A escolha de um objeto de estudo com nome tão inusitado surgiu pelo contato com as fachadas de cacos de azulejos coloridos nas cidades de Abaetetuba e Belém, ambas no estado do Pará. O interesse veio a se aprofundar no registro fotográfico desses exemplares na capital paraense a título de catalogação para o Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural – Lamemo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará e em consequência da necessidade de complementar as pesquisas divulgadas em monografias, artigos e dissertações na área de arquitetura.
Este artigo contempla a pesquisa realizada em três bairros de Belém, selecionados pelos critérios de relação com edificações de linguagem clássica e eclética (bairro da Cidade Velha), modificação do estrato social e especulação imobiliária (bairro do Umarizal) e alto nível de renovação das fachadas (bairro do Telégrafo). A Etnografia de rua e a análise semiótica de fachadas foram adotadas como métodos de aproximação do objeto de estudo, incluindo o mapeamento por bairro, registro fotográfico e entrevistas com os moradores para verificar a relação destes com os imóveis no que tange aos condicionantes para a manutenção ou apagamento das fachadas.
O modernismo paraense e sua apropriação popular
As transformações produzidas pelo processo de modernização do país e do desenvolvimentismo que permeou as décadas de 30 a 50 do século 20 começaram a influenciar o anseio de modernidade pelos novos grupos liberais, que passaram a ver os modelos ecléticos e neocoloniais das residências como ultrapassados. A partir de então, surgem moradias cuja linguagem arquitetônica dialoga com as concepções de modernidade e progresso vigentes. Em Belém, o eixo de expansão que marcou a propagação da nova arquitetura foi a avenida Presidente Vargas (anteriormente conhecida como avenida da República e 15 de agosto), na qual se formou um novo centro comercial e administrativo.
O primeiro edifício a ultrapassar os três andares em Belém foi o Costa Leite, de autoria do engenheiro Judah Levy, em colaboração com David Lopes, arquiteto português (1), foi também uma obra que, em sua linguagem arquitetônica, expressa originalidade através da fachada semicircular que sobrepõe três volumes bem articulados. Outro engenheiro a atuar em projetos de edifícios na capital paraense foi Agenor Pena de Carvalho, que influenciado pela linguagem moderna da escola carioca criou o edifício São Miguel, cuja área livre comum e uso de pilotis no térreo se comunicam com o exterior, além do emprego de cacos de azulejos nas paredes – prática que se repetiu entre muitos projetistas na época.
O modismo da nova arquitetura não se limitou às elites locais, tendo alta receptividade entre outros grupos que, diferente dos primeiros, muitas vezes não dispunham de recursos suficientes para arcar com o acompanhamento de um projetista. A incorporação de um gesto artístico é um dos traços marcantes da Casa Gabbay (1954), do engenheiro Laurindo Amorim: o mural de azulejos no acesso lateral à residência tem as características do que viria a se chamar “raio que o parta”.
A extensão do patrimônio moderno brasileiro reforça a necessidade de sua preservação, e neste ponto Fernando Lara (2) alerta para o fato de que esse patrimônio não é constituído apenas por exemplares feitos por arquitetos, mas abraça também as “casinhas ‘modernosas’, signos das apropriações populares do vocabulário do movimento moderno”. Segundo o autor, embora internamente refletissem semelhanças nas plantas tradicionais do início do século 20, nas fachadas das casas modernas de classe média há sobreposição de elementos conflitantes, aproximando-se do conceito de colagem e montagem do estilo e remetendo a diversos contextos.
Os estudos de Dinah Guimarães e Lauro Cavalcanti (3) apontam a existência de uma arquitetura kitsch, quando falam das edificações de caráter popular que se apropriaram da linguagem moderna à sua maneira, entre as décadas de 40 e 60 do século 20. Acredita-se que essa manifestação surgiu como um anseio das classes média e baixa de participar das tendências que o movimento moderno trazia no campo das artes e da arquitetura, encontrando reflexos em algumas regiões do país, como o Sudeste – Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais – e o Nordeste, e também revelavam uma preocupação artística no ambiente construído.
No Pará, apesar da primeira escola de arquitetura ter sido fundada em 1964 – e tendo professores vindos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS –, o modernismo já estava presente na arquitetura, seja feito por engenheiros, seja por desenhistas, mestres de obras ou arquitetos vindos de fora. A arquitetura dita oficial, feita por profissionais, tinha caráter elitista, voltado para residências de grande porte e clubes sociais (4).
A apropriação não-erudita do modernismo arquitetônico paraense manifestou-se em construções cujas fachadas revestidas de cacos de azulejos coloridos formavam raios, bumerangues e setas – desenhos que acabaram por nomear a estética de “Raio que o parta” – RQP (5). Embora Ivana Santos (6) afirme que o Raio que o parta é “um fenômeno específico de Belém – com raras assimilações no interior do estado”, podemos encontrar residências em outros estados brasileiros com características em comum, a respeito dos mosaicos cerâmicos do muralista Paulo Werneck que integrou projetos como o Complexo da Pampulha, além das obras de Antonio Gaudí, que no final do século 19 estabelece a ligação das primeiras collages expressionistas com as inovações da arquitetura da década de 50 (século 20), revestindo várias de suas obras, como o Parque Güell; em Portugal, a técnica do “embrechado”, que remonta ao século 16, também guarda semelhança com o Raio que o parta.
No trabalho de Maria Barcessat et al (7) é afirmado que o modernismo belemense foi em grande parte produzido pela “arquitetura popular” (expressão usada pelas autoras) na década de 1960, embora houvessem engenheiros que usavam tais composições do RQP em suas obras, decisão justificada pela impermeabilidade do azulejo. Sobre a composição por cacos, há mais de uma versão, sendo mais conhecida a de que os azulejos sofriam avarias em virtude das precárias condições da rodovia Belém-Brasília por onde os veículos transportavam esse material, e por isso as lojas vendiam esses produtos a preços mais baixos.
Para Santos, outra diferença básica é que o raio-que-o-parta não se trata de uma arquitetura racionalista, ao contrário do modernismo enquanto Estilo Internacional. Segundo a fala do arquiteto Jorge Derenji, um dos primeiros professores a ensinar no Curso de Arquitetura da Universidade federal do Pará – UFPA, as obras com inspiração raio-que-o-parta eram em sua maioria limitadas pela questão econômica: os azulejos usados nas fachadas poderiam ser adquiridos no mercado a um preço bem baixo, pelo fato de estarem avariados.
Contudo, não se pode fazer uma relação de causalidade entre crise econômica e o Raio que o parta, uma vez que o maior número de construções RQP datam de uma época de reaquecimento da economia. Em entrevista (8), um proprietário de casa “Raio que o parta” afirmou que a própria família quebrava os azulejos para formar os mosaicos e desenhos. Ronaldo Marques de Carvalho e Cybelle Salvador Miranda, (9) falam de aproveitamento de sobras de construções e Andréia Loureiro Cardoso (10) levanta a hipótese de o “Raio que o parta” ter sido influência de murais criados pelo artista plástico Ruy Meira, que incorporou os mosaicos de azulejos em algumas de suas obras, como a residência do artista em Mosqueiro e a do casal Benedito e Maria Sylvia Nunes. Esta integração artística viria a repercutir nas arquiteturas populares do período, conforme atesta Barcessat et al:
"O uso de painéis artísticos na obra arquitetônica pode ser considerado como tentativa de integrar arte e arquitetura, como pregava a Bauhaus. No Brasil, Niemeyer influenciou muitos jovens arquitetos após utilizar o painel de azulejo na fachada da Igreja de São Francisco em Pampulha"(11).
Ainda sobre a composição,
"Os próprios raios, que ilustravam os mosaicos, são imagens que ficavam das colunas, platibandas e outros elementos pontiagudos e inclinados, apreciados na arquitetura modernista. Esta atitude nascia da observação e cobiça do elemento, ao ponto de chegar a reproduzi-lo (já que não podia ser adquirido), para satisfazer o desejo compulsivo de possuir o objeto" (12).
Vale ressaltar que, embora as pastilhas cerâmicas já fossem usadas na época, como o vidrotil, sua aplicação era pouco disseminada na região, devido à falta de mão de obra qualificada para o serviço; dessa forma, os azulejos em cacos cumpriam a função desejada pelos moradores e mestres de obra pela versatilidade de moldar seu tamanho e facilidade de assentamento.
Métodos de aproximação
Partimos dos estudos prévios sobre o Raio que o parta a fim de compreender sua origem e características, comparando as percepções dos autores sobre a manifestação. Ao mesmo tempo, a pesquisa identificou um sensível número de apagamentos das fachadas RQP nos últimos anos, levando-nos a investigar os condicionantes para tal, tendo em vista que tal perda está associada ao uso do imóvel e a ausência de vínculo entre esta e o morador.
Observar esses aspectos exigiu a adoção de uma metodologia que envolveu a Etnografia de rua (13) (14) (15) e análise semiótica (16) das fachadas de três bairros de Belém – Cidade Velha, Umarizal e Telégrafo, cuja escolha foi determinada pela relação entre linguagens estilísticas distintas, número expressivo de exemplares e risco de perda de suas características originais.
A Etnografia de rua (17) inspira-se no pensamento de Walter Benjamin, cuja perspectiva etnográfica parte do paradigma estético ao interpretar a vida social no contexto urbano. Essa etnografia explora os espaços urbanos por meio de caminhadas ao estilo do flâneur, personagem proposto por Charles Baudelaire, que se desloca sem um destino preciso. Entretanto, o tempo destinado à pesquisa de campo não seria suficiente para as incursões à maneira do flâneur; assim, a identificação desses personagens urbanos – as fachadas Raio que o parta – foi realizada com auxílio de recurso online, para então procedermos à verificação in loco. Consideramos as fachadas como personagens porque expressam um momento da história local e a forma como o modernismo era consumido na arquitetura não-oficial através da linguagem visual de seus desenhos abstratos.
O mapeamento das residências foi realizado com o auxílio do Google Street View, para comparar o índice de permanência e apagamento do RQP entre 2012 (ano de captura das imagens pelo Google) e 2014 (ano da pesquisa de campo), quando fotografamos as fachadas para verificar modificações. O endereço de cada residência encontrada era registrado em uma planilha, junto a uma referência do local para facilitar sua identificação. Em seguida, todos os imóveis eram sinalizados em seus respectivos lotes registrados em mapa do referido bairro, no intuito de visualizar a morfologia da concentração dos exemplares na região.
A pesquisa identificou 90 casas raio que o parta distribuídas nos três bairros. Na Cidade Velha, onde se iniciou a ocupação de Belém e tem parte de sua área tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, é o local com menor número de casas RQP (27 unidades), embora o número de apagamentos observados no período entre 2012 e 2014 (1 unidade) seja o menor dos três bairros estudados, o que se reflete no posicionamento da maioria dos entrevistados, os quais afirmam não pretender modificar a fachada.
No Umarizal encontramos 34 casas RQP, apesar da ideia inicial de haver poucos exemplares em virtude da expressiva especulação imobiliária e mudança no estrato social, que passou de “bairro periférico, de paisagem degradada, onde proliferavam as valas, capim, enchentes e aningal, dificultando o ir e vir das pessoas” (18) a uma das áreas com o metro quadrado mais caro de Belém. Apesar do maior número de fachadas dentre os três bairros, o número de apagamentos (5 unidades) é também elevado, sendo essas modificações feitas principalmente com aplicação de pintura sobre o painel de azulejos.
O Telégrafo, que faz fronteira com o Umarizal, tem perfil social de menor poder aquisitivo que este e o número de fachadas Raio que o parta é menor (29 unidades), mas apresenta maior número de apagamentos (6 unidades), em sua maioria resultantes de modificações que reformularam totalmente a fachada. É o bairro com maior risco de perda do RQP não somente em função dos apagamentos já realizados, como do anseio da maioria dos moradores em modificar a fachada.
O raio que o parta na visão do morador
A última etapa da pesquisa etnográfica consistiu em obter informações junto aos moradores das residências RQP dos três bairros mencionados. As perguntas seguiam um roteiro pré-estabelecido, sendo acrescentadas outras no momento da entrevista, conforme a necessidade ou a disponibilidade do morador em oferecer mais detalhes sobre o imóvel. O roteiro compreendeu as seguintes perguntas:
- Já ouviu falar em casas “Raio que o parta”?
- Você sabe quando foi construída essa casa?
- Construiu o imóvel ou teve acompanhamento profissional (engenheiro/arquiteto/mestre de obra)?
- Você gosta da fachada de sua casa? Por quê?
- Foi feita alguma alteração? Por quê?
- Faria alguma alteração? Por quê?
Para a realização das entrevistas, o morador deveria assinar um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (no qual a pesquisa e seus objetivos eram apresentados) em que autorizava a gravação em áudio da entrevista. Nos casos em que o entrevistado aceitava responder as perguntas sem assinar o termo, as respostas não foram gravadas.
Na Cidade Velha (bairro no qual foram realizadas 8 entrevistas, sendo uma não gravada), 25% dos entrevistados já tinham conhecimento da expressão “Raio que o parta” em arquitetura e 25% forneceu uma época aproximada de construção do imóvel – nestes casos, a casa fora construída por volta das décadas de 1940 a 1950 e concebida com a estética RQP pela primeira geração com a qual o morador atual mantém vínculo familiar. Esses moradores afirmaram que a casa foi realizada com acompanhamento projetual, embora não tivessem a cópia do projeto ou soubessem de quem foi a autoria.
A maioria (62,5%) afirmou gostar da fachada RQP. A proprietária do imóvel n. 588, na rua Ângelo Custódio (do qual se mudou para residir em uma casa mais ampla e, por coincidência, também é Raio que o parta) diz gostar porque “ela é bonita, ela é grande e é antiga”. Na Vila São Martinho, próxima à Ângelo Custódio, entrevistamos três moradoras de residências RQP e suas impressões a respeito dos mosaicos de azulejos coloridos foram diferentes. A inquilina da casa n. 36 conta:
"Eu adoro, acho lindo, acho diferente. Tanto que o pessoal lá da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará, todas as vezes que eles vem aqui [...], eles batem fotos porque eles acham diferente a fachada"(19).
Sua vizinha, da casa n. 40, revela que sua opinião a respeito da fachada mudou, remetendo-nos à mudança de paradigma (20):
"Particularmente eu não gostava, nem da fachada nem do piso [...]. Teve um grupo de italianos que veio me visitar e, quando eles vieram, eles ficaram deslumbrados com a casa, acharam a casa a coisa mais linda que podia existir [...]. Aí, o que aconteceu, eles foram me explicar algumas coisas e eu comecei a entender um pouco mais e valorizar um pouquinho mais, tanto que hoje eu não mexo, eu pinto mas eu não mexo no design nem na arquitetura dela, deixo como ela ‘tá’"(21).
O restante dos moradores (37,5% dos entrevistados) preferiu não proferir um juízo de valor definitivo a respeito da fachada, usando expressões de imprecisas como “tanto faz” ou “mais ou menos”. O morador da residência n. 40 (Passagem Maria Luiza) conta: “Não tenho problema, não altera nada, tanto faz ficar como não, até porque foram meus pais que deixaram esse treco aí, ficou assim, guardar a memória”. Em outras palavras, não houve afirmação categórica por parte dos entrevistados a respeito de não gostar do RQP, mesmo a moradora da residência n. 121 (rua Dr. Malcher) que, quando respondeu “Apesar de que já está velho, feio”, termina sua fala sem se posicionar: “mas [...] pra mim, não influi nem contribui”.
Indagados sobre modificações já realizadas, 50% responderam afirmativamente, citando as mudanças frequentes nos dois primeiros bairros (pintura e trocas de piso ou forro). Ao contrário do Umarizal e do Telégrafo, 88% diz que não pretende modificar a fachada para retirar os desenhos de azulejos.
No Umarizal, 6 entrevistas foram concedidas, das quais 3 foram gravadas em áudio com consentimento por escrito. Mesmo fazendo as tentativas em horários diferentes, houve muita dificuldade em encontrar os moradores para responder às perguntas, principalmente nesse bairro. Ao serem realizadas, nas entrevistas constatamos que apenas 17% já conhecia o termo “Raio que o parta” empregado em arquitetura. Índice semelhante foi obtido em relação à época de construção do imóvel: apenas uma moradora, da casa n. 699 (na rua Antônio Barreto) ofereceu uma data mais precisa – por volta de 1930 – que insere o Raio que o parta em época anterior ao recorte definido por esta pesquisa (entre 1950 e 1960).
A maioria dos entrevistados desse bairro (67%) revelou não gostar da fachada de sua casa. A moradora da residência n. 33 (rua Ferreira Pena) afirma não gostar porque “acho ela muito feia, muito arcaica [...]. Deixei assim por causa do meu pai”. A moradora da casa n. 1469 na rua Boaventura da Silva também disse não gostar porque “é antiga”. Por outro lado, na casa n. 87 (Passagem 12 de novembro), a entrevistada diz gostar da casa porque é a única casa antiga e todos da passagem admiram. Em outras palavras, a mesma qualificação (antiga) é usada para valorizar ou desvalorizar o imóvel, de acordo com o juízo atribuído pelo indivíduo.
Quanto às alterações, 67% revelam que modificaram a casa em algum aspecto, e aqui se incluem não somente a substituição de pisos e forros, mas a alteração de ambientes, seja pelo acréscimo ou demolição de espaços. Indagados sobre mudanças futuras, 100% afirmam que tem interesse em empreender alguma modificação (e destes, 67% eliminariam os desenhos Raio que o parta da fachada).
No Telégrafo, foram realizadas 8 entrevistas, das quais 4 foram gravadas (com anuência do entrevistado através da assinatura do Termo de Consentimento). Com base nas perguntas descritas no capítulo anterior, 88% dos entrevistados não conheciam o termo usado para classificar suas residências. Uma das moradoras afirmou já ter ouvido a expressão “Raio que o parta” através de uma arquiteta que se mostrou interessada em comprar sua casa.
A metade dos moradores forneceu uma época aproximada da construção do imóvel – em torno de 40 a 50 anos – embora nem todos tenham parentesco com os primeiros proprietários (que poderiam indicar uma datação mais precisa). Moradores que são filhos da primeira geração e que de certa forma acompanharam ou mesmo idealizaram o Raio que o parta (contabilizando quatro das oito residências) situam as construções em meados da década de 1960.
Em geral, as entrevistas conduzidas neste bairro foram entremeadas de revelações importantes sobre a origem da casa RQP e sobre a maneira como os atuais moradores (parentes ou não da primeira geração) se sentem em relação à fachada de suas casas. Na já mencionada casa n. 1948, a entrevistada não hesitou em dizer que amava seu imóvel, por ter sido construído com muito sacrifício. Reação oposta foi observada no imóvel situado à travessa Djalma Dutra, n. 736 quando a moradora mencionou a palavra “odiar” ao se referir ao desenho feito na platibanda.
O vínculo familiar com a primeira geração que idealizou o RQP nem sempre garante a afeição por essa estética. A moradora da residência n. 961, na rua Curuçá (que à época estava à venda) conta que construiria outra casa no lugar, mesmo tendo sido obra de seu pai, “porque quando ele fez era o bacana, era o moderno, entendeu? Só que hoje ele está ultrapassado”. A falta de vínculo também não exclui o gosto: a atual proprietária do imóvel n. 136 da rua Rosa Moreira, que não possui parentesco com a primeira geração e adquiriu a casa totalmente modificada interna e externamente, afirma que a compraria com a fachada original (que mostramos em imagem capturada pelo Google Street View) e não a modificaria.
No que se refere às modificações, 63% dos entrevistados afirmaram ter feito alguma intervenção no imóvel, principalmente trocas de forro e piso, ambos originalmente de madeira. Esse índice se refere principalmente às casas cujas fachadas não foram alteradas, pois não obtivemos êxito para obter informações em casas RQP modificadas entre 2012 e 2014 (com exceção da casa n. 136). Indagados sobre possíveis alterações no futuro, 50% afirmaram que pretendem empregar algum tipo de reforma (e destes, 37,5% manteriam a fachada RQP e só modificariam itens como pintura, piso e forro).
Notamos que a desvalorização do RQP é justificada pelos proprietários pelo anseio de “modernizar” a residência – o que demonstra uma aparente contradição, visto que o Raio foi empregado com a mesma ideologia nas décadas de 40 a 60 do século 20. Já a decisão em preservar as características do RQP é tomada principalmente por aqueles que guardam um vínculo afetivo com a casa (o pai/avô construiu) ou viveu a época em que foi construída, participando direta ou indiretamente das obras. A maioria dos que adquiriram a casa dos proprietários originais não possuem esse vínculo, tampouco sabem informar a respeito da origem do imóvel e não hesitam em afirmar que modificariam a casa. Entretanto, mesmo alguns descendentes da primeira geração que conhecem a história da casa RQP também mostram interesse em modificá-la.
Entre 2012 e 2014, dos 90 imóveis levantados por esta pesquisa nos três bairros, 12 já perderam as características do RQP – seja pelo encobrimento dos azulejos através de pintura ou reboco ou da reformulação total da fachada. Esse processo de perda do RQP revelou-se mais acelerado no Telégrafo, que apesar de concorrer com o Umarizal em número de imóveis RQP apagados, existem outros que estão na iminência de perderem suas características, de acordo com o relato de seus atuais moradores. Em ambos os bairros, a maioria dos entrevistados pretende modificar a fachada no intuito de eliminar os painéis de azulejos, usando termos como “antigo” ou “velho” para justificar sua opinião. Essas conclusões reforçam as ideias propostas por Aloïs Riegl (22), quando fala do valor absoluto e valor relativo: para ele o termo “valor” é tratado como um evento histórico, não permanente:
"De um ponto de vista moderno, que nega a existência do cânone artístico objetivamente válido, um monumento não pode evidentemente apresentar um valor artístico para as gerações ulteriores [...]. A experiência, entretanto, mostra que locamos constantemente obras datadas de muitos séculos acima de certas obras modernas" (23).
Outro conceito utilizado por Riegl que pode ser associado às impressões dos moradores acerca das fachadas Raio que o parta é o “Valor de Novidade”: para a vontade artística, quanto mais degradada a obra estiver, menos valor lhe é atribuído, da mesma forma como alguns moradores se sentem ao afirmar que, se a casa RQP estivesse em melhores condições, sentiriam mais apreço:
"A multidão sempre foi seduzida pelas obras cujo aspecto novo estava claramente afirmado; [...] Ao olhar da multidão, só o que é novo e intacto é belo. O velho, o desbotado, os fragmentos de objetos são feios"(24).
A obra de Riegl foi escrita no momento em que a arquitetura moderna começava a desabrochar, influenciada pelo pensamento da “pura visibilidade”, a qual afirma que a experiência artística é subjetiva e as ideias de progresso ou superioridade de um estilo em relação a outro não existiriam (25). Esse conceito é traduzido por Riegl como “vontade artística”: essa cultura põe o homem como protagonista na relação de significado atribuído às coisas – os valores, então, estariam condicionados à apreciação de cada época. Essa teoria se traduz no discurso narrado pelos moradores que justificam seu pouco apreço pela fachada raio que o parta porque outrora era considerada moderna, mas hoje é tida como ultrapassada.
Na Cidade Velha, além de registrarmos somente um apagamento entre 2012 e 2014, o discurso de “guardar a memória” é visível, o que pode ser resultado da aura de preservação do patrimônio que impregna o local, onde estão situados imóveis históricos – do início do povoamento de Belém. Por outro lado, Tutyia observa em sua pesquisa etnográfica pela rua Dr. Assis certo receio dos entrevistados quanto aos órgãos de proteção patrimonial:
"Continuando a tentativa de recolher as imagens da Dr. Assis, fiz a mesma pergunta para o senhor J.B., e ele curiosamente respondeu: ‘você está louca? Depois o patrimônio vem atrás de mim!’. Esta contestação me chamou atenção, pois não era a primeira vez neste dia que as pessoas se referiam ao ‘patrimônio’ como se fossem uma pessoa que fizesse cobranças"(26).
Em duas ocasiões, na Cidade Velha, ao interpelar os moradores da rua Dr. Malcher, estes nos perguntaram se tínhamos vínculo com a Prefeitura. Quando ouviu a negativa, a atual proprietária do imóvel n. 121 confessou que pretendia modificar o imóvel, mas questionou se a prefeitura iria interferir ou aplicar algum tipo de penalidade.
Dessa forma, a necessidade de proteger a memória/patrimônio deriva menos de uma consciência patrimonial que do medo de sofrer sanções dos órgãos de defesa. Contudo, no Umarizal e no Telégrafo (bairros externos à delimitação do Centro Histórico de Belém), não houve muito incômodo dos entrevistados em revelar que a fachada RQP não os agradava, exceto o morador da residência n. 734, no Umarizal – quando disse que, pela “questão” da preservação, não modificaria, mas não esconde o desejo de mudar para “um design mais moderno”.
A eliminação das características do “Raio que o parta” (por reforma ou demolição do imóvel) não foi aprofundada pelas pesquisas anteriores sobre o tema, embora a falta de reconhecimento dessa vertente da arquitetura moderna seja considerada por Lara:
"[A] apropriação popular do modernismo brasileiro é descartada da historiografia por uma série de razões, como simplificação formal, consumo de elementos e ausência de unidade, que, se aplicadas às obras dos anos de 1960 e 1970, condenariam boa parte do trabalho dos melhores arquitetos do país" (27).
Outra questão reside em um problema abordado por Guimarães e Cavalcante (28) e Santos (29), os quais analisam que através da arquitetura popular brasileira ocorrem duas posturas: a primeira condiz ao trato às edificações como mercadoria de venda pela maior parte da população; a segunda trata das modificações feitas no imóvel que possam vir a desvalorizar a edificação para venda, de acordo com o gosto de um futuro comprador. O apagamento e malcuidado seriam resultados do bloqueio de vínculo com o imóvel, tratando-o como um produto, onde pode ser comprado e substituído.
Considerações finais
Vivemos um paradoxo: nunca fomos tão aniquiladores da memória e, ao mesmo tempo, vorazes pela sua salvaguarda. Apagamos momentos históricos pela sede do novo para em seguida ressuscitar os séculos e décadas passadas com ar de nostalgia. Falamos tanto de memória, como dizia Pierre Nora (30), porque ela não existe mais, pois o passado cede lugar ao eterno presente através da aceleração da história; para amenizar esse efeito devastador, impera a necessidade de segurarmos os traços e vestígios de nossa memória local.
Mas o que valorizamos? O antigo, pelo discurso dos moradores entrevistados, assume conotações opostas. E o próprio termo é usado para referir-se a algo que outrora foi novo e todos queriam copiar: o Raio que o parta.
A classificação do RQP feita pelos autores também é um reflexo de sua valorização (ou da falta dela). O termo kitsch também é sugerido como forma de classificar o “Raio que o parta”. Para Abraham Moles (31), o kitsch é uma apropriação da arte erudita, uma atitude em relação ao repertório que se apresenta e por isso não deve ser enquadrada como bom ou mau gosto. Barcessat diferencia a arquitetura vernacular da kitsch: ambas são populares (produzidas pelo povo), mas a primeira estaria vinculada ao meio específico com materiais e recursos adequados às condições características, enquanto que a segunda é reflexo da tentativa de imitar o “rico”, utilizando materiais e recursos inadequados. Por outro lado, Carvalho e Miranda tecem uma crítica à compreensão das versões regionais do modernismo (como o Raio que o parta) como vulgaridade ou superficialidade (kitsch). Entendem que se trata de uma manifestação autêntica de assimilação da tendência corrente por meio de adaptação ao gosto local, e precursora do regionalismo dos anos 80 do século 20.
Robert Venturi (32) afirma que os arquitetos têm muito a aprender com as paisagens populares em vez de se debruçarem apenas em perseguições teóricas. Em outras palavras, saber absorver o conteúdo histórico e simbólico dessa linguagem artística na arquitetura isento de preconceitos para extrair valiosas lições de como nos relacionamos com a paisagem. Para ele, não há nada de errado em dar às pessoas aquilo que querem em termos estéticos, e neste caso, elas queriam participar da modernidade – muito provavelmente construindo ou remodelando suas casas com os profissionais disponíveis (engenheiros, desenhistas e mestres de obra) ou com as próprias mãos, executando os desenhos durante a própria obra. Infelizmente, a visão negativa não se limita aos profissionais, mas inclusive àqueles que convivem diariamente com a arquitetura intuitiva do Raio que o parta, resultado da visão que relativiza o valor de acordo com a novidade.
Entretanto, não podemos ignorar o apreço de muitos moradores às suas casas. Na pesquisa, embora a maioria dos entrevistados desconhecesse o uso da expressão “raio que o parta” aplicada à fachada das residências onde moram e a origem desse fenômeno, observamos que a relação de afetividade é mais frequente quando o morador possui vínculo com a primeira geração ou participou de alguma maneira na concepção dos desenhos. Mas isso não exclui casos em que o atual proprietário ou inquilino (sem parentesco com a família original) demonstre sensibilidade aos desenhos coloridos e diferentes, segundo contam. Nestes casos, a preservação é mais relacionada ao gosto pessoal. Lembremos também o caso da moradora que inicialmente não gostava, mas ao perceber que outras pessoas valorizavam, mudou de opinião; isso nos remete à importância de explorar a educação patrimonial como recurso à manutenção dessas obras: orientar as pessoas quanto ao valor cultural que essa arquitetura representa como expressão do desejo de modernidade humana através de soluções compositivas que misturam criatividade e senso artístico pode incutir nelas a consciência e o reconhecimento da necessidade de preservação.
Apresentar o Raio que o parta como patrimônio arquitetônico, depois de anos de discurso dos órgãos de proteção que diziam o que devia e o que não devia ser preservado, é árduo trabalho; mas, a exemplo dos estudos que já foram realizados sobre o assunto, é possível. Acreditamos que é uma das formas de sensibilizar moradores, proprietários e arquitetos para garantir a manutenção desses exemplares, salvando-os do apagamento físico e da memória coletiva.
notas
NE – Este artigo toma por base a investigação concluída no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará – PPGAU UFPA.
1
VIDAL, Celma. Modernização, inventividade e mimetismo na arquitetura residencial em Belém entre as décadas de 1930 e 1960. Revista Risco, São Paulo, 2008, p. 148 <http://www.revistas.usp.br/risco/article/view/44757>.
2
LARA, Fernando. Modernismo Popular: elogio ou imitação? In: Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, v.12, n. 13, p. 171-184, dez. 2005.
3
GUIMARÃES, Dinah; CAVALCANTE, Lauro. Arquitetura kitsch: suburbana e rural. Santa Ifigênia, Paz e Terra, 1982.
4
SANTOS, Ivana. Raio-que-o-parta. Um fragmento entre cultura e sociedade. Monografia (Especialização). Belém, NAEA-UFPA, 1995.
5
Maria Barcessat et al e Andréia Loureiro Cardoso afirmam que a autoria da expressão é atribuída ao professor de arquitetura Donato Melo Jr., embora seja questionada por outros docentes do período. A postura acadêmica, assim como a denominação pejorativa do fenômeno, reflete a intenção de ridicularizá-lo, por ser predominantemente vernacular. BARCESSAT, Maria et al. Arquitetura de Belém de 40 a 80. Trabalho de Conclusão de Curso. Belém, FAU-UFPA, 1993; CARDOSO, Andréia Loureiro. A valoração como patrimônio cultural do “Raio que o parta”: expressão do modernismo popular, em Belém/PA. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, Iphan, 2012.
6
SANTOS, Ivana. Op. cit.
7
BARCESSAT, Maria et al. Op. cit.
8
SANTOS, Ivana. Op. cit.
9
CARVALHO, Ronaldo Marques de; MIRANDA, Cybelle Salvador. Dos mosaicos às curvas: a estética modernista na Arquitetura residencial de Belém. Arquitextos, São Paulo, ano 10, n. 112.05, Vitruvius, set. 2009 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.112/25>.
10
CARDOSO, Andréia Loureiro. Op. cit.
11
BARCESSAT, Maria et al. Op. cit., p. 111.
12
SANTOS, Ivana. Op. cit., p. 57.
13
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Zahar Editores,1978.
14
ECKERT, Cornelia; ROCHA, Ana Luiza. Etnografia de rua: estudo de Antropologia Urbana.
Revista Iluminuras, Porto Alegre, v. 4, n. 7, NUPECS/LAS/PPGAS/IFCH/UFRGS, 2003 <https://seer.ufrgs.br/iluminuras/article/view/9160/5258>.
15
TUTYIA, Dinah. Rua Dr. Assis: uma incursão pela paisagem patrimonial transfigurada da Cidade Velha, Belém do Pará. Dissertação de Mestrado. Belém, PPGAU-UFPA, 2013.
16
HALL, Sean. Isto significa isso – Isso significa aquilo. São Paulo, Rosari, 2008.
17
ECKERT, Cornelia; ROCHA, Ana Luiza. Op. cit.
18
RODRIGUES, Venize. Bairro e Memória: Umarizal das vacarias aos espigões. In Anais do XXVII Simpósio Nacional de História. Natal, Anpuh/UFRN, 2013, p. 5.
19
MALCHER, Luiza. Depoimento a Laura Costa, nov. 2014.
20
HALL, Sean. Op. cit.
21
LUCENA, Simone. Depoimento a Laura Costa, nov. 2014.
22
RIEGL. Aloïs. O culto moderno dos monumentos: sua essência e sua gênese. Goiânia, Editora da Universidade Católica de Goiás, 2006.
23
Idem, ibidem, p. 108.
24
Idem, ibidem, p. 98.
25
GONSALES, Célia. O excepcional e o exemplar: valor e patrimônio recente. In Cadernos do Proarq, v. 1, Rio de Janeiro, Proarq/UFRJ, 2014, p. 14-28.
26
TUTYIA, Dinah Op. cit., p. 48-49.
27
LARA, Fernando. Op. cit., p. 173.
28
GUIMARÃES, Dinah; CAVALCANTE, Lauro. Op. cit.
29
SANTOS, Ivana. Op. cit.
30
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In Projeto História, n. 10, v. 63, São Paulo, PPGH/PUC-SP, jul./dez. 1993, p.7-28.
31
MOLES, Abraham. O kitsch: a arte da felicidade. São Paulo, Perspectiva, 1972.
32
VENTURI, Robert. Aprendendo com Las Vegas. São Paulo, Cosac & Naify, 2003.
agradecimentos
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes e à Fundação Amazônia Paraense de Amparo à Pesquisa – Fapespa pelas bolsas de mestrado e iniciação científica, bem como ao Conselho Nacional de Pesquisa – CNPq pelo auxílio de deslocamento para mestrando referente ao Programa Nacional de Cooperação Acadêmica – Projeto Procad Casadinho.
sobre as autoras
Laura Caroline de Carvalho da Costa é arquiteta e urbanista (UFPA, 2013), bacharel em Design (UEPA, 2010), mestre em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-UFPA, 2015) e professora do Instituto Federal do Pará.
Cybelle Salvador Miranda é arquiteta e Urbanista (UFPA, 1997), mestre em Planejamento do Desenvolvimento (NAEA-UFPA, 2000), doutora em Antropologia (UFPA, 2006). Professor associado II (FAU-UFPA/ PPGAU-UFPA). Coordena o Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural da FAU-UFPA.