Que lições, desafios, dobras e limites surgem para o urbanismo quando observamos Brasília a partir de sua materialidade cotidiana e atual? A capital poderia nos levar a pensar em outras possibilidades de projeto urbanístico, para além das referências polarizadas entre cidade compacta ou cidade difusa? Essas são algumas das instigantes indagações colocadas neste recém-lançado livro, em edição bilíngue inglês/português, reunindo textos de professores e pesquisadores da UFRJ e da UnB, precedidos de um prefácio de Dominique Rouillard (École Nationale Supérieure d'Architecture Paris-Malaquais).
Os autores e autoras têm ampla experiência no ensino e na pesquisa no campo da Arquitetura e do Urbanismo em Brasília e no Rio de Janeiro e mostram grande sintonia na elaboração coletiva dos textos, o que é fruto também de uma trajetória conjunta em diálogos, workshops e interlocuções diversas contando com alunos, professores e arquitetos atuando na prática da profissão.
A publicação da obra é parte de um novo momento nos estudos sobre Brasília, já distante das polêmicas iniciais em torno do suposto sucesso ou fracasso dos preceitos modernistas na materialização da nova capital. Trata-se de retirar Brasília da condição de “cena do crime” do urbanismo modernista – na divertida expressão dos autores – e buscar liberá-la dos enquadramentos usuais ou de formas prévias de compreensão.
Na historiografia em Arquitetura e Urbanismo e em vários campos das ciências sociais, estudos sobre a capital realizados nos últimos anos trouxeram à luz novas fontes e perspectivas acerca de sua concepção e passaram a olhar com mais interesse para práticas, vivências e representações sociais produzidas na metrópole. No entanto, no campo do Projeto de Arquitetura e Urbanismo, as discussões sobre Brasília – particularmente sobre o Plano Piloto – permaneceram em grande parte definidas pelos marcos estabelecidos pelo projeto original de Lúcio Costa de 1957 e pelas normativas de tombamento de 1987.
A intenção dessa obra não é, porém, discutir intenções ou gestos fundantes da capital, tampouco entrar nas problemáticas da sua preservação ou dos modos de nela intervir. Em vez disso, considera-se o Plano Piloto objeto privilegiado para investigar referências e metodologias de projeto. A escolha justifica-se: trata-se de um “projeto de cidade não compacta por excelência e, ao mesmo tempo, centralidade urbana máxima devido a sua condição de capital nacional”. As análises dedicam-se à paisagem urbana contemporânea, ainda muito fiel ao projeto original, mas também marcada por intervenções de diferentes épocas e por uma exuberante vegetação.
O propósito é revisar criticamente estratégias de projeto da cidade não-compacta, com base na identificação de três operações fundamentais: a balizagem, isto é, “marcação de limites e referenciais na paisagem potencialmente infinita”; a terraplanagem, ou “a articulação do solo por excelência” e o ajardinamento, “que consiste na programação da paisagem associada à criação de um mundo interior”. Um conjunto de definições e pressupostos teóricos e metodológicos é apresentado nas primeiras páginas do livro, que se dedica, na sua maior parte, a analisar situações específicas de projeto, a partir de determinadas categorias: subtração, diluição, imitação, orientação, diferenciação, formação e abstração, organizadas em dois grandes grupos: interior como exterior e exterior como interior.
Os edifícios e locais analisados ao longo do livro envolvem desde obras e conjuntos monumentais – tal como a Praça dos Três Poderes, a Rodoviária e o Ministério das Relações Exteriores – passando pela superquadra residencial, até chegar a obras ainda não tão estudadas, como a barragem do Lago Paranoá, o restaurante universitário da UnB e a ermida Dom Bosco. Esse conjunto de análises específicas tem grande valor didático, pois compreende cuidadosas leituras de projetos considerados em seus próprios termos, ou seja, sem a preocupação de demonstrar teses ou, como muitas vezes se fez, de julgar a validade de certas posturas e decisões. Numa edição primorosa, as análises são acompanhadas de desenhos em perspectiva axonométrica feitos por alunos da UnB e UFRJ e fotos de vários autores, entre os quais a talentosa fotógrafa Joana França, também formada na UnB.
O livro será de grande valia para alunos, arquitetos e pesquisadores que procuram referências para refletir sobre projetos, analisá-los e, é claro, para fazer projetos. O mérito da obra é não apenas contribuir para dar densidade e profundidade a leituras e estudos no campo disciplinar do Projeto, mas também mostrar que é possível fazê-lo a partir da singular capital brasileira.
sobre a autora
Maria Fernanda Derntl é professora da FAU-UnB, líder do grupo de pesquisa Capital e Periferia (CNPq/UnB), vencedora do prêmio Milton Santos (Anpur), em 2021, com o artigo Brasília e suas unidades rurais (Anais do Museu Paulista, 2020).