosa – Centro Paroquial e Igreja São Bonifácio, São Paulo SP, 1966; Mosteiro de São Bento, Vinhedo SP, 1971; Abadia de Santa Maria, São Paulo SP, 1975;
- Arquitetura Residencial, Residência Eduard Zipster, Florianópolis SC, 1959; Residência Hans Broos, São Paulo SP, 1971; Residência Dieter Hering, Blumenau SC, 1978;
- Arquitetura Industrial, Conjunto Hering – Matriz e Filiais, Vale do Itajaí SC, 1968-88; Hering do Nordeste, Paratibe Paulista PE, 1978; Lápis Johann Faber, São Carlos SP, 1985.
Esta divisão em categorias de obras segundo sua finalidade poderia constituir um critério a ser perseguido, recortando o vasto universo de mais de quatrocentas obras produzidas pelo arquiteto.
Um segundo problema é constituído pelo Acervo Documental. Como considerar um vasto legado de documentos correspondentes a uma longa vida produtiva que abrange um enorme universo de fontes, dos registros biográficos e de ordem pessoal aos documentos da atividade profissional, das fontes textuais às fontes iconográficas, das mais diversas categorias, desenhos de observação, croquis, desenhos de projeto, desenhos técnicos etc., e, ainda, acervo documental impresso, acervo bibliográfico, e o acervo administrativo do escritório de arquitetura? Em outras palavras, onde começa e onde termina o universo a ser considerado? Não bastasse isso, a quem caberia tal seleção?
Por fim, a situação jurídica do espólio do arquiteto é ainda incerta e sem horizonte de prazo para o seu desfecho. Situação dramática quando se considera que qualquer medida de tutela sobre determinado bem pressupõe a explicitação do responsável por sua propriedade.
A situação precária tanto do acervo quanto da residência do arquiteto em São Paulo ilustra bem as dificuldades do tombamento proposto.
Feitas estas ressalvas preliminares, passo, a partir de duas obras – a Igreja de São Bonifácio e a Residência do arquiteto – a considerar os demais aspectos de preservação do notável legado de Broos.
Igreja São Bonifácio, 1964-1966
Em terreno adquirido em 1958, no bairro de Vila Marina, a igreja foi construída em meados da década seguinte, tendo sido inaugurada pelo Cardeal Dom Agnelo Rossi em 1966.
O edifício é dividido em dois corpos distintos, um destinado à residência paroquial, outro ao culto religioso. Entre eles uma ampla esplanada dá continuidade ao passeio de onde se descortinava, à época de sua realização, a ampla vista da paisagem que se estendia até o Parque Ibirapuera.
A concepção arquitetônica e urbanística do conjunto está intimamente associada às características do sítio no qual foi implantado. É oportuno lembrar que Hans Broos teve como colaborador frequente em suas atividades, Aziz Ab´Saber (1924-2012), o notável geógrafo, estudioso da geomorfologia urbana de São Paulo. No caso específico, estamos diante de um terreno situado muito próximo da crista do assim chamado Espigão Central, que divide as duas grandes bacias hídricas, do Rio Tietê e do Rio Pinheiros, definidoras da conformação característica da cidade. Os levantamentos cadastrais do trecho da Vila Mariana, tanto o Sara Brasil, de 1930, quanto a carta de 1954, deixam clara a posição privilegiada do local de implantação da igreja, situada na rua Humberto I, uma via próxima da crista do divisor de águas, portanto no topo de uma vertente que se estende por longa distância. As citadas plantas revelam ainda a condição do bairro residencial, cuja ocupação era então composta do casario disperso destinado a habitações unifamiliares.
Dessa posição, a igreja desfrutava de um amplo domínio visual na direção oeste, que se prolongava até o Parque Ibirapuera e mais além, conforme já dito. Assim, a própria condição do sítio sugeria – senão impunha – a possibilidade de constituir uma grande esplanada em continuidade à rua situando, a partir dela, as demais partes do conjunto. Surgia assim, o centro paroquial – edifício de finalidades mais reservadas – implantada na parte inferior, acomodada à declividade do terreno. Em contraste, de forma surpreendente, a igreja foi concebida como volume suspenso, elevado sobre o adro.
Embora relativamente pequeno para um templo religioso, este bloco suspenso compõe uma massa proporcionalmente grande no contexto do bairro residencial. Fosse projetado de forma convencional sua presença provavelmente resultaria impositiva e desrespeitosa, como frequentemente ocorre em situações semelhantes em nossas cidades. O recuo da edificação, cuja altura se aproxima de 15 metros, permite que o edifício se eleve sobre o entorno imediato sem, contudo, oprimir o ambiente do casario residencial corrente. Percepções análogas possivelmente induziram à definição do campanário como elemento integrado ao volume da igreja, também ele suspenso sobre o volume elevado, reiterando o sentido figurado da forma ascendente conferido ao templo religioso. Com esta aguda compreensão do ambiente urbano, o arquiteto encontraria uma resposta atenta, sem prescindir da ênfase que deve merecer a finalidade a que a construção se destina.
Três degraus acima do passeio, conforme recomenda a liturgia, a primeira parte da esplanada compõe, como extensão da rua, o adro, dando início à gradativa passagem do ambiente urbano para o recinto religioso. Sob o abrigo do volume suspenso, a esplanada prossegue até alcançar a área livre que originalmente dominava a paisagem. Local propício para as festas religiosas e as atividades comunitárias da paróquia, a separação entre os dois corpos proporciona um ambiente de transição entre o universo da vida cotidiana e o recinto dedicado ao culto. Na extremidade lateral da esplanada, uma pequena marquise marca o início da rampa. O vitral alusivo à São Bonifácio e o movimento ascendente do percurso preparam o ingresso no templo.
Ao alcançar a nave da igreja, o volume opaco de muros nus de concreto à vista subitamente se revela iluminado, graças às aberturas superiores dispostas ao longo das faces laterais e sobre o altar-mor. O interior é simples e despretensioso – ainda que erudito, e a delicada claridade do ambiente sugere tranquilidade e introspecção. A exposição franca de materiais e técnicas está presente no ritmo ordenado das vigas transversais e no contraponto da textura de tijolos da laje de cobertura, evocando, em certa medida, o despojamento original de antigas construções religiosas. A expressão forte, até mesmo rude da textura das formas construtivas in natura logo se atenua, dando a impressão de que o teto paira suspenso pelo efeito da luz.
A simplicidade se estende aos elementos de ornamentação religiosa, que comparecem de maneira concisa, na via sacra em baixo relevo sobre os muros de concreto ou, no antigo púlpito, este último, todavia suprimido em reforma recente. A cada ponto para o qual se dirige a atenção do observador vai se tornando evidente que nenhum elemento escapou a atenção do arquiteto, do refinado mosaico do piso a pia batismal, das cadeiras dos fiéis a pia de água-benta. Até mesmo um sistema de ventilação foi contemplado graças às aberturas inferiores ao longo da nave e exaustão pela cobertura, assegurando um ambiente ameno mesmo nos dias quentes. Salão livre, sem subdivisões, salvo os degraus que delimitam o altar e as dependências da sacristia definidas por painéis leves de madeira sob o coro.
De volta à esplanada, outro percurso se oferece ao visitante, em sentido descendente, através da sequência de lances de escada que dão acesso ao salão da congregação religiosa e às dependências da residência paroquial. O salão é de dupla altura, dotado de palco e galeria, proporcionando um ambiente para reuniões e atividades festivas.
As demais instalações, constituídas de escritório, biblioteca e apartamentos residenciais, são orientadas para a face norte, voltadas para o jardim lateral. Na extremidade oeste situam-se a sala de estar e a sala de refeições. Um longo corredor paralelo à escada, constituído de grandes planos, definidos pelos lambris formados pela sequência de armários e pelo mosaico de mármore, expandido para toda a dependência do último compartimento a sala de jantar. As faces norte e oeste da residência paroquial são inteiramente envidraçadas e protegidas por amplos terraços. Em contraste, a face sul apresenta fechamentos no limite das lajes, alternando panos de alvenaria, de blocos de vidro e esquadrias.
A racionalidade do projeto alcança a todos os aspectos de sua realização, da concepção geral aos pormenores. Tudo é claro e ordenado, cada parte se apresenta perfeitamente definida segundo o sentido que lhe é próprio.
À época em que foi concluída esta obra alcançou repercussão significativa, tendo sido publicada (Acrópole, n. 344, out. 1967) e agraciada com prêmio Rino Levi, em 1967. Sua forma e seus aspectos construtivos sugeriram imediatamente uma possível adesão ao chamado Brutalismo Paulista o que, para além de seus estudos sobre a arquitetura tradicional de Santa Catarina, indicaria a tendência de Hans Broos a alinhamentos ainda mais específicos em relação à cultura arquitetônica local. De fato, as características das obras posteriores confirmariam a crescente assimilação de formas de expressão reveladoras de afinidades com a Escola Paulista. Porém, seu enquadramento imediato apenas pela expressão formal da solução volumétrica ou pelo recurso à exposição franca dos materiais talvez seja um pouco apressado, pois tais aspectos também podem derivar do sentido de austeridade de uma longa tradição de construções religiosas. Por outro lado, o refinado acabamento de uma série de elementos no interior do conjunto, especialmente na residência paroquial, parece sugerir o contrário. Seja como for, mais do que o sentido expressivo dos materiais in natura, impressiona a leveza da forma arquitetônica e o controle rigoroso de cada um dos pormenores constitutivos da obra.
Passados mais de cinquenta anos de sua realização, a igreja e o centro paroquial foram objeto de obras de conservação, realizadas nos anos 2009 e 2010, proporcionando a recuperação e atualização do conjunto. Não deixou de haver, porém, ainda que localizadas, algumas alterações das características originais, entre elas a demolição do púlpito e a substituição da primitiva cruz pela réplica “Lacher Cruz” de Cristo crucificado (4). A pureza da face nua da fachada, por sua vez, parece ter cedido ao impulso decorativo, acolhendo a cruz que se encontrava no interior da nave.
As atuais imposições normativas de segurança também trouxeram repercussões. Entre elas, a exigência de elevação dos parapeitos resultou no acréscimo de uma nova placa de concreto à vista sobreposta ao guarda-corpo pré-existente, feita, no entanto, de forma tão atenta que se tornou difícil distinguir o elemento novo da peça original. Não ocorreu aos responsáveis pelo serviço a possibilidade de utilização de uma simples barra metálica para atender aos requisitos da norma.
As últimas décadas foram marcadas por intensas transformações urbanas da cidade, causando enormes alterações na vizinhança da igreja. O surgimento de várias edificações de grande porte em terrenos lindeiros comprometeu severamente a relação particular do edifício com a paisagem.
Não obstante e a despeito da diferença de escala, a expressão inusitada do prisma suspenso no ar, persiste forte, contrastando com a banalidade do entorno, evocando por si mesmo o sentido de sua presença.
A Residência e Escritório do Arquiteto (1971)
O projeto da própria residência é um tema recorrente na trajetória de muitos arquitetos consagrados, constituindo sempre uma oportunidade de experimentar mais intensamente suas próprias ideias. Esta simples consideração sugere, de imediato, a necessidade de dirigira atenção especial para o exame desta obra.
E, no caso específico caberia perguntar: quais aspectos distinguiriam a casa projetada pelo arquiteto Hans Broos?
De início, por contraste, talvez coubesse dizer que a concepção da residência se apoia em um critério oposto ao da igreja de S. Bonifácio, pois se trata de um edifício que se acomoda ao terreno de forma muito discreta, como quisesse se ocultar, por assim dizer.
A obra foi realizada em um lote com frente para duas ruas – Oscar de Almeida e Vicente Correia – da Fazenda Morumbi, em São Paulo. Em uma extremidade foi implantada a casa, e na outra o escritório. Ambas as edificações se amoldam, quase se fundem à topografia. Entre elas, em sucessivos terraços, se desenvolve o jardim excepcional de Burle Marx.
Da rua quase não se percebe a residência, cuja entrada é muito discreta, resolvida por meio de um mezanino em continuidade ao nível do passeio, que se prolonga pela extensão do terreno e se debruça sobre o pavimento inferior, proporcionando ampla perspectiva da paisagem. No centro deste percurso, iluminada por uma claraboia, a escada semicircular conduz à sala de estar e dependências subsidiárias. Delimitada na face interna pelo painel escultórico de Burle Marx, a sala expande o domínio visual por meio de grandes superfícies envidraçadas nas faces opostas. Ao seu lado, um pequeno estúdio, uma biblioteca e o quarto de hóspedes se acomodam em sucessão.
Trata-se de uma área edificada concebida de forma orgânica, que foi sendo ajustada ao terreno, ora recortando e escavando o solo, ora acrescentando volumes construídos. Mas tudo sempre em contato com o terreno. A única parte que se destaca é a laje de cobertura, sustentada por um grande pórtico, que se eleva sobre o conjunto formando um amplo dossel, como a sugerir, por esta forma arquitetônica, a representação do sentido de abrigo. Este é o único elemento deslocado em relação ao restante da construção, cujas partes vão se adaptando aos terraços da encosta em declive.
A seguir, é possível continuar o percurso descendente, por uma sucessão de patamares delimitados por muros de contenção, cultivados com rica variedade de forrações e canteiros floridos. No centro do terreno foi implantada a piscina, formando a área livre mais ampla que antecede o escritório, semienterrado, cuja laje de cobertura foi recoberta por jardim, em continuidade ao tratamento paisagístico.
Na extremidade leste do lote, uma escada dá ingresso a este outro edifício, organizado de forma linear, de uma divisa à outra, tendo a face principal voltada para a rua. O desnível no alinhamento desta permitiu, ainda, acomodar uma garagem de veículos para atender ao escritório.
Digno de nota é o afastamento entre o muro de contenção e as paredes internas do escritório e os dispositivos de iluminação e ventilação deste setor. Aqui comparecem, novamente, estruturas de concreto armado cujas características construtivas são evidenciadas.
Apesar da presença difusa de elementos construtivos, como os muros que desenham os patamares ajardinados ou delimitam escadas e linhas de circulação, e do destaque da estrutura de cobertura da residência e, em menor grau do escritório, o que predomina é o jardim e a arborização que recobre quase toda a área. Os principais ambientes das salas de estar e das dependências de trabalho foram tratados com amplas superfícies envidraçadas, acentuando a integração espacial. Assim, do mesmo modo que a presença edificada se reduz, as fronteiras entre os espaços internos e externos se atenuam, sendo um a continuidade do outro.
Esta simplicidade e parcimônia continuam a evocar a presença do autor da obra e de seus colaboradores. Porém, desde o falecimento do arquiteto em agosto de 2011, a evidente desatenção com a conservação do edifício tem causado sua progressiva deterioração. Hans Broos não deixou herdeiros e, em seus últimos anos, havia manifestado o interesse em legar a casa e seu acervo para instituição voltada à pesquisa e ao estudo da arquitetura. Contudo, as tratativas até aqui tentadas não prosperaram. O inventário encontra-se em andamento, em Blumenau, Santa Catarina, mas sem prazo de conclusão definido.
Acervo Documental
Por fim, cabe considerar, ainda que de forma breve, o acervo documental objeto de interesse de preservação.
De início, é possível afirmar que este legado encerra alto valor cultural, por constituir testemunho da trajetória de atividades de um arquiteto, cuja obra tem grande relevância no cenário da produção de arquitetura moderna na segunda metade do século 20.
O acervo é rico e variado, composto principalmente do repertório iconográfico constituído dos desenhos técnicos de projeto, dos desenhos e estudos de concepção, dos croquis e anotações, do repertório de registros fotográficos das obras, da documentação escrita associada aos projetos e da documentação das atividades do escritório. Além de arquiteto, Hans Broos foi um estudioso e pesquisador, homem de elevada cultura, cuja formação procede de sua origem, na Alemanha. No Brasil, seus trabalhos de investigação sobre a história da arquitetura foram, inicialmente, dedicados ao estudo da arquitetura de origem luso-brasileira em Santa Catarina e, posteriormente, ao longo de sua carreira, sempre em consonância às demandas e peculiaridades de seus projetos, em mais de cinco décadas de atividades. Uma vasta coleção bibliográfica inclui obras raras e o repertório corrente de publicações sobre arquitetura, história, meio-ambiente e séries de periódicos especializados.
Este notável acervo documental encontra-se sob ameaça, dadas as condições em que se encontra o local onde estão abrigados, no escritório e na residência.
Diante dessa circunstância, com a mediação do núcleo do Docomomo – São Paulo, vem sendo desenvolvido por equipe especializada, o trabalho voluntário de limpeza, separação e identificação do acervo, coordenado pelo Arquiteto Fabio Di Mauro e pela Historiadora Mirza Pellicciota, assistidos por um grupo de quatro jovens arquitetos.
Eis, pois, as circunstâncias em que se encontram a residência e o acervo documental, partes relevantes do legado de Hans Broos. Espero que a iniciativa de cuidados emergenciais do acervo e o presente relato possam contribuir para abrir alguma perspectiva sobre a sua conservação.
notas
NE – Este artigo foi originalmente apresentado no I Seminário sobre Hans Broos, realizado no Instituto Federal de Santa Catarina – IFSC, em novembro de 2018.
NA – No I Seminário sobre Hans Broos foram feitas as seguintes observações a título de introdução do assunto: Inicialmente, gostaria de agradecer a oportunidade de participar deste seminário sobre Hans Broos, pois estou certo que a discussão aqui realizada será de grande relevância para nossos estudos sobre sua obra. Espero também estar à altura da responsabilidade desta participação, por representar o Diretor do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Depam Iphan, arq. Andrey Rosenthal Schlee. Nesta apresentação vou me concentrar em três trabalhos específicos de Broos: a Igreja de São Bonifácio, na Vila Mariana; sua Residência e o seu Escritório – do qual faz parte o Acervo Documental de seus projetos, no Morumbi, na cidade de São Paulo".
1
BROOS, Hans. Depoimento pessoal. In Processo de Tombamento nº 01506.001120/2009-42. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília, 2009, fl. 08.
2
Idem, ibidem, fl. 09.
3
Idem, ibidem, fl. 04-40.
4
Arquidiocese de São Paulo. Matriz Paroquial Pessoal Alemã São Bonifácio. Arquidiocese de São Paulo, Região Episcopal Sé, Paróquias, São Paulo, s/d <http://arquisp.org.br/regiaose/paroquias/paroquia-pessoal-alema-sao-bonifacio/matriz-paroquial-pessoal-alema-sao-bonifacio>.
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