Em setembro de 1959 o Congresso da Associação Internacional de Críticos de Arte – Aica (1) é realizado no Brasil com a presença de artistas, arquitetos e intelectuais de grande relevância como Giulio Carlo Argan, Meyer Shapiro, William Holford, Richard Neutra, André Chastel e Bruno Zevi. O encontro tem como uma de suas sedes Brasília – além de São Paulo e Rio de Janeiro – que se torna palco de discussões e polêmicas sobre a moderna arquitetura brasileira e a própria cidade.
A arquitetura moderna brasileira alcança renome internacional nos anos 1940 e a construção de Brasília lhe confere ares de hegemonia em território nacional. Saudada como uma vigorosa renovação no cenário mundial, também contou com diversos opositores e encontrou em Bruno Zevi um de seus maiores desafetos. Ferrenho opositor da arquitetura moderna brasileira, convicto crítico da nova capital, tal postura é reiterada por ocasião do grande fórum e exacerbada nos escritos posteriores, tornando-o um inconveniente convidado junto aos anfitriões brasileiros. Enfant terrible do congresso, nas palavras de Mário Pedrosa – coordenador do evento – as provocações do italiano polarizaram as discussões da segunda sessão sob o tema “Urbanismo” e geraram polêmica para além do certame (2).
O objetivo do artigo é revisitar falas, escritos e polêmicas do crítico italiano ao longo de vários anos sobre a arquitetura moderna brasileira e o que seria sua maior realização – a nova capital Brasília – tornados símbolos de um embate de maior amplitude, cujo pano de fundo é a construção de uma narrativa inscrita em uma verdadeira cultura humanista e democrática verso un’architettura organica.
Sob o tema “Cidade nova: síntese das artes”, o tom geral do encontro foi de críticas apaziguadas e reiterado entusiasmo, como se pode notar na fala de abertura de Argan, que presidiu o evento: “Este congresso será sem dúvida uma das experiências mais importantes de nossa vida de críticos de arte, pois que vamos testemunhar a execução de uma grande obra no continente de maiores possibilidades para o futuro, obra essa que se realiza com energia incomparável e num ambiente da maior vitalidade” (3). A princípio, nem mesmo Zevi ficou indiferente à experiência Brasília: “Que vamos criticar? Dr. Lucio Costa ou Oscar Niemeyer? Não creio que isso tenha muito sentido, porque visitando Brasília, e mesmo examinando as fotografias e os planos, como fizemos, na Europa, mesmo aqueles de entre nós que exprimiram muitas dúvidas ou reservas sobre esta aventura sentiram que os defeitos de Brasília são os defeitos de nossa cultura. Todos nós somos responsáveis. Se há defeitos, é porque Brasília concretiza os problemas que nós – todos nós, em todas as partes do mundo – não resolvemos” (4), contemporizando as críticas feitas anteriormente. Em seus escritos sobre a arquitetura moderna brasileira, condena a arquitetura “fantasiosa” e a falta de compromisso social de seus prosélitos. Atribui à influência corbusiana o “gosto por prismas envidraçados e paredes onduladas” e o problema de escala que acometeria essas edificações. Toma arquitetura brasileira e Brasília enquanto símbolos da profunda crise que, segundo ele, vivia a arquitetura moderna e sua concepção espacial, antevendo laivos de autoritarismo nos traços da nova capital, como escreveria em seu semanário L’Expresso.
Em sua conferência “A dinâmica das estruturas urbanas” Zevi defende a dinâmica como uma qualidade intrínseca às cidades (excetuando-se aquelas mortas ou arqueológicas); a questão que coloca é que a dinâmica das cidades atuais (fruto de seu traçado e sua arquitetura) não coaduna com a necessidades dos seres humanos: “há um cisma entre o mecanismo das estruturas urbanas e o processo do habitante humano. E a tarefa que nos incumbe a todos é tentar encontrar um instrumento que nos permita reestabelecer a harmonia alcançada nas velhas cidades entre a eficiência mecânica (ou da estrutura urbana) e a possibilidade humana de viver nessas cidades” (5).
E qual seria a raiz do problema? “A arquitetura moderna, depois de ter ganho sua batalha no terreno da linguística, está em profunda crise, crise essa que se sente com muita força na Itália, que é muito evidente nos Estados Unidos, e muito menos evidente em Brasília, mas que existe em todo o mundo” (6). “Um plano piloto é necessário, mas não suficiente”: faz-se necessária uma arquitetura para dar-lhe sentido e torná-lo tridimensional, e “uma concepção de vida humana que o torna quadridimensional – a experiência humana através dos tempos” (7).
Aqui parece estar exposta brevemente toda sua crítica inicial à Brasília. O italiano denuncia o “artifício de suas origens” e contesta a artificialidade de todo o processo: do plano piloto e de sua arquitetura, e a debilidade da própria operação política, tendo em vista os objetivos de “enraizamento continental” que lhe deram ensejo e o redirecionamento da ocupação do país. A cidade não nasce de uma necessidade vital – eis a questão que lhe é crucial. Ela poderia algum dia ter vida autônoma? Dentro de sua visão democrática e humanizadora da arquitetura, Brasília estaria no extremo oposto: impulso governamental, paternalista e, por isso, burocrática e autoritária. O resultado parece ser esperado: um plano urbano estático, uma arquitetura monumental, representativa, o anonimato dos blocos habitacionais. Ambos parecem surgir de repente, atos gratuitos sem nenhuma conexão com o local ou, evidentemente, com alguma concepção de vida humana.
Combinando os defeitos do plano fechado e do aberto, na interseção dos eixos possui o centro cívico estrangulado, “a praça monumental no sentido mais anacrônico da palavra”; as asas para moradia, que se estendem ao infinito, não acabam por uma razão urbana íntima: é a “maré dos superblocos”, em sua repetição mecânica e anônima. Une, ainda, aos defeitos das cidades do século 19 (8) – haussmanniana – aqueles dos núcleos urbanos do 20, ao fazer uso de todo o repertório racionalista (9).
A arquitetura de Oscar Niemeyer padeceria das mesmas fraquezas do planejamento urbano de Costa: “A estrutura urbana [...] convida à monumentalidade; a busca pela ‘representatividade’ aumenta o risco de cair na retórica. Mas, mesmo dizendo e reconhecendo tudo isso, ainda existiria uma grande margem de liberdade arquitetônica. Um paralelo: o plano piloto de Chandigarh não nos agrada, mas a arquitetura de Le Corbusier é tão reverberante e explosiva que agarra e perturba os espaços externos estáticos. A de Niemeyer em Brasília sofre, em vez disso, de um complexo de inferioridade; e não resgata o plano” (10). Brasília permaneceria uma maquete ampliada, esboços agigantados em que “o efeito prevalece sobre a substância”, cuja pressa de construção é evidenciada no plano, na arquitetura, e continuará assim, denunciando o artifício de suas origens, incapaz de ser humanizada.
Nesse aspecto em particular, a Brasília autoritária, cidade burocrática, sede do poder, do urbanismo barroco e seu eixo processional, impera. Os artigos posteriores a sua vinda diferem substancialmente e exacerbam a crítica (11). A comparação com a EUR, já feita anteriormente, é acentuada: “Há algo que nos impede de aderir, juntando-nos entusiasticamente à grande aventura que envia tantos outros estrangeiros ao arrebatamento. ‘É o complexo EUR’, observamos com nossos amigos italianos”. Entretanto, frente ao grande empreendimento que se tornou Brasília e ao desprendimento de “pioneiro” de Niemeyer e seus colaboradores, pondera: “Estamos prestes a desistir e confessar: ‘Bonita ou feia, Brasília é uma grande iniciativa. Queremos ajudá-lo sem reservas. A posteridade julgará’. Mas o ‘complexo EUR’ está nos segurando, enquanto as questões estão aumentando”. E sentencia: “Brasília, por muitas razões, é pior do que tínhamos previsto e escrito” (13).
Nesse sentido, parece pertinente lembrar a Brasília que Zevi vê. É a cidade em construção, a sete meses da inauguração. Um grande canteiro de obras em ritmo frenético; um enorme descampado que acentua a escala monumental do plano e dos edifícios. Ao conhecê-la in loco, deve ter recorrido mentalmente às imagens, para ele, aterradoras, do complexo EUR e sua desoladora paisagem de incompletude “somada à desgraça de ser permanente”. Assim, Brasília se apresentaria e ele em uma primeira impressão, acentuando o que o crítico parece estar condicionado a ver: “O fascismo nos condicionou psicologicamente: esta série de edifícios representativos, este cortejo de futuros ministérios, dos quais apenas as estruturas são vistas por enquanto, nos dá uma instintiva sensação de náusea” (14). Suas experiências durante os anos do fascismo (15) parecem ter moldado sua visão de Brasília, e seus argumentos em relação à nova capital só são compreensíveis a partir desta perspectiva – e, por extensão, a própria construção do discurso por uma arquitetura orgânica.
Também em Storia dell’architettura moderna – livro de 1950 que dá continuidade e amplia o esforço iniciado em 1945 representado por Verso un’architettura organica, no intuito de forjar uma nova cultura arquitetônica (16) –, o crítico alude à questão, dessa vez amarrando-a à ideia da arquitetura orgânica: “(o movimento orgânico) Luta contra as ditaduras totalitárias e burocráticas porque o homem, na variedade da sua vida, na plenitude da sua liberdade, no seu progresso material, psicológico e espiritual, é o fim religioso deste humanismo” (17).
Para Zevi, a arquitetura orgânica introduz uma nova poética emergida silenciosamente a partir do discurso racionalista, uma “maturação humanizadora”. Configura-se em um movimento de revisão no pós-guerra nascido de dentro mesmo da arquitetura moderna, a partir de sua necessidade interna e de uma nova exigência espacial – que o racionalismo, embora precursor e necessário, não foi capaz de fornecer, e daí também sua crise.
Somente a partir desta compreensão podemos apreender sua fala no congresso. Para o crítico, o racionalismo mostrou-se incapaz de adequar-se às exigências de ritmo, diversidade e complexidade de desenho – porque de vida – dos seres humanos, com seu esquema abstrato, de mera repetição fria e anônima. Traçado que condiciona, mais que dá bases para uma vida livre e autônoma. E esta seria justamente sua (triste) proximidade à arquitetura totalitária. Embora estágio inicial e necessário da arquitetura moderna, tal corrente, como por estranha coincidência, compartilharia semelhanças com a arquitetura totalitária ou fascista: as linhas duras, o apreço pela geometria mais ou menos “pura”, o rigor e o esquematismo do traçado, cenários ideais, porém uniformes – que levam a uma uniformização da própria vida – e por isso, facilmente corruptível como nos anos 1920 e 1930 no caso italiano.
Com seu discurso, Zevi ajudou a alimentar um embate nos anos pós-guerra entre “organicismo” e “racionalismo” que marcou o debate arquitetônico, estabelecendo um cenário maniqueísta que opunha as duas correntes. Esta passagem de Storia esclarece no que o organicismo contrariaria seu considerado oponente e, portanto, também sua crítica à nova capital. Podemos ler sua crítica à Brasília através deste trecho: “O movimento orgânico propõe um caminho psicológico e espacial. Declara, em arquitetura e em urbanismo, que não bastam os volumes e as superfícies puras, que é o espaço interior que importa, que os vazios são aquilo que verdadeiramente determina as casas e as cidades. Considera que é necessário, portanto, libertar-se dos quadrangularismos geométricos, dos preconceitos da beleza abstrata de algumas formas e proporções e de todas as ideologias dos -ismos. Há uma só proporção importante: A escala humana; um só fim da cidade e da casa moderna: a felicidade do homem. Não basta a ordem lógica, o diagrama traçado a sangue-frio, a tabela estatística e a régua de cálculos. O problema consiste hoje, em relação à casa e à cidade, na humanização da arquitetura. Ao método da decomposição cubista sucede um ideal de reintegração, um sonho de continuidade espacial, arquitetônica e paisagística” (18). Ou ainda: “O urbanismo orgânico e a arquitetura orgânica são uma e a mesma coisa: assim como é impossível uma casa orgânica numa cidade não pensada humanamente, do mesmo modo um urbanismo meramente planimétrico, não passa dum desenho de duas dimensões, está sobreposto ao terreno, é uma fórmula, regulamento, promessa, abstração: falta-lhe vida e, portanto, arte” (19).
Dentro de sua visão – e se fala em crise do racionalismo na década de 1930 – a arquitetura moderna brasileira (embora considere o Ministério da Educação e Saúde de 1937 – considerado “precursor” daquela escola – uma obra prima, embora praticamente isolada), já nasceria irrevogavelmente anacrônica, uma vez que sorve de fontes totalmente caducas: “Alguém já deveria ter dito aos brasileiros, sem papas na língua, sem medo de parecer um estraga-prazeres e de quebrar o encantamento de uma arquitetura ‘orgiasticamente livre, transbordante de vitalidade, incrivelmente fantástica’, tentativa extrema de legitimar uma poética dos arranha-céus de vidro que há tempos perdeu a batalha europeia e norte americana. Há dez anos, apontando o dedo para o famoso Ministério da Educação no Rio de Janeiro, o International Style procura no Brasil a compensação para os próprios fracassos. Cada vez que se constata a crise dos cubos volumétricos, dos pilotis, das fachadas envidraçadas, dos brise-soleils, enfim, dos vários clichês lecorbusianos nos Estados Unidos, na Inglaterra, nos países escandinavos, até na França e na Suíça, ouvimos repetirem os racionalistas, e, em nome deles, seu apóstolo Siegfried Giedion: ‘mas no Brasil...’” (20).
Construção historiográfica esta que não omite suas falhas. Em Storia o italiano critica o viés evolucionista que a historiografia do moderno sabidamente fez uso: “[...] se Asplund ou Aalto enriquecem o vocabulário expressivo de Le Corbusier, são acusados de iludir hedonisticamente o problema da época, são classificados de decadentes. Se Van de Velde ou Poelzig ou Perret não morreram em 1914, isso é um fato que interessa apenas à biografia empírica; para a história deviam ter morrido por força naquela data” (21).
O mesmo, entretanto, não vale para a arquitetura brasileira. Zevi não a aprecia enquanto enriquecimento do vocabulário expressivo de Le Corbusier. É a conhecida “régua” europeia usada para medir outras culturas e aplicada indistintamente de tempo e lugar. Neste caso em particular, a questão principal recai no fato de tal arquitetura brasileira não coadunar com a construção historiográfica do crítico italiano, cujo decreto sobre o desmantelamento do racionalismo pelas ditaduras na década de 1930 anunciaria sua maturação – a arquitetura orgânica – já na década seguinte.
É nesse sentido que, ao alegar que “os defeitos de Brasília são os defeitos de nossa cultura” Zevi, obviamente, não está amenizando suas críticas apenas por cordialidade aos anfitriões brasileiros. Uma vez mais, o que tem em mira é seu constructo maior. Retira as eventuais fraquezas do projeto – aquele específico e concreto de Brasília – e as transfere para o plano da cultura, da arquitetura “racionalista” ainda vigente, enfocando seu discurso. Vale ainda lembrar que, não à toa, ao dar continuidade ao “livreto” – como o chama – de Verso, Zevi denominou a nova obra Storia dell’architettura moderna dando-lhe um aspecto muito mais abrangente, trocando o caráter de manifesto do primeiro pelo histórico-documental do segundo, sendo que se trata de continuidade e ampliação da mesma narrativa.
De fato, Brasília acaba se tornando um condensador de várias questões expostas e trazidas pelo crítico, alçada a símbolo da crise da arquitetura racionalista e sua concepção espacial, e ainda, símbolo de dada arquitetura brasileira representada por Oscar Niemeyer naquele momento. É nesse sentido que Brasília acaba por refletir também a crise por que passa Niemeyer: “Em todo lugar, invenções colossais determinam a imagem urbana; talvez a nenhum outro arquiteto tenha acontecido uma aventura de trabalho de proporções semelhantes. E, quase por uma piada do destino, Niemeyer está em crise. Suas convicções políticas intensamente esquerdistas não permitem que ele acredite com fé genuína na operação econômica e social de Brasília. Além disso, o sucesso profissional cansou-o” (22), referindo-se à conhecida “autocrítica do arquiteto” (23).
Deste modo, a apreciação das obras de Niemeyer em Brasília talvez não esteja totalmente isenta de seu olhar em relação à cidade. Não que não houvesse críticas anteriores, pelo contrário. Em “Incontro con Oscar Niemeyer” (24), Zevi retrata um Niemeyer evasivo e leviano, desinteressado em justificar a própria obra; frisa a falta de compromisso social do arquiteto comunista (não sem reparar nas contradições aí implícitas), cuja fantasia e arbitrariedade projetual já haviam sido duramente criticadas em “La moda lecorbusieriana in Brasile” (25).
Em São Paulo, “una città vera”, o juízo sobre as obras do arquiteto muda radicalmente. O contexto adensado lhe confere característica de rompimento, uma liberdade criadora que é exaltada frente à malha urbana regular e fechada: “Até mesmo a arquitetura de Oscar Niemeyer, que criticamos na nova capital, assume aqui significado e função no contexto de uma dialética complexa da construção. Na monótona malha urbana de São Paulo, os dois imensos blocos que Niemeyer está construindo estão em deliberado contraste com a paisagem urbana: as massas ondulantes ou as articulações volumétricas, que rompem o tecido urbano uniforme, são potentes alternativas às caixas que se sucedem por obra da especulação em toda a periferia da metrópole” (26).
É isso que Zevi critica, e sua crítica não é infundada. Mudado radicalmente o contexto, Niemeyer continuou atuando indistintamente. E embora tenha encontrado aqui uma cidade incompleta, em obras, Brasília pronta, viva, reitera essa condição, com problemas de escala humana, de um limite de crescimento, tudo isso inscrevendo arquiteturas monumentais, para serem vistas ao longo dos trajetos como em uma “paisagem de objetos”, como já fora descrita. Não esquecendo o complexo que envolve as cidades satélite, e tantos outros problemas contemporâneos que não adentraremos aqui.
Em Brasília, o contexto com o qual se contrapor lhe é raptado, a arquitetura se torna uma coleção de colossais monumentos; para Zevi, por isso mesmo, gratuitos, e o agravante, que reiteram o monumentalismo e a grandiloquência do plano piloto e evocam o poder e a magnificência do Estado. Cidade kafkaniana, cujo problema não é ter nascido artificiosa (afinal, Veneza também o é, como lembraria em sua fala no Congresso), mas a possibilidade de permanecer assim, parasitária, dependente de ações paternalistas...“São duas as possibilidades: ou Brasília, como já aconteceu muitas vezes, ficará abandonada (o que é improvável) ou, caso ganhe vida, romperá o esquema estático, simétrico, de um plano piloto que permaneceu no estágio de sua concepção inicial” (27).
notas
NA – Este artigo é uma ampliação realizada a partir de outros dois trabalhos apresentados nos eventos “How to Narrate the History of Architecture? Centenary of Birth of Architectural Historian Bruno Zevi (1918-2000)”, Haifa, mai. 2018, e no “European Architectural History Network” – EAHN, Tallinn, jun. 2018. Em se tratando de um crítico tão marcante para a arquitetura brasileira, aproveito as comemorações do centenário de seu nascimento, bem como os 60 anos em 2019 do congresso da Associação Internacional de Críticos de Arte realizado no Brasil, para relembrá-lo entre nós. Agradeço a inestimável contribuição de Anat Falbel para minha leitura e construção da argumentação central, bem como a colaboração de José Ripper Kós e Luiz Eduardo Fontoura Teixeira para o desenvolvimento do artigo.
1
Congresso Internacional Extraordinário de Críticos de Arte, organizado pela sessão brasileira da Aica.
2
Refiro-me aqui aos artigos “O Feitiço contra o feiticeiro” da colunista Vera Pacheco Jordão no Jornal O Globo de 22 set. 1959, e a resposta de Mario Pedrosa “Lições do Congresso de Críticos” no Jornal do Brasil de 3 out. 1959.
3
ARGAN, Giulio Carlo. In Anais do Congresso Internacional Extraordinário dos Críticos de Arte. Cidade nova: síntese das artes. São Paulo, Biblioteca do Masp, p. 3.
4
ZEVI, Bruno. In Anais do Congresso Internacional Extraordinário dos Críticos de Arte. Cidade nova: síntese das artes (op. cit.), p. 20.
5
Idem, ibidem, p. 20.
6
Idem, ibidem, p. 21.
7
Idem, ibidem, p. 21. Cf. ZEVI, Bruno. A dinâmica das estruturas urbanísticas. Habitat, volume 10, n. 57, nov./ dez. 1959. Na sequência do congresso a Revista Habitat publica vários artigos dos conferencistas, que não necessariamente, equivalem exatamente às falas no congresso. No caso de Zevi, tal artigo retoma de modo breve as principais questões expostas.
8
Zevi tomaria aqui os dizeres de Lucio Costa: “Antes de deixar o Rio de Janeiro, encontramos Lucio Costa, autor do novo plano regulatório da nova capital. Ele nos disse: ‘Não espere ver uma cidade moderna. Brasília é uma capital do século dezenove. Você deve julgá-lo em relação à evolução do país’”. ZEVI, Bruno. Brasilia e il complesso Eur. Kafka nel Mato Grosso. In Cronache di architettura. Volume 3. Bari, Laterza, 1971, p. 409. Originalmente publicado em L’Expresso, 25 out. 1959.
9
Zevi assim coloca a mudança de sua apreciação sobre o Plano Piloto de Brasília: “Quando examinamos os resultados da competição, três coisas atrás, nosso julgamento foi o seguinte: o plano de Lucio Costa deixa-nos muito perplexos, mas os outros são piores, mais mecânicos e abstratos. Após uma análise mais precisa e direta, estamos propensos a rever esse julgamento. Voltemos ao plano de Rino Levi, o de Mindlin e Palanti ou o de Artigas: não são totalmente convincentes, mas em seus esquemas de implantação há uma possibilidade de expansão, elasticidade, adaptabilidade que o plano de Costa não oferece”. ZEVI, Bruno. Inchiesta su Brasilia. In L’architettura Cronache e Storia, v. 50, jan. 1960, p. 610.
10
Idem, ibidem, p. 615.
11
Em especial no artigo Inchiesta su Brasilia, que se tornou seu escrito mais conhecido sobre o tema, o crítico parece concluir a argumentação esboçada anteriormente. Entre outros escritos precedentes, Zevi publica três artigos sequenciais em L’expresso, imediatamente após a passagem pelas cidades que sediaram o congresso da Aica: “Rio de Janeiro. Senza paesaggistica, visibile al cinerama”. L’Expresso, 18 out. 1959; “Brasilia e il complesso Eur. Kafka nel Mato Grosso”. L’Expresso, 25 out. 1959; “San Paolo del Brasile. Una Biennale più aperta di quella veneziana”. L’Expresso, 1 nov. 1959.
De fato, ao contrário do que fizeram muitos críticos que se dedicaram ao tema, Zevi reelabora sua argumentação a partir da visita à cidade, mas não somente: a partir do próprio congresso e da fala de outros participantes. Veja-se, por exemplo, essa passagem de sua conferência: “Quando se pensa nos ingredientes que compõem a dinâmica das estruturas urbanas, percebe-se que um plano piloto é necessário mas não suficiente, tanto assim que ontem à noite um nosso amigo brasileiro nos apresentou fotografias de uma série de cidades construídas artificialmente no Brasil durante os séculos passados, algumas das quais foram iniciadas e depois abandonadas, e outras foram construídas mas em desacordo com o plano inicial. As que viveram traíram o plano piloto, e as que se cingiram ao plano piloto foram abandonas e morreram”. Cf. ZEVI, Bruno. In Anais do Congresso Internacional Extraordinário dos Críticos de Arte. Cidade nova: síntese das artes (op. cit.), p. 21 (não se tem registro de quem teria sido o brasileiro citado). Nesse sentido, Zevi escreverá mais tarde: “São duas as possibilidades: ou Brasília, como já aconteceu muitas vezes, ficará abandonada (o que é improvável) ou, caso ganhe vida, romperá o esquema estático, simétrico, de um plano piloto que permaneceu no estágio de sua concepção inicial”. Cf. ZEVI, Bruno. Inchiesta su Brasilia (op. cit.), p. 611. Ou ainda: “Enquanto o esquema for regulado de cima, até que as casas sejam construídas na cidade sem habitantes, a regra será respeitada. Se os cidadãos se tornarem mestres de sua cidade, a regra será fatalmente subvertida, porque não nasce e não termina em uma necessidade real, plasticamente expressa” referindo-se às superquadras. Idem, Ibidem, p. 612. Também a ideia de cidade de burocratas, kafkaniana, presente nos artigos após sua visita à Brasília, é elaborada a partir da fala do crítico de arte israelense Haim Gamzu, na mesma sessão de que participou Zevi: “[...] Brasília [...] corre o risco de ser uma cidade apenas de repartições, de processos, de ideias classificadas e numeradas, se não houver aqui lugar para um espírito idealista, um espirito pioneiro. Então Brasília se mostrará como uma obra de vingança kafkiana contra os funcionários, contra os burocratas, condenando-os à aposentaria, com uma bagagem intelectual de ideias congeladas e até mesmo esclerosadas”. GAMZU, Haim. In Anais do Congresso Internacional Extraordinário dos Críticos de Arte. Cidade nova: síntese das artes (op. cit.), p. 29. Zevi retoma a ideia no artigo imediatamente posterior ao congresso “Brasilia e il complesso Eur. Kafka nel Mato Grosso”: “É a cidade de Kafka, o paraíso dos burocratas”, que também aparecerá em Inchiesta zu Brasilia e quando da revisão de Storia dell’architettura Moderna.
12
Referência à Exposição Universal de Roma, bairro da cidade projetado em 1942, quando também da exposição homônima.
13
ZEVI, Bruno. "Brasilia e il complesso Eur. Kafka nel Mato Grosso". Op. cit., p. 409.
14
Idem, ibidem, p. 409.
15
De fato, a construção da visão de Bruno Zevi sobre Brasília a partir de seu anti-fascismo foi apontada por Anat Falbel em “Bruno et Lina: entre discussions et disputes...comme de veritables amis”. Devido às leis raciais, Bruno Zevi deixa a Itália em 1939. Atua na resistência anti-fascista em Paris com o movimento Giustizia e Libertà, seguindo para a Inglaterra e então para os Estados Unidos, onde continua a militância. Em 1943 retorna à Europa para ajudar na resistência, e definitivamente à Itália em 1944. Cf. Falbel, Anat. Bruno et Lina: entre discussions et disputes...comme de veritables amis, in Criconia, Alessandra; Essaian, Elisabeth (ed.). Lina Bo Bardi enseignements partagés. Paris: Archibooks et Satereau, 2017, p. 51-65.
16
Com efeito, são várias as ações no sentido de construção de uma nova cultura arquitetônica na Itália. Além dos livros mencionados, a fundação da Associazione per l’Architettura Organica – Apao (1945), revista Metron (1945), e continuaria nos anos seguintes, com a fundação, por exemplo, da revista L’architettura Cronache e storia (1955). Tal objetivo fica claramente expresso no documento de fundação da Apao e, principalmente, nos primeiros trechos do livro Storia dell’architettura moderna.
17
ZEVI, Bruno. História da arquitectura moderna. Lisboa, Arcádia, 1970, p. 536.
18
Idem, ibidem, p. 536. Grifo da autora.
19
Idem, Ibidem, p. 322. Grifo da autora.
20
Zevi, Bruno. A moda lecorbusiana no Brasil. In Xavier, Alberto (Org.). Depoimento de uma geração. Arquitetura moderna brasileira. São Paulo, Cosac & Naify, 2003. Originalmente publicado em L’Expresso, 2 nov. 1954. Não deixa de ser atraente a comparação: enquanto Zevi condena a arquitetura moderna brasileira como decrépita por ainda fazer uso do repertório racionalista, Giedion se esforça em retratá-la dentro do quadro evolutivo do International Style, narrativas completamente opostas nas quais esta arquitetura se vê amarrada.
21
ZEVI, Bruno. História da arquitectura moderna (op. cit.), p. 129.
22
ZEVI, Bruno. Brasilia troppo in fretta. Capitale di plastici ingranditi. In Cronache di architettura. Volume 3. Bari, Laterza, 1971, p. 244. Originalmente publicado em L’Expresso, 25 jan. 1959.
23
Texto “Depoimento” mais conhecido como “autocrítica” do arquiteto, publicado na revista Módulo, n. 9, fev. 1958.
24
Zevi, Bruno. Incontro con Oscar Niemeyer. Nausea dell' abbondanza brasiliana. In Cronache di architettura. Volume 1. Bari, Laterza, 1971. Originalmente publicado em L’Expresso, 26 abr. 1955.
25
Zevi, Bruno. La moda lecorbusieriana in Brasile. Max Bill apostrofa Oscar Niemeyer. In Cronache di architettura (op. cit.). Volume 1. Originalmente publicado em L’Expresso, 2 nov. 1954.
26
Zevi, Bruno. San Paolo del Brasile. Una Biennale più aperta di quella veneziana. In Cronache di architettura (op. cit.). Volume 3, p. 413. Originalmente publicado em L’Expresso, 1 nov. 1959. Zevi se refere aqui, provavelmente, à construção dos Edifícios Copan e Califórnia.
27
ZEVI, Bruno. Inchiesta su Brasilia (op. cit.), p. 611. Grifo da autora.
sobre a autora Karine Daufenbach é arquiteta e urbanista (UFSC, 2003), mestre (UFRJ, 2006) e doutora (USP, 2011) com bolsa de pesquisa no Karlsruhe Institute of Technology, Alemanha. Atualmente é Professora Adjunta no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina.