"Tal como o ato de falar cria a língua, os (a)fazeres cotidianos efetuam o espaço” (1).
O pensamento de Michel de Certeau descrito acima resume o que pretendemos abordar aqui: as práticas realizadas no espaço são responsáveis por construí-lo. E compreender os usos cotidianos feitos nos espaços urbanos seria uma forma não só de entender os códigos e valores locais, mas, consequentemente, de se investigar os interesses e desejos para a cidade.
A partir deste contexto, propomos apontar maneiras como moradores da Favela Nova Holanda – localizada no Complexo da Maré, Rio de Janeiro, Brasil – constroem e usam o espaço comum local, assim como de que forma tais vivências e intervenções denotam entendimentos sobre a ideia de cidade. Para pontuar tais elementos, partiremos de representações construídas pelos próprios moradores através de fotografias sobre o cotidiano local. Ao intercalar o conteúdo de tais imagens, de entrevistas com os fotógrafos e do pensamento teórico de autores como Henri Lefebvre, propomos discutir formas de se fazer/ pensar o espaço urbano carioca, distintas da proposta para a construção do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos, no período de 2009 a 2016.
A lógica utilizada na ocasião, a qual pretendia fazer do Rio de Janeiro palco de megaeventos, contribuiu para a segregação e controle daqueles que não se inseriam na concepção do que era desejado para a imagem da “Cidade Maravilhosa”. Neste contexto, as favelas e periferias seriam invisibilizadas das representações construídas para divulgar a cidade internacionalmente, as quais se baseariam majoritariamente na imagem da zona sul carioca. Ao contrário da homogeneidade que se pretendia impor, como aponta Henri Lefebvre (2), a diversidade é inerente ao espaço urbano. A partir de tal cenário, o artigo pretende debater a importância das intervenções e vivências cotidianas existentes na escala das ruas para a construção de outras visões/projetos de cidade, mais inclusivos e plurais.
Entendemos que as favelas seriam uma categoria social central na discussão sobre a disputa pelo significado da ideia de cidade. Pelo seu histórico de resistência e por serem “expressão legítima do direito de habitar a cidade” (3), elas constroem um outro ideal de espaço urbano. Compartilhamos aqui a visão de distintos autores sobre as favelas possuírem práticas culturais criativas e ricas estratégias de construção do espaço desenvolvidas para suprir lacunas na oferta de direitos fundamentais.
A análise de tais intervenções e das vivências locais se mostra como uma forma de buscar uma outra visão de cidade a partir das escalas humanas, da vida cotidiana e da experiência corporal na cidade. Este tipo de análise remonta à década de 1960, quando o grupo Internacional Situacionista defendia a importância do olhar sobre as pessoas comuns e reais que estariam nas ruas das cidades para se pensar sobre o espaço urbano. Ao apontar vivências no contexto da Nova Holanda, entramos, consequentemente, na disputa pela representação no e do espaço urbano carioca. Para tanto, entendemos que a forma mais apropriada seria fazê-lo a partir da visão dos habitantes sobre seu próprio espaço.
Partindo deste pressuposto, como dito acima, as questões aqui colocadas terão origem em fotografias sobre o cotidiano da Nova Holanda, feitas por profissionais que são moradores da Maré. A fotografia, neste contexto, é entendida não apenas como ferramenta de potência para revelar paisagens na cidade, mas também como forma de desvendar aspectos do imaginário social e das mediações nas relações sociais (4). Ao utilizar tais imagens e entrevistar seus fotógrafos, pretendemos expor dinâmicas do espaço e os olhares distintos sobre o cotidiano a partir da visão de quem o habita. Como aponta Lefebvre (5), entender o espaço – para, assim, pensar em seu futuro – passa por analisar sua multidimensionalidade, sendo as representações construídas pelos habitantes, dimensões tão importantes para sua construção quanto as práticas sociais em si.
Os profissionais responsáveis pelos olhares apresentados aqui são Bira Carvalho, Elisângela Leite e Rosilene Miliotti. Entre imagens que falam sobre encontros, apropriação, confraternização, luta e fé, os fotógrafos apontam temáticas sobre um lugar orgânico e plural. Mostram um espaço de resistência que reivindica, através das ações mais cotidianas, o seu direito de acessar a cidade e participar de sua construção.
Cidade, uma invenção do ser humano
Em uma realidade de ritmo acelerado de urbanização, mostra-se urgente a discussão sobre o tipo de cidade onde desejamos viver e a reflexão sobre que tipo de atores sociais pretendemos ser e produzir. Tal questão vem sendo abordada em diversas partes do mundo, sendo essencial também para se pensar o futuro do Rio de Janeiro.
O período entre 2009 e 2016 na cidade carioca foi marcado pelo projeto que pretendia inseri-la na chamada "rede de cidades turísticas globais" (6) tendo, para tanto, a função de sede de megaeventos. A representação construída sobre a cidade para divulga-la internacionalmente baseou-se em antigos imaginários que não só reproduziram um estereótipo sobre o que é ser carioca, mas que também buscavam invisibilizar de sua representação oficial pessoas e espaços – tais como certas favelas e periferias (7) – que não condiziam com tal ideal de cidade. Pontuada por projetos espetaculares e excludentes, a cidade parecia aproximar-se da dinâmica que Paola Jacques (8) aponta como “mercantilização das cidades contemporâneas”, na qual o espaço urbano é transformado em "pura cenografia" e a passividade passa a ser a regra para quem habita o espaço.
Tal estrutura, porém, não condiz com a essência da ideia de cidade: afinal, ela seria uma criação do ser humano para suprir diferentes dimensões de sua vida, um espaço desenvolvido pelo desejo de um vir-a-ser da espécie humana. Segundo Lefebvre (9), o espaço urbano seria o local de encontro das pluralidades, onde coexistiriam diferentes formas de habitar. Ao negar-se tal característica a ele, nega-se a seus distintos habitantes o direito à cidade, ou seja, o direito de vivê-la plenamente e de transformá-la de acordo com suas demandas.
Importante salientar que, em cenários como o vivido no Rio de Janeiro, mesmo com a imposição de um pensamento único sobre o futuro da cidade, o espaço urbano não se resumirá unicamente ao estabelecido pelo plano dominante. Como coloca Lefebvre ao citar Heidegger, "o homem habita como poeta" (10): seu cotidiano será construído através das apropriações, dos encontros, da Festa, da dimensão lúdica da cidade (11). Neste contexto, frente à diversidade inerente à natureza do espaço urbano, a cidade se apresentará como palco de luta, no qual se consolidarão disputas sobre como ela deve ser (12). Por mais que sejam criadas imagens consensuais sobre a cidade para vendê-la ao mercado internacional, serão construídas também pelos seus habitantes representações e formas de ruptura que irão questionar o “vir-a-ser” imposto.
Três olhares sobre a Favela Nova Holanda e a cidade
A escolha da Nova Holanda como um espaço para se analisar a pluralidade do Rio de Janeiro, não foi aleatória. Para além das questões apontadas na introdução deste artigo, a favela traz características peculiares para a discussão. Localizada na Zona Norte da cidade, é uma das 16 favelas do Complexo da Maré. Seu surgimento data da década de 1960, quando foi construída pelo Governo do Estado para funcionar como um Centro de Habitação Provisório. Com caráter temporário, funcionava como uma espécie de triagem na qual, moradores removidos de outras favelas, deveriam passar antes de serem realocados em conjuntos habitacionais.
Historicamente e ainda hoje, as representações construídas pela mídia sobre a Nova Holanda e a Maré as reproduzem recorrentemente como um espaço de violência, um lugar habitado por criminosos e marginais. Em rápida pesquisa na plataforma Google Images, inserindo-se as palavras-chave "Maré Rio de Janeiro O Globo", vemos majoritariamente fotos de jovens negros armados e operações policiais. Por outro lado, porém, ao avançar pelas imagens do site de busca, é possível encontrar também fotografias onde se vê, por exemplo, crianças brincando nas ruas e adultos assistindo a jogos de futebol em televisões instalada na calçada: tais imagens são feitas por moradores da Maré, os quais se propõem a registrar o cotidiano do espaço como forma de desconstruir as representações reproduzidas na mídia, pelo Estado e, consequentemente, na sociedade. Essas fotografias mostram um Rio de Janeiro construído por seus habitantes, como estratégias desenvolvidas para suprir lacunas na oferta de direitos fundamentais (13). As intervenções mostradas nas imagens, sejam elas temporárias ou permanentes, dão múltiplos usos para os espaços; a pluralidade presente nas ruas se destaca nas imagens; a surpresa, a Festa e os encontros são apontados pelos fotógrafos como parte da rotina do espaço comum.
Para abordar tais visões, conversamos com os fotógrafos Bira Carvalho, Elisângela Leite e Rosilene Miliotti. Cada um deles foi entrevistado entre novembro de 2016 e fevereiro de 2017. Em comum, os três participaram do Imagens do Povo, projeto que, surgido a partir de um questionamento sobre a democratização da informação, capacita moradores de favelas e periferias a usarem a fotografia como ferramenta para abordar questões éticas, políticas e culturais (14). Destacando fotografias pré-selecionadas, buscamos discutir com os profissionais não só o que suas imagens desconstroem sobre estigmas existentes, mas também o que constroem enquanto representação do espaço.
Dito isso, procuramos a seguir apontar três características sobre o espaço da Nova Holanda que se destacaram como pontos comuns durante as entrevistas e que denotariam desejos sobre um ideal de cidade, estando entre elas: a forma de apropriação do espaço comum; o compartilhar do espaço entre pessoas e fazeres plurais; e o processo de constante transformação – que ocorre em distintas esferas –, consequência das trocas e encontros naturais ao espaço.
Espaço próprio
No conteúdo da Imagem 1, de Bira Carvalho, de um lado ao outro da rua há uma grande tenda estendida entre casas. A composição da imagem, ao agregar também as construções e a ocupação do entorno da rua, mostra que, durante aquele momento, a via é daqueles que ocupam o local, estando aberta ainda a quem quiser se agregar ao grupo. Segundo Bira, o registro seria de um culto evangélico, montado em um espaço onde ocorrem diferentes eventos:
“Se você olhar dali de fora, está sendo montado hoje um pagode. Então é um espaço onde as pessoas utilizam a rua, e eu gosto dessa coisa mais aberta a todos. Seja religioso, seja cultural [...] o que eu gosto nessa foto é que eu vejo a confraternização na rua”.
A fala do fotógrafo Bira Carvalho nos chama a atenção por três pontos principais: o valor dado à apropriação do espaço, a diversidade dos usos em um mesmo local e sua admiração pela finalidade destinada às diversas apropriações, ligadas sempre à confraternização. A essência do que seria uma favela para ele é, inclusive, conectada à noção da apropriação da rua como espaço simultaneamente coletivo e particular.
“A rua é isso [a forma de ocupação da foto]. Isso representa muito para mim o que é favela. O que é a favela? É você chegar e ter a rua como sua. Ela é do coletivo, mas ela é sua. Você se apropria daquele espaço público. Ele é público, mas é seu também. Talvez isso seja o que mais me agrada”.
Se na "cidade-mercadoria" a passividade passa a dominar o espaço urbano espetacularizado, as apropriações feitas na Nova Holanda, apontadas por Bira Carvalho, se mostram como resposta e resistência a tal imposição de cidade. As intervenções vistas nas fotografias e descritas tanto por tal fotógrafo quanto pelas outras fotógrafas entrevistadas, remetem a caminhos apontados na década de 1960 pelo grupo Internacional Situacionista, o qual questionava a forma de organização fragmentada e hierarquizada que os centros urbanos vinham recebendo.
De forma sintética, os situacionistas "lutavam contra a cultura da espetacularização [...], ou seja, contra a não-participação, a alienação e a passividade da sociedade" (15) apontavam para a importância de uma construção realmente coletiva da cidade: quando os habitantes passassem de simples espectadores a construtores, transformadores e vivenciadores de seus próprios espaços, a espetacularização da cidade seria impedida. O meio urbano, na visão da IS, seria visto como "terreno de ação, de produção de novas formas de intervenção e de luta contra a monotonia da vida cotidiana moderna" (16). E tais questões são identificáveis nas imagens dos fotógrafos.
Cabe ressaltar que, para além de proporem "novas formas de intervenção" contra a "monotonia cotidiana", muitas das vivências que vemos nas imagens, possuem o caráter apontado por Bira Carvalho na imagem 1: o da confraternização. E a imagem 2, de Elisângela Leite, também aponta para tal questão.
Na foto, o domínio do espaço é feito pelas crianças que brincam na piscina e se divertem com a ideia de serem registradas pela câmera. Suas expressões e gestos são representativos da alegria vivida naquele espaço que, através da instalação temporária da piscina, transforma a área em local de confraternização e lazer.
A rua, em ambas imagens, revela apropriações espontâneas que promovem o encontro, atividades lúdicas, a imaginação e a Festa. Tais elementos, como aponta Lefebvre (17), seriam essenciais à conformação do espaço, uma vez que seria inerente ao ser humano a necessidade de habitar em um local que promova tais vivências.
Rosilene Miliotti também aborda a questão da apropriação e confraternização em seu ensaio sobre a Copa de 2010. Suas imagens mostram ruas enfeitadas com cores da bandeira nacional, movimento recorrente também em outros bairros da cidade e em todo Brasil.
Na imagem 3, porém, o clima da Copa extrapola o enfeitar do espaço e promove a montagem de um “telão” no centro de uma via estreita. A televisão, pertencente a uma das casas da rua, motiva o encontro entre os vizinhos e amigos, que transformam o local em área de torcida pela seleção de futebol. O entendimento de Bira Carvalho sobre a rua “ser pública, mas ser também sua” parece se reproduzir na fotografia e no relato de Rosilene. O quintal dos moradores do logradouro reúne em uma esfera familiar os amigos e mantem-se aberto a quem mais quiser se juntar (18).
Através de tendas para eventos, brincadeiras pelas ruas (imagem 04), banhos de mangueira, televisões ou de mesas de ping-pong (imagem 05), as representações dos fotógrafos revelam um espaço que parece construir uma forma possível para a cidade a partir “da vontade de cada um e de todos”, como defendiam os situacionistas(19). Um espaço apropriado – mesmo que temporariamente – e constituído a partir de vivências de seus moradores. A rua é palco ativo de “novas formas de intervenção” e de “luta contra a monotonia”. O “quintal”, próprio de tantos moradores, mostra a riqueza de um espaço constituído pelo valor de uso, onde a experiência urbana não é vivenciada através da passividade e de uma mera “cenografia”.
Como apontam os fotógrafos, as relações construídas através do lazer no espaço comum irão moldá-lo, dar-lhe o caráter plural; irão possibilitar que vínculos sejam construídos e que ocorram trocas entre os moradores. Porém, não só o lazer e a confraternização representarão os usos do espaço, mas as ruas serão ainda o palco de muitas outras atividades, assim como será também compartilhada por pessoas distintas, como apontamos a seguir.
Espaço compartilhado
Uma outra característica abordada sobre a Nova Holanda – e, podemos dizer, consequência da forma de apropriação descrita acima – é referente ao compartilhar do espaço entre diferentes grupos e diferentes usos: seja para trabalho, lazer, circulação, cultos religiosos ou outros fazeres. Este compartilhar falará não apenas sobre um espaço rico em diversidade, mas, consequentemente, sobre um local conformado por consensos e dissensos, pela negociação cotidiana do uso do espaço comum.
São diversos os autores que falam sobre a questão da diversidade e sobre ela ser inerente ao espaço urbano. Jane Jacobs, em seu livro seminal Morte e Vida das Grandes Cidades, defende que “a diversidade é natural às grandes cidades” (20) e seria revelada pela existência de um imenso número de elementos e a imensa diversidade desses elementos.
Como apontam Mello et al (21), tal diversidade, vista em determinados locais, irá resultar em diferentes padrões de composição do espaço, os quais irão se sobrepor. Neste contexto, as sobreposições que surgirão desta pluralidade, deverão encontrar negociações e acordos para sua coexistência.
A “prática de negociação” é apontada como parte da dinâmica espacial da Nova Holanda, sendo consequência da pluralidade de usos e funções destinadas aos espaços. Sobre este aspecto, consideremos a imagem 2, de Elisângela Leite, na qual crianças brincam na piscina. A fotografia, além de mostrar a questão da apropriação do espaço pelas crianças e da reivindicação do local como área de lazer, fala também sobre as negociações construídas entre vizinhos. Apesar de as crianças e mulheres serem o tema principal da cena, Elisângela dá considerável importância ao contexto espacial através do enquadramento escolhido. O entorno do local onde a piscina está instalada é exposto através de sua composição. A piscina ocupa o centro da via. Ao fundo, a imagem nos revela o logradouro, com casas enfileiradas na típica tipologia construtiva da Nova Holanda.
Para além da ação dos personagens na piscina, as informações impressas na imagem nos revelam também um ambiente residencial, com circulação de veículos e no qual acontecem eventos culturais regulares. O uso da área comum aparenta ser plural. Ao ser perguntada sobre o compartilhamento do espaço e possíveis conflitos, Elisângela aborda questões sobre a dinâmica de uso do espaço. A fotógrafa menciona também os acordos cotidianos e o provável motivador das negociações estabelecidas, ou seja, os laços entre vizinhos e a convivência existente entre eles. Como aponta a fotógrafa:
“Aqui na Nova Holanda,[...] ainda tem aquela coisa de você sentar na calçada, conversar com o vizinho. [...] Ninguém reclama de fecharem a rua, colocarem som, decorações. Acho que é a forma mesmo de estarem se conhecendo, [...] trocando laços. [...] E os acordos acontecem naturalmente".
Os valores apontados por Elisângela são semelhantes aos que Jacobs enfatiza sobre a importância do contato nas calçadas das cidades:
“A confiança na rua forma-se com o tempo a partir de inúmeros pequenos contatos públicos nas calçadas [...]. Grande parte desses encontros é absolutamente trivial, mas a soma de tudo não é nem um pouco trivial. A soma desses contatos públicos casuais no âmbito local [...] resulta na compreensão da identidade pública das pessoas, uma rede de respeito e confiança mútuos e um apoio eventual na dificuldade pessoal ou da vizinhança” (22).
O tema de ruas transformadas pela intervenção de moradores é comum às imagens dos três fotógrafos. Para além das “novas finalidades” dadas ao espaço, apontam também para as negociações locais estabelecidas. Bira, por exemplo, ao falar sobre a imagem 1, aborda a questão das negociações e conflitos que se dão pelas “novas funções” dadas ao espaço:
“A rua rompe com isso [da rua ser o local onde transitam os carros]. As pessoas estão no meio da rua. E se divide esse mesmo espaço. Se empoderam, os pedestres. Isso devia ser ensinado em todo o Rio de Janeiro. Tinha que ser ensinado. Aqui, para os motoqueiros atravessarem, dá um problema danado. Mas duvido que alguém pediu para ficar aqui”.
Para além do fluxo de locomoção da rua, a imagem aponta também para questões de compartilhar entre as pessoas presentes no entorno da intervenção temporária. Ainda sobre a imagem 1, Bira Carvalho diz:
“Nem todo mundo gosta [de eventos na rua]. Uma mulher outro dia me falou: ‘Ah, esses caras chatos [...] não vou conseguir nem assistir a minha novela’. Mas vai fazer […] E aí, vai tentar acabar cedo para não atrapalhar ninguém”.
Como apontam Mello et al. (23), “na medida em que os usos variam, põem em funcionamento o circuito de relações que constituem a vida pública nos espaços de uso comum. Estas, por sua vez, alimentam a rede de crédito e confiança” (24). E desta forma, apesar dos dissensos e possíveis conflitos, as negociações sobre o uso do espaço vão se constituindo.
Rosilene Miliotti, ao abordar a questão sobre as disputas pelo espaço realizadas pelos seus múltiplos usos, complementa com um ponto interessante. A fotógrafa traz a discussão a partir da descrição da imagem 6, a qual registra um evento de skate realizado por moradores jovens:
“Esse daqui é um pessoal do long [long board, categoria de skate]. Eles têm uma questão muito sobre o uso da rua, do espaço. As ruas da Maré são lugares de disputa o tempo inteiro. Você está ali entre carro, caminhão, moto, bicicleta, pessoas querendo andar […] é todo mundo disputando aquele espaço, porque as calçadas não existem. E essa galera do long, a gente começou a perceber que tinha um movimento principalmente depois do exército [ocupação militar ocorrida meses antes da Copa do Mundo, em 2014, e que durou quatorze meses]”.
A presença dos skatistas na rua representou para a fotógrafa a reivindicação pelo espaço, feita pelo grupo. E, ao entendê-lo também como seu, os skatistas se organizaram para fortalecer o movimento local do esporte. Na imagem vemos um jovem que, ao saltar de uma rampa com o skate, voa em uma manobra. Ao redor, vê-se outros jovens, diversos deles ainda crianças, muitos com os seus próprios skates. Todos os presentes direcionam seu olhar para aquele que faz a manobra. O evento montado no centro da rua parece não só transformar o uso do espaço, mas também inspirar os meninos, construindo o desejo de também conseguir fazer o mesmo um dia.
Organizado pelos próprios skatistas e moradores, o evento, que possibilitaria trocas entre pessoas de perfis distintos e de diferentes regiões da cidade, parece trazer algo inusitado ao local, diverte e surpreende as crianças com uma nova possibilidade que se apresenta ali. Para Rosilene Miliotti, porém, o principal tema de sua representação é a disputa que se estabelece pelo espaço da rua. Ao aprofundar-se na questão, a fotógrafa aponta haver uma grande diferença entre as funções destinadas às ruas pelos moradores da Nova Holanda. Em sua visão, há uma considerável disputa nas vias de grande fluxo, tal como a Teixeira Ribeiro ou a Principal. Porém, não em ruas estreitas como a da imagem 2, de Elisângela Leite, ou de seu próprio registro na imagem 3, por exemplo. Sua fala sobre a questão, demonstra uma percepção natural sobre a função de espaços comuns como as vias onde se concentram as unidades residenciais:
"Quando eu falo sobre a disputa, eu falo sobre esse espaço, dessas ruas que são largas e que as pessoas não conseguem circular pela quantidade de carro, moto. Esse é o lugar de disputa [...]. Pelo menos é assim que eu percebo. As ruas pequenas, eu não vejo como um lugar de disputa. São um lugar de encontro, talvez".
Espaço dinâmico
O encontro, importante salientar, seria uma das características cruciais ao espaço comum da cidade, segundo diferentes autores. A crítica de Lefebvre, ainda pertinente hoje, coloca que esta essência da rua estaria sendo suprimida. Ela perderia seu caráter de lugar do encontro, do movimento e da mistura, sua função simbólica, lúdica, do espaço que informa e surpreende. A rua se tornaria o espaço do fluxo dos automóveis e da mercadoria, servindo exclusivamente ao novo modelo de vida dominante na sociedade – o espetáculo (25). Na fala e imagens dos fotógrafos, porém, tal cenário se mostra distinto. Segundo Bira Carvalho,
“A rua é muito isso: é encontro. Encontro de pessoas diversas, de grupos diversos, que têm muito em comum”.
Para o fotógrafo, a rua da Nova Holanda seria constantemente (re)composta por tal pluralidade de encontros e trocas que o espaço comum possibilita. Rosilene Miliotti, ao falar sobre a imagem 7, também menciona tal questão.
“Quando a gente vai andando, você anda e você vê gente armada, mas você vira uma esquina e tem criança jogando futebol, vira na outra, tem criança correndo atrás de bolinha de sabão, sabe? [...] tem uma vida tão plural, tão diferente [...]”.
Seu João Bolinha (imagem 7), ao produzir sua intervenção lúdica no ar, transforma o espaço para crianças que o seguem pelas ruas do Complexo da Maré, assim como para diversos adultos que cresceram fazendo o mesmo. Segundo os fotógrafos, as pessoas e os encontros plurais que acontecem no espaço fazem a Nova Holanda ser o que é. São eles que transformam os espaços comuns, dando-lhes vida e organicidade.
Para além de tais fatos, as transformações existentes na Nova Holanda e o caráter de “espaço dinâmico” descrito em diferentes momentos nas entrevistas, estariam atreladas também a fatores econômicos, os quais interfeririam no espaço usado para o comércio e em estruturas físicas instaladas nas ruas. Sobre estas questões, Bira Carvalho aponta dois pontos: o primeiro, sobre os “turnos” do cotidiano, os quais seriam traçados principalmente pelos trabalhadores da Maré e que mudariam consideravelmente a percepção do espaço ao longo do dia; o segundo sobre as transformações no espaço construído e nas formas de ocupação realizadas nele.
Na Imagem 7, por exemplo, vemos ambas questões: Bira Carvalho registra os trabalhadores da favela (tema de destaque em seu trabalho) e a questão dos "turnos" da rua, mas capta também uma placa de chão com os dizeres "Corte à máquina – 8,00". Ao ser perguntado sobre o objeto, o fotógrafo menciona o recorrente uso de uma área da residência para iniciar um empreendimento. A unidade residencial, fato vastamente conhecido, muitas vezes se torna também local de trabalho ou ponto comercial.
A utilização da casa como fonte de renda é uma realidade não apenas conhecida, mas necessária para a dinâmica e circulação de recursos financeiros locais. Para além de tal questão, Jane Jacobs (26), já na década de sessenta, apontava para a importância da mistura de atividades em áreas urbanas. E na Favela Nova Holanda, esta mistura se dá também através de intervenções em unidades residenciais. Os usos e intervenções físicas do espaço feitos na Maré revelam como tal mistura é legítima ao local e como se adequa à realidade vivida cotidianamente pelos moradores.
Neste contexto, é comum encontrar casos em que o primeiro andar de uma unidade residencial ganha fins comerciais, ou nos quais as lajes recebam diferentes usos. Estas últimas, além de funcionarem como novos quintais (27), guardam também a possibilidade de que sua estrutura construtiva receba futuros cômodos para novos membros da família ou se torne fonte de renda alternativa através do aluguel do espaço, fato também vastamente conhecido.
A imagem 8, de Elisângela, ao mostrar o horizonte da Nova Holanda em um fim de tarde, aborda alguns usos feitos nos espaços da laje. Ao falar sobre a imagem, Elisângela menciona como o "topo" da Nova Holanda também revela uma variedade de usos e uma intensa vida (assim como nas ruas):
“Essa foto tirei da minha janela. Queria mostrar um pouco dessa cultura de soltar pipa, da cultura da laje, do lazer que falta na favela. Que as pessoas usam mesmo. Tinha muita pipa passando e a lua aparecendo lá no cantinho. E aí mostrar na contraluz as lajes, com suas antenas de TV, outras com as caixas d'água […] mostrar essa vida, né?”.
Para além da diversidade de atividades, Elisângela Leite dá ênfase na imagem ao tema do empinar pipa, um tipo de lazer muito comum à Nova Holanda e reproduzido entre gerações. Com um objeto de papel e palitos de madeira, os jovens intervêm no espaço comum, enfeitando o céu através do desenho feito no ar. Os movimentos, possibilitados pelo vento e pelo puxar da linha, supõem uma possível interação tanto com quem também solta pipa em outras lajes, como para os que veem a dança do objeto. O lúdico e as trocas, mais uma vez, se mostram presentes no espaço, agindo sobre ele e o transformando. Desta forma, reafirmam-se novamente como características cruciais pretendidas para compor o espaço habitado.
Considerações finais
As práticas realizadas nas ruas revelam a essência da Nova Holanda, um espaço recriado constantemente através do compartilhar entre os diversos usos e pessoas distintas. Como aponta Bira Carvalho,
“Esse espaço de troca é muito dinâmico, muito valioso. [...] O conhecimento oral também é assim. É como o Iorubá, que se fala na Bahia. Uma língua que vem da África, que se usa no Candomblé. Como é que essa língua vai mudando, vai se projetando, se transformando […] parte dela vai perdendo o sentido ou se transformando em outro sentido. E então a rua pra mim é isso. E isso vem desses encontros que a rua permite”.
Alinhado ao pensamento de Certeau (exposto no início do artigo), Bira Carvalho aponta para a importância dos atos cotidianos dos moradores na produção contínua do espaço da Maré, sendo os encontros no espaço comum fundamentais para tanto: tal como o ato de falar cria a língua, a vida pulsante e as trocas nas ruas da Nova Holanda constroem a forma do espaço.
Se, como aponta Jacques (28), a crítica situacionista ainda se mostra pertinente no contexto atual das cidades-mercadorias, podemos dizer que os moradores da Nova Holanda demonstram, de forma genuína e na prática, diferentes propostas pontuadas teoricamente pelo grupo da década de 1960. Para além da questão da não-passividade supracitada, a IS propunha ideias a favor da mistura e diversidade, contra a generalidade, a impessoalidade; defendia a volta à escala humana e à participação dos habitantes na construção do espaço. E tais elementos são vistos na Nova Holanda.
Seja através da piscina na esquina, da tenda na via, das bolinhas de sabão no ar ou da pipa no céu, as representações dos fotógrafos falam sobre um espaço construído pelas pessoas reais da escala da rua, mostram um local orgânico, com moradores que reivindicam um espaço de encontros, que garanta o direito ao lazer, à surpresa, à Festa. Um local onde as individualidades são reivindicadas em um constante jogo de consensos e dissensos; um espaço que luta por uma cidade construída a partir dos desejos e necessidades inerentes ao ser humano.
notas
1
MELLO, Marco A.; VOGEL, Arno. Lições da rua: o que um racionalista pode aprender no catumbi. In LIMA, Roberto Kant; MELLO, Marco A.; FREIRE, Letícia de Luna. Pensando o Rio. Rio de Janeiro, Intertexto, 2005, p. 297.
2
LEFEBVRE, Henry. La production de l'espace. 4a edição. Paris, Editions Antrophos, 2000. Tradução do Grupo "As (im)possibilidades do urbano na metrópole contemporânea", do Núcleo de Geografia Urbana da UFMG, Belo Horizonte, 2006a.
3
BARBOSA, Jorge Luiz. Paisagens da natureza, lugares da sociedade. A construção imaginária do Rio de Janeiro como cidade maravilhosa. In SILVA, Jailson de Souza; BARBOSA, Jorge; FAUSTINI, Marcus Vinicius. O novo carioca. Rio de Janeiro, Mórula Editorial, 2012, p. 23-41.
4
MARTINS, José de Souza. Sociologia da fotografia e da imagem. São Paulo, Contexto, 2016.
5
LEFEBVRE, Henry. Op. cit.
6
JACQUES, Paola Berenstein. Espetacularização urbana contemporânea. Cadernos PPG-AU FAUFBA, Territórios urbanos e políticas culturais, n. especial, ano 2, Salvador, 2004, p. 23-30.
7
A busca por uma representação internacionalmente atrativa da cidade justificaria não apenas intervenções urbanas espetaculares, como também o controle dos espaços que não estivessem de acordo com a imagem-marca pretendida, fosse através de projetos de segurança pública tal como a Unidade de Polícia Pacificadora – UPP, fosse através das inúmeras remoções que ocorreram no período.
8
JACQUES, Paola Berenstein. Microressistências urbanas: por um urbanismo incorporado. In ROSA, Marcos L (Org.). Microplanejamento. Práticas urbanas criativas. São Paulo, Editora de Cultura, 2011.
9
LEFEBVRE, Henry. O direito à cidade. São Paulo, Centauro, 2006b.
10
LEFEBVRE, Henry. A revolução urbana. Belo Horizonte, Humanitas, 2004.
11
CARLOS, Ana Fani Alessandri. Espaço-tempo na metrópole. São Paulo, Contexto, 2001.
12
LEFEBVRE, Henry. A produção do espaço (Op. cit.).
13
BARBOSA, Jorge Luiz. Op. cit.
14
Ver www.imagensdopovo.org.br
15
JACQUES, Paola Berenstein. Apologia da deriva. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003, p. 13.
16
Idem, ibidem, p. 26.
17
LEFEBVRE, Henry. O direito à cidade (Op. cit.).
18
Como aponta a fotógrafa sobre o dia do ensaio: “Cada lugar que eu ia, eu comia um pouco [...] se não comesse, eles ficavam chateados”.
19
Na visão da Internacional Situacionista, a cidade poderia ser formada apenas através dos usos cotidianos e vontades de seus habitantes, e não a partir de “postulados” ou categorias espaciais estabelecidas pela “elite acadêmica e técnica” – como diriam Mello et al. (Op. cit.). Como aponta Paola Jacques, em Apologia à Deriva (Op. cit., p. 19), “os situacionistas perceberam então que não seria possível propor uma forma de cidade pré-definida pois, segundo suas próprias ideias, esta forma dependia da vontade de cada um e de todos, e esta não poderia ser ditada por um planejador”.
20
JACOBS, Jane. Op. cit., p. 157.
21
MELLO, Marco A.; VOGEL, Arno; SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Quando a rua vira casa. São Paulo, Projeto Arquitetos Associados, 1985.
22
JACOBS, Jane. Op. cit., p. 60.
23
MELLO, Marco A.; VOGEL, Arno; SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Quando a rua vira casa. São Paulo, Projeto Arquitetos Associados, 1985.
24
MELLO, Marco A.; VOGEL, Arno; SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Op. cit., p. 130.
25
LEFEBVRE, Henry. A revolução urbana (op. cit.).
26
JACOBS, Jane. Op. cit.
27
Segundo colocações do fotógrafo Adriano Ferreira Rodrigues, "Desde sua formação, a Maré sofreu um crescimento muito grande. Com este crescimento, o que antes era um quintal com uma ou mais árvores, foi sendo substituído, aos poucos, por novos cômodos a fim de abrigar os novos entes que iam nascendo. Esta ocupação, que se conformou, ao passar dos tempos, como forma de resistência à ausência do Estado em constituir projetos de construção de casas populares, contribuiu para a diminuição das áreas dos quintais e varandas onde ocorriam as brincadeiras e festejos das famílias. No entanto, em um processo de readaptação essas atividades foram sendo aos poucos, transferidas e realizadas em um novo espaço que surgia com o advento das construções de alvenaria, as lajes. Neste sentido, as lajes passaram a ter status de quintal, de varanda da casa. Espaço onde as famílias se reúnem para dar um churrasco para amigos, onde se toma banho de sol e se refresca com mergulhos na piscininha de plástico e / ou se molham de mangueirinha e, que as crianças sobem para soltar pipa e brincar de pique. A laje hoje, é mais que uma possibilidade de um novo cômodo, é o espaço que garante ao trabalhador o direito ao lazer, direito este negado por um Estado omisso. Maré, Rio de Janeiro, Brasil, América do Sul". Adriano Ferreira Rodrigues <https://www.flickr.com>.
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JACQUES, Paola Berenstein. Apologia da deriva (op. cit.), p. 13.
sobre os autores
Luiza Xavier Pereira é graduada em Desenho Industrial pela PUC-Rio, nas habilitações de Projeto de Produto (2009) e Comunicação Visual (2010). Mestre em Arquitetura pela PUC-Rio (2017) e doutoranda em Urbanismo pelo Prourb-UFRJ.
Fernando Betim Paes Leme é arquiteto e Urbanista pela Puccamp (1986), mestrado (2003) e doutorado em Design pela PUC-Rio (2008). Especialização em Arquitetura e Sustentabilidade (UPC-Barcelona, 2006). Professor e pesquisador em Arquitetura e Sustentabilidade pelo Departamento de Arquitetura e Urbanismo – DAU-PUC-Rio.