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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O artigo reflete sobre o impacto das ferramentas digitais na relação entre corpo e espaço urbano, tendo como base uma performance artística que combina tecnologia e yoga para distorcer a realidade e transformar a interação no espaço público.

english
The article reflects about the impact of digital tools on the relationship between body and urban space, based on an artistic performance that combines technology and yoga to distort reality and transform interaction in public space.

español
El artículo reflexiona sobre el impacto de las herramientas digitales a partir de una performance artística que combina tecnología y yoga para distorsionar la realidad y transformar la interacción en el espacio público.


how to quote

LIMA, Jéssica Caroline Rodrigues de; BREZOLIN, Indiara Pinto; SILVA, Christian Cambruzzi da; FELIPPE, Maíra Longhinotti; SANTOS, Rodrigo Gonçalves dos. Realidade distorcida. Uma performance no Centro Leste de Florianópolis. Arquitextos, São Paulo, ano 24, n. 291.02, Vitruvius, ago. 2024 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/24.291/9015>.

Este artigo buscou desenvolver uma reflexão sobre como as ferramentas digitais têm impactado nas relações entre corpo e espaço urbano. As ideias aqui apresentadas estão ancoradas nas experiências vivenciadas pelos autores na realização de uma performance artística concebida durante a disciplina de “In(ter)venções urbanas: a arte e a arquitetura como construtoras de dissensos”, integrante do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Assim, este artigo surgiu motivado pelo desejo de abordar as ideias que nortearam a construção da performance, descrever a experiência a partir da perspectiva dos autores e trazer algumas reflexões sobre como a interação com o espaço público tem sido alterada a partir da intensificação do uso de tecnologias de comunicação.

O termo “performance” ganhou destaque a partir da segunda metade do século 20, consistindo numa expressão corporal que conforme Caroline Santos (1), simula diferentes formas de ser e agir, na intenção de expressar uma determinada ideia. Diferente de outras formas de manifestação artística, a performance carrega em si a ideia de movimento, não apenas pelo fato de ser praticada através de gestos corporais, mas também por ser uma ação que acontece de maneira pública e ao vivo.

Ainda que a performance possa ser previamente ensaiada e repetida, para Wagner Ferraz e Camila Mozzini (2), ela sempre carregará consigo algumas incertezas do momento, uma vez que o público expectador não tem conhecimento da ação, sendo imprevisível a sua reação ao encontro com os artistas. A performance apresenta-se, assim, como uma forma de expressão tangível que se interessa pela percepção do outro, ou seja, um ato de comunicação dentro de uma realidade imediata, cuja singularidade se relaciona com os diversos aspectos subjetivos que atuam em cada apresentação de maneira situacional.

Desse modo, uma premissa para a existência de um ato performático seria o reconhecimento pelo espectador de um outro espaço carregado de espetacularidade, a percepção de uma alteridade espacial. De acordo com Paul Zumthor (3), é na quebra com o “real” ambiente, na criação de fissuras entre este e o instante vivido, denominadas de “alteridade espacial”, que se desenvolve a performance.

A ação performática é marcada pelo confronto entre modelos de conduta, sendo uma intervenção que perturba, transgride, provoca, questiona ações e comportamentos instituídos como natural pela cultura, como explica Jorge Glusberg (4). O corpo desvia dos papéis que o alienam cotidianamente e promove, através do estranhamento, uma justaposição de experiências para compor uma nova realidade.

A performance intitulada “Realidade distorcida” teve como conceito chave uma crítica à interferência da tecnologia na percepção e relação dos indivíduos com o espaço urbano. Dentro dessa proposta procurou-se também utilizar elementos da prática do yoga, visando fortalecer não somente a ideia central do ato, como também causar uma sensação de estranhamento e ruptura da lógica comportamental característica do local. Em suma, essa prática artística buscou “distorcer o tempo e o espaço” por meio do uso das tecnologias dos dispositivos móveis e da prática do yoga.

Assim, esse artigo busca trazer algumas reflexões sobre como o uso massivo de aparelhos eletrônicos na realidade contemporânea têm impactado, efetivamente, na utilização dos espaços públicos, tendo como plano de fundo a experiência dessa performance artística realizada na cidade de Florianópolis.

O samba boêmio da Victor Meireles

A performance ocorreu nas ruas Victor Meireles e na travessa Ratcliff, situadas no bairro Centro da cidade de Florianópolis, em Santa Catarina, Brasil. Eduardo Petry (5) explica como até os anos 2000, essa área, localizada a leste e nordeste da Praça XV, manteve características ligadas ao uso residencial, comercial e ao turismo histórico; porém, a partir de 2010, uma nova identidade foi estabelecida na região, destacando-se pela presença de instituições culturais e por uma atmosfera boêmia.

A escolha do local para a realização da performance ocorreu devido à atmosfera festiva que caracteriza esse espaço, sobretudo, aos finais de semana, quando os bares ali localizados introduzem apresentações de samba nas ruas e calçadas do espaço público. Os eventos de lazer associados à restrição de veículos automotores nessas vias atraem um número significativo de pessoas que se reúnem para desfrutar de encontros descontraídos. Foi em um sábado à tarde, entre uma rua de paralelepípedos e uma calçada de concreto, cercado por uma multidão, que a performance aconteceu.

O espaço público e sua atmosfera festiva
Foto Bruno Alencar da Maia Pinto, 2022

Os olhares e os registros das pessoas
Foto Bruno Alencar da Maia Pinto, 2022

Em meio ao ambiente festivo das ruas do Centro Leste, foram estendidos os tapetes e começou a prática de yoga, sendo cada um dos praticantes dotado de um objeto eletrônico, um celular, um headphone e um óculos de realidade virtual — RV. Enquanto os dispositivos tecnológicos acabam sendo comumente utilizados para acelerar o tempo, para distrair; as práticas de yoga pregam, ordinariamente, a desaceleração do corpo e da mente. Para Gilbert Santos (6), o yoga é uma técnica de concentração, aprimoramento da saúde física e mental, através da meditação. A prática de yoga causou surpresa devido ao fato desta não estar sendo realizada em um ambiente considerado "ideal". Contrariando os princípios do yoga, o local era movimentado e ruidoso. Essa abordagem distorce a realidade física do momento, indo na contramão do que é habitualmente esperado, e criando uma nova realidade composta por elementos familiares do local e por elementos disruptivos. O yoga foi incorporado à composição performática, a partir do reconhecimento de que apenas os dispositivos eletrônicos não teriam o poder necessário para transformar significativamente a percepção do espaço. Isso ocorre devido à naturalização do uso desses elementos tecnológicos na rotina contemporânea.

Caso a ação fosse elaborada em um horário e dia da semana diferente, ela possivelmente não teria o mesmo impacto, visto que a rua retomaria seu papel de passagem na vida agitada da cidade. O contexto do momento apresentava particularidades que tornavam o espaço inapropriado para a prática de yoga, o que chamou a atenção das pessoas que estavam presentes, gerando reações de estranhamento por meio de comentários, olhares e registros, através de seus celulares.

Tecnologias digitais na paisagem urbana: performance na geração de uma distorção do cotidiano

A introdução da tecnologia dos dispositivos móveis possibilitou o surgimento de funcionalidades que impactaram profundamente a vida dentro das cidades, sobretudo, ao permitirem a criação de novas dimensões espaciais que ultrapassam o espaço físico, e que geram a sensação de se estar “conectado full time” a uma grande rede.

Baseado no conceito de "espaço crítico", Paul Virilio (7) discorre sobre as implicações das tecnologias contemporâneas, especialmente as relacionadas à comunicação e ao transporte, nas formas de percepção e experimentação do espaço e do tempo. Conforme o autor, as distâncias são percebidas como mais curtas e facilitadas, principalmente, devido à sensação de compressão do espaço.

Para Dominique Boullier (8) tratam-se de dispositivos de desmaterialização de elementos em informações, que ampliam a ideia de pertencimento a bolhas de diferentes atividades, transações e círculos sociais, todas acessíveis a cada indivíduo através de um único artefato tecnológico. O autor afirma que este fenômeno faz parte do conceito de “habitele”, gerado a partir da combinação entre os termos “hábito”, “habitat” e “telemática”; e que consiste numa camada espacial individualizada, criada a partir das interações possibilitadas pelos dispositivos digitais móveis, e que surge como um prolongamento do corpo e do habitat deste corpo (9). Seguindo também essa direção, Rodrigo Firmino (10) aborda o conceito de “espaço ampliado” como resultante de um processo contínuo de sobreposição e justaposição de informações entre o espaço físico e o digital, um ambiente de codificação, cujo acesso se encontra disponível em todo lugar e a todo momento (um espaço onipresente).

A noção de virtualidade cria a possibilidade de ocupar mais de um espaço ao mesmo tempo. Nesse sentido, tanto o conceito de “habitele” quanto o de “espaço ampliado” perpassam não somente as relações desenvolvidas na interação entre pessoas e tecnologias, mas também englobam a esfera espacial, através do encorajamento ou desestímulo ao uso dos espaços físicos e dos espaços virtuais. O uso dos dispositivos digitais leva a uma reflexão sobre a influência da tecnologia na interação dos indivíduos com o ambiente urbano, negando, assim, a realidade constituída apenas pelo espaço material (físico) a partir da imersão em uma “realidade expandida” constituída por elementos físicos e virtuais.

Conforme a Infomoney (11), enquanto a realidade virtual insere o usuário em ambiente criado por meio de softwares, que simula a realidade física; a realidade aumentada faz o oposto, e insere dados virtuais no ambiente real, por meio de smartphones ou das lentes de óculos especiais.

No jogo Pokemon Go (lançado em 2016), por exemplo, observa-se o uso de realidade aumentada baseada na combinação entre pontos de geolocalização e elementos digitais fictícios em tempo real. Neste aplicativo, as criaturas a serem apanhadas pelos usuários são visualizadas no ambiente físico através da câmera do celular (o software insere nas imagens objetos que fisicamente não estão lá). Dentro desse contexto, os indivíduos percorrem ambientes urbanos reais, porém, com a atenção focada nesse espaço híbrido.

Outro exemplo de ferramenta tecnológica aplicada ao espaço urbano são as etiquetas constituídas por códigos, como QR code, as quais permitem o acesso a uma infinidade de conteúdos digitais também inseridos nos ambientes através da visualização em telas. Raquel Daroda (12) explica como o estabelecimento gradual de espaços urbanos hibridizados constituídos a partir de uma interface digital interativa tem permitido não somente uma quebra na noção de estaticidade espacial como também uma maior interação e personalização do mesmo pelos seus usuários.

Outro caso de alteração do espaço através de recursos tecnológicos acionados por usuários consiste no “Projeto Enteractive” (2006) lançado pela empresa americana Electroland (13), no qual um tapete interativo de luzes LED em escala urbana identifica os passos dos visitantes e projeta diferentes composições luminosas em resposta na fachada da edificação.

Já no projeto “Bins and Benches", elaborado pelo grupo londrino Greyworld (14) em 2006, a experiência urbana é transformada através da adoção de elementos luminosos, cinéticos e acústicos. Localizado próximo ao Junction Theatre em Cambridge, o projeto é constituído por lixeiras e bancos inteligentes capazes de interagir com o público e de se movimentar no ambiente: em um dia de chuva, um banco pode decidir buscar uma árvore para que possa estacionar e esperar que um usuário se sente nele; enquanto as caixas de lixo podem se alinhar em um determinado horário a fim de esperar o seu esvaziamento. Os bancos são dotados de pernas que possibilitam aos usuários que estes se balancem, sendo a partir desse movimento reproduzidos sons que estimulam o imaginário e transformam a experiência vivida na praça.

Observa-se assim que as tecnologias digitais, usualmente empregadas em instalações artísticas, passaram a ser estendidas à composição dos espaços urbanos, estimulando novas formas de experimentação e de percepção dos mesmos. A forma como as pessoas se relacionam com o ambiente tem conduzido a uma alteração na aparência da paisagem urbana, além de despertar um interesse mais amplo por parte dos residentes urbanos.

Por outro lado, as situações de maior distanciamento do espaço material e, consequentemente, dos elementos sensíveis inerentes aos mesmos, acabam criando oportunidades para comportamentos também descontextualizados, como por exemplo a prática de yoga em pleno calçadão de um centro urbano, proposta pela performance. O impacto das tecnologias na relação pessoa-ambiente se apresenta como uma ruptura nos chamados cenários comportamentais, também conhecidos como “behavioral settings”. Conforme o conceito elaborado por Roger Baker (15), tratam-se de unidades naturais determinadas no tempo e no espaço, nos quais certos padrões de comportamento ou ação — inseridos em um ambiente mais ou menos específico — ocorrem sempre de maneira semelhante. Em síntese, acontecimentos da vida cotidiana que acontecem sempre de uma forma semelhante, obedecendo a determinados critérios.

Óculos de realidade virtual — RV

De acordo com Gessica Rodrigues e Cristiane Porto (16), a realidade virtual consiste na construção de um ambiente simulado, que pode ser tanto real quanto imaginário, usando computadores. Os autores destacam que a concepção é fundamentada em três pilares: A imersão, gerando a sensação de estar totalmente imerso ao ambiente virtual; a interatividade, que possibilita a realização de ações; e o envolvimento, que é o nível alto de estímulo que a experiência proporciona. No caso da performance, o celular utilizado através do óculos estava filmando conforme o olhar do performer. O que possibilitou reassistir as cenas em outro momento.

A ideia da realidade virtual se assemelha à abordagem técnica do yoga no espaço agitado, onde a percepção do espaço físico é negada principalmente através da visão. Nesse contexto, a visão se desconecta da fisicalidade da situação, resultando em uma percepção alienada, influenciada pelo dispositivo tecnológico. Esse dispositivo evita que a visão esteja diretamente conectada ao ambiente físico, ao passo que os demais sentidos mantêm uma ligação direta com a realidade. Segundo Marly Gonçalves (17), a realidade virtual está diretamente ligada a quem está performando; para o público, vivencia-se uma situação genuína na qual os dispositivos móveis capturam imagens reais.

As mãos, os pés e o tronco exploram as texturas da rua e da calçada. O ouvido permanece atento às aproximações e distanciamentos do público. Os olhos estão fixados numa tela de dispositivo móvel que, por sua vez, confunde a percepção ou até mesmo cria uma realidade alternativa exclusiva para a performance. É uma visão expandida pela tecnologia. Neste contexto, o som do espaço se manifesta com maior certeza, abordando todas as direções. A paisagem é percebida por uma observação atenta, na qual o performer a enxerga através dos óculos, solidarizando-se com o público por meio da audição. São percebidos os ruídos, os cochichos e os pequenos universos sonoros que se entrelaçam ao fundo do samba.

O óculos de realidade virtual proporciona uma experiência ao performer, permitindo que ele visualize diretamente o ambiente em que está inserido por meio do seu uso, além da oportunidade de retrospectiva e revisão do conteúdo gravado. Após a apresentação, foi possível regressar ao espaço por meio da gravação em vídeo, utilizando tanto a audição quanto a visão, e reviver a experiência. Isso permitiu observar mais detalhes sobre o que ocorreu durante a performance, analisar as reações das pessoas e compreender integralmente o ambiente de maneira mais ampla. Essa abordagem proporcionou uma nova perspectiva da performance, gerando um momento de retorno das memórias e sentimentos vividos durante esta ação. Reflete-se o uso de óculos de realidade virtual, através da negação da realidade e relação de uso com o espaço urbano por meio dos movimentos do yoga.

Fones de ouvido

A prática de movimentos do yoga e o uso do fone de ouvido abafavam os diversos sons que preenchiam o entorno no momento, o que por um lado propiciou a geração de uma atmosfera sonora mais calma, porém também levou a uma intensificação da percepção visual do entorno. Sabe-se que os ambientes mais silenciosos ou marcados por sons relaxantes são propagados por grande parte dos profissionais de yoga como um dos elementos essenciais para que se possa atingir um estado de relaxamento e de consciência do corpo sobre o momento presente (estado meditativo).

Gaston Bachelard (18) comenta que nosso senso de realidade seria reforçado e articulado pela interação constante dos cinco sentidos, conceituada como “polifonia dos sentidos”. Com a negação do som por meio do uso do fone de ouvido, a necessidade de apreensão visual do entorno, principalmente, da reação estampada na face das pessoas em relação à intervenção pareceu tomar uma maior proporção.

Considerando as ideias defendidas por Juhani Pallasma (19) de que as características do espaço são medidas igualmente por nossos olhos, ouvidos, nariz, pele, língua, esqueleto e músculos, a tentativa de abafamento dos sons existentes no momento da intervenção teria como consequência, portanto, uma apreensão parcial da realidade ou a criação de uma realidade distorcida do espaço, principalmente, ao se considerar que neste ambiente estava acontecendo uma situação de festividade e de dança, sendo o som das músicas elemento que daria sentido à cena observada.

O uso de fones de ouvido no espaço público da cidade tem sido cada vez mais presente; negamos os sons da rua e, sobretudo, do outro que nos circunda, ao optarmos por mergulhar em uma atmosfera artificializada e individualizada propiciada através do uso de aparelhos tecnológicos. Experimentamos um ritmo de vida urbana frenético, marcado pelo excesso de informações. Desaprende-se a lidar com os momentos de introspecção e quietude, buscando solucionar as ansiedades geradas por esse mesmo estilo de vida, cada vez mais, através de hiperestímulos visuais e sonoros presentes no ambiente digital, e não pela busca de uma experiência sensível.

Se as interações sociais acontecem dentro de paisagens sonoras, conforme defendido por Silberschneider (20), a presença de fones de ouvido faz com que as pessoas modifiquem sua forma de se conectar com os outros, transformando sua realidade. A ousadia sobre colocar em junção com o yoga alguns aparelhos eletrônicos teve como intenção criar um contraste, uma ação conjunta que causasse perturbações. Assim, nega-se uma parcela das circunstâncias físicas, tendo como consequência uma sutil apatia dos sentidos. Na performance em questão, a opção de utilizar fones de ouvido durante a prática de yoga está relacionada à necessidade de negar um ambiente barulhento. Além de auxiliar o praticante a manter a concentração durante a atividade.

Celular

Ao utilizar o dispositivo móvel para criar um auto registro audiovisual, focado em si mesma, durante a prática de yoga, a atenção da performer estava direcionada a um público específico que não estava fisicamente presente. O olhar se concentrava na tela, buscando o melhor ângulo, posição e elementos que pudessem estimular uma maior interação nas redes sociais.

O foco estava dirigido ao dispositivo móvel, simbolizando um distanciamento do público em relação ao ambiente circundante. Ignorando os arredores ou qualquer tentativa de chamar a atenção. Sefa Bulut e Thseen Nazir (21) descrevem a prática de negligenciar aqueles próximos para dedicar atenção ao celular como "phubbing", um fenômeno que estaria intrinsecamente ligado à prevalência dos dispositivos no dia a dia das pessoas. Por consequência do uso, o celular gera uma distração, resultando em um processo hipnótico onde não se vê os acontecimentos ao redor.

Recusa-se a cidade e o que ela está vivendo no momento para se “fechar” em um ambiente virtual direcionado para o contato com pessoas estranhas (não conhecidas) e distantes geograficamente. Em um cenário atual movimentado, onde as pessoas estão fisicamente próximas, mas mentalmente isoladas, recorre-se à prática do yoga para relaxar enquanto utiliza-se o celular para comunicação com diversas pessoas distantes fisicamente, porém próximas virtualmente. Emprega-se a negação e a contradição como ferramentas para criar uma performance e alterar a realidade física existente, promovendo a criação de uma nova atmosfera composta por elementos familiares e elementos estranhos. Em um contexto tão interconectado como o atual, onde há potencial para conexões entre tudo e todos, dessa rotina de distorção da realidade física emerge um novo padrão de vida urbana, o qual se revela distante das convivências, e que está ligada ao uso do celular.

A concentração nos smartphones diminui a qualidade das interações sociais, resultando em menos contato visual e falta de atenção. É estranho pensar que ao mesmo tempo que os aparelhos aproximam as pessoas através da conexão com a internet, as afastam de um convívio físico social. Durante a performance negou-se tanto a realidade agitada composta por diversas pessoas como a prática de relaxamento de yoga, estando a performer mergulhada em um mudo paralelo com interações voltadas ao público virtual. Em meio a esse cenário urbano conturbado, mostrou-se somente o que era possível visualizar no ângulo da câmera do smartphone, ou seja, nada além das informações passadas através das lentes e escolhas de quem o manuseia. O recorte do ambiente visualizado digitalmente na tela trata-se apenas de um cenário, um plano de fundo.

O propósito foi integrar tecnologias cujos usos levam as pessoas a se desconectarem de suas realidades, seja por meio da visão, da audição ou através da interação nas redes sociais. O emprego desses dispositivos, que tendem a causar distração da realidade material, foi combinado com a prática do yoga, a qual também altera a percepção dos elementos do entorno, porém, na intenção de promover um mergulho do usuário em si mesmo, em um pensamento ou sensação particular de forma canalizada, ou seja, atingir um estado de meditação.

Durante a realização do ato, a combinação dos dispositivos tecnológicos com os movimentos do yoga causaram estranhamento ao público presente, uma vez que geraram uma condição visual que divergia do entorno, marcado por uma ocupação intensa de pessoas, dançando e cantando ao som da banda de samba. Cabe destacar que esse estranhamento não durou muito tempo, possivelmente porque estes espaços já carregam em si uma maior abertura para o diferente. Amáli Bezerra (22) explica como os lugares próprios para festas desempenham um papel significativo na interação entre as pessoas e o ambiente, uma vez que tais eventos frequentemente espelham a forma como grupos sociais pensam, percebem e conceituam seu entorno. No local escolhido, as pessoas têm a liberdade de escolher se querem sentar, dançar, permanecer em pé para conversar com outras pessoas, exibir exposições ou realizar vendas.

O uso de dispositivos como óculos de realidade virtual — RV, fones de ouvido e smartphones influenciam os comportamentos e a percepção do ambiente físico pelo corpo humano. Isso resulta em novas configurações da situação. As novas mídias possuem um impacto significativo que pode criar ou revelar uma nova realidade caracterizada pela inclusão de elementos sonoros e visuais digitais. Esses elementos, por um lado, podem diminuir a percepção dos sentidos em relação à materialidade do ambiente, mas, por outro lado, possibilitam que as pessoas sejam transportadas para uma atmosfera artificial personalizada, na qual se sentem no centro dos acontecimentos. Cresce o sentimento de protagonismo em histórias cujo controle sobre a personalização dos cenários e das condições se amplia com inserção massiva dos equipamentos digitais.

Conforme explicam Tharsila Dallabona-fariniul e Rodrigo Firmino (23), a relação estabelecida com o espaço urbano sofre também alterações, uma vez que este também passa a reunir grandes volumes de dados informacionais que impactam nos sentidos de localização, interação e movimentação dos corpos no mesmo. Desse modo, a forma como o indivíduo se relaciona com o espaço passa a ser definida pelas trocas entre corpo e espaço, mente e espaço, e redes sociais e espaço. O ambiente físico, marcado por imperfeições, ganha assim diferentes representações do que poderia vir a ser em uma esfera de plenitude, uma versão aperfeiçoada.

Considerações finais

Esse artigo originou-se a partir das discussões realizadas em sala de aula sobre os atos da performance, com o objetivo de relatar as experiências dos autores e refletir sobre os conceitos que embasaram a ação. Assim, o artigo explorou o impacto das ferramentas digitais na interação corpo-ambiente no cenário urbano, utilizando um ato performático como meio de expressão. A apresentação artística revelou-se provocativa e instigante, provocando uma alteração na percepção visual das pessoas, uma distorção da realidade habitual da área escolhida.

Uma inovação pouco comum para um ambiente que normalmente abriga corpos sentados ou em pé entre mesas e cadeiras nas ruas e calçadas da Victor Meireles. Preparados para receber a tecnologia socialmente aceita naquele espaço-tempo, como som do samba, os corpos ali presentes são confrontados com uma abordagem singular de pessoas dotadas de aparelhos eletrônicos reproduzindo movimentos de yoga. O sistema perceptivo de cada indivíduo é único, refletindo as influências externas, suas emoções, pensamentos e, consequentemente, moldando seu comportamento em relação ao entorno. Foram notados olhares atentos diante do que acontecia, enquanto capturas fotográficas ou vídeos documentavam a singularidade do momento. Os performers apresentaram seus próprios dispositivos ao público circundante, e, em reciprocidade, foram observados através dos dispositivos dos espectadores, estabelecendo assim uma forma de comunicação.

A performance no espaço urbano propicia a reflexão sobre o espaço e as práticas socialmente estabelecidas, o que provoca uma alteração da percepção e contemplação dos dispositivos móveis, agora deslocados para outro contexto. As tecnologias mudam o modo como as pessoas se mostram presentes no meio urbano, ultrapassando a materialidade do ambiente físico e imergindo em um espaço ampliado, constituído também por elementos virtuais fictícios que expandem os limites da imaginação e as possibilidades de interação social.

O fato é que o uso de aparatos eletrônicos vem impactando o modo de se viver dentro das cidades, sendo esse impacto observado, sobretudo, no enfraquecimento ou maior dificuldade de perceber os estímulos naturais do entorno — o corpo torna-se cada vez mais insensível, negando o entorno físico e canalizando sua atenção para a esfera virtual. A inserção das tecnologias digitais no meio urbano é um fenômeno em contínuo crescimento. Surge uma maior necessidade de reflexão e debate em torno das consequências desse processo sobre as formas de percepção e conexão estabelecidas entre os indivíduos e os espaços híbridos contemporâneos.

notas

1
SANTOS, Caroline Érica. Insurgências na Soteropolicity: Performar para realizar outros sentidos. Tese de doutorado. Salvador, PPGAC UFBA, 2013.

2
FERRAZ, Wagner; MOZZINI, Camila. Estudos do corpo: encontros com arte e educação. Porto Alegre, Indepin, 2013.

3
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção e leitura. São Paulo, Cosac Naify, 2007, p. 34.

4
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo, Perspectiva, 2007.

5
PETRY, Eduardo. Patrimônios despercebidos no Centro Leste de Florianópolis: identificação como memória visível. Trabalho de conclusão de curso. Florianópolis, DAU UFSC, 2022.

6
SANTOS, Gilbert de Oliveira. Yoga e a busca do si mesmo: pensamento, prática e ensino. Movimento, v. 26, 2020. p. 1-15.

7
VIRILIO, Paul. O espaço crítico. São Paulo, Editora 34, 1993.

8
BOULLIER, Dominique. Habitele: mobile technologies reshaping urban life. Urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, editorial seção especial, v. 6, n. 1, 2014, p. 13-16 <https://bit.ly/4iGSDKB>.

9
Idem, ibidem.

10
FIRMINO, Rodrigo José. Cidade ampliada: dsenvolvimento urbano e tecnologia da informação e comunicação. São Paulo, ECidade. 2011.

11
Metaverso: tudo sobre o mundo virtual que está chamando a atenção dos investidores. Infomoney, São Paulo, 8 jun. 2022 <https://bit.ly/4fyvXcx>.

12
DARODA, Ferreira Raquel. As novas tecnologias e o espaço público da cidade contemporânea. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, Propar UFRGS, 2012.

13
Enteractive. Electroland <https://bit.ly/4gq5jUh>.

14
Bins and Benches. Greyworld, 15 abr. 2010 <https://bit.ly/4iKXj1Z>.

15
BARKER, Roger. G. Ecological psychology. Stanford, Stanford University Press, 1968.

16
RODRIGUES, Gessica Palhares; PORTO, Cristiane de Magalhães. Realidade virtual: conceitos, evolução, dispositivos e aplicações. Interfaces Científicas-Educação, v. 1, n. 3, 2013, p. 97-109.

17
GONÇALVES, Marly de Menezes. O uso da realidade aumentada no espaço urbano. Anais do Congresso de La Sociedad Iberoamericana de Gráfica Digital, Santa Fé, 2011.

18
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 23-53.

19
PALLASMA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre, Bookman, 2012.

20
SILBERSCHNEIDER, Clara. O uso de fones de ouvido e o novo individualismo. Tese de doutorado. São Paulo, FFLCH USP, 2020 <https://bit.ly/3ZNoPDk>.

21
BULUT, Sefa; NAZIR, Thseen. Phubbing Phenomenon: a wild fire, which invades our social communication and life. Open Journal of Medical Psychology, v. 09, n. 01, 2020, p. 1-6.

22
BEZERRA, Amáli Cristina Alves. Festa e cidade: entrelaçamentos e proximidades. Espaço e Cultura, n. 23, 2008, p. 7-18.

23
DALLABONA-FARINIUK, Tharsila; FIRMINO, Rodrigo. Smartphones, smart spaces? O uso de mídias locativas no espaço urbano em Curitiba, Brasil. Eure, v. 44, n. 133, Santiago, 2018, p. 255-275.

sobre os autores

Jéssica Caroline Rodrigues de Lima é arquiteta e urbanista (UFAL, 2015), mestre em Arquitetura e Urbanismo (Deha PPGAU Ufal, 2019) e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFSC. Publicou Pela porta de serviço: análise espacial das dependências de empregadas dos edifícios de apartamentos nas décadas de 1960-1990 na cidade de Maceió AL (Edufal, 2021).

Indiara Pinto Brezolin é arquiteta e urbanista (Atitus Educação, 2019) e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFSC. Publicou um capítulo no livro Realidade distorcida — Performance no centro leste de Florianópolis (UFSC, 2023).

Christian Cambruzzi da Silva é graduado em Desenho Industrial (UFSM), mestre em Engenharia e Gestão do Conhecimento (UFSC) e doutorando em Design (UFSC). Publicpu o artigo “Realidade aumentada como força poética para a corporeidade” (Pimental Cultural, 2022).

Maíra Longhinotti Felippe é arquiteta e urbanista (UFSC, 2001), mestre em Psicologia (UFSC, 2010), doutora em Tecnologia da Arquitetura (Università degli Studi di Ferrara, 2015) e pós-doutora em Psicologia (UFSC, 2018) e em Arquitetura e Urbanismo (UFSC, 2019). Professora permanente do PósARQ UFSC. Publicou “What Is a Restorative Hospital Environment?” (Children, Youth and Environments, 2017).

Rodrigo Gonçalves dos Santos é arquiteto e urbanista (UFSC, 1999), mestre em Engenharia de Produção — Gestão Integrada do Design (UFSC, 2003) e doutor em Educação (UFSC, 2011). Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFSC e professor permanente do PósArq UFSC. Publicou Perceber o (in)visível: Dimensões sensíveis de um corpo na arquitetura (Appris, 2018).

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291.02 tecnologia e espaço urbano
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