Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O artigo ensaia uma investigação filosófica da prancheta como símbolo das condições físicas de trabalho do arquiteto, base e suporte da representação gráfica, a partir do conceito de mesa de operações.

english
The paper develops a philosophical investigation of the architect´s desk as a symbol of the physical working conditions of the architect, the basis and support of the representation, based on the concept of the operating table.

español
El artículo intenta una investigación filosófica de la mesa para dibujo como símbolo de las condiciones físicas de trabajo del arquitecto, base y soporte de la representación gráfica, a partir del concepto de mesa de operaciones.


how to quote

PAZ, Daniel. Uma filosofia da prancheta. A arquitetura e sua mesa de operações. Arquitextos, São Paulo, ano 24, n. 291.00, Vitruvius, ago. 2024 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/24.291/9018>.

Os itens mais próximos do ser humano foram alvo de investigação filosófica apenas muito recentemente. Se os pré-socráticos buscavam as archai, os princípios do mundo físico (physis), se Parmênides e depois Platão e Aristóteles auscultavam o Ser, se Sócrates iniciou o inquérito sobre o Amor e a Justiça, foi apenas pouco mais de um século atrás que Georg Simmel pensou em uma filosofia do dinheiro, e não deixou de refletir sobre a prostituição, o coquetismo e o dândi. Que Walter Benjamin lançou instigantes teorias sobre o colecionador e o jogador, e Vilém Flusser se perguntou sobre o que havia dentro da máquina fotográfica, na sua interioridade real. Figuras muito mais mundanas, temas prosaicos e mesmo baixos para a reflexão filosófica. Das quais muitas vezes se entreabriam portas insuspeitas para novos ângulos da realidade.

Sem pretender algo dessa envergadura, invocamos esse percurso para justificar a validade da nossa investigação. Partindo da experiência do ensino do projeto, e de representação gráfica, técnica e livre em um curso de Arquitetura e Urbanismo, após alguns anos começamos a nos perguntar a que gênero a prancheta — e seus sucedâneos modernos — pertence e suas implicações pedagógicas. E aqui apresentamos um esboço de uma filosofia da prancheta, tratada como retrato da antigo fazer projetual do arquiteto e como símbolo da modalidade atual, abrangente o suficiente para enquadrá-la em uma estrutura mais ampla, e capaz de dar o suporte intelectual à representação, análogo ao seu suporte físico (1).

A prancheta como mesa de operações

A ideia que apresentamos vem de Georges Didi-Huberman (2), a partir do exemplo das mesas divinatórias, em especial da hepatomancia. Ele reconheceu que “mesas” — superfícies em geral — para certas operações eram tratadas como recortes na continuidade do mundo, recolhendo seus fragmentos e os reordenando (3). Mencionava, sem aprofundar, que a mesa necessitava de um preparo específico, a partir daí formando um novo sistema de qualidades concretas, uma transformação estrutural, com novas e múltiplas relações figurais. Por meio de tal instrumento o adivinho veria não apenas melhor, mas diferente. A intuição é excelente: a mesa (aqui entendida como essa superfície preparada, separada e relativamente autônoma do seu entorno imediato) é uma janela, um microcosmo, que nos permite ver o mundo.

“É uma ‘mesa’ em que se decide colocar juntas algumas coisas díspares, entre as quais se procura estabelecer múltiplas ‘relações íntimas e secretas’, uma área que possui suas próprias regras de disposição e de transformação para ligar certas coisas cujos elos não são evidentes. É para fazer desses elos, uma vez revelados, os paradigmas de uma releitura do mundo” (4).

No entanto, Didi-Huberman não aprofundou as possibilidades do conceito de mesa de operações.

Outra discordância, também fundamental para o que defendemos, é que Didi-Huberman parte da “super-racionalidade” ocidental e se surpreende com a abertura ao caos, ao informe, ao acidental, dos sistemas operatórios primitivos. Ora, mas o processo histórico é o contrário. Tais mesas operatórias são formas de ver (ou impor) ordem ao caos, de encontrar a ordem no mundo físico, nos poderes sobrenaturais, nas forças invisíveis, mesmo no futuro.

Didi-Huberman ilustra a mesa de operações, e o que chama de “campo operatório”, com ritos xamânicos de Taiwan: “basta uma folha de bananeira, uma pedra, algumas pétalas na terra cozida e algumas nozes cortadas […] coloca-se a folha de bananeira sobre o solo, dispõem-se os objetos miúdos, díspares… e é todo um mundo que se reproduz aí” (5). Enfatiza, por um lado, a extrema austeridade e simplicidade dos elementos, e, por outro, a complexidade do sistema elaborado.

Um exemplo mais próximo está no culto afro-brasileiro. Tomemos como exemplo o papel do adivinho, o babalaô (pai do segredo), responsável pelo Culto de Ifá e pelo ritual divinatório ligado a Orumilá, a divindade iorubá da profecia. A descrição de Bastide ilustra bem os conceitos que estamos expondo:

“Tôda casa de babalaô contém, afora os aposentos da habitação, um quarto especial no qual Ifa ou Exú são interrogados. Não é tudo; neste cômodo já consagrado por sua função e muitas vezes pela sua ornamentação, há um lugar que apresenta como que um grau mais alto de santificação, é a mesa sobre a qual são atirados o colar ou os búzios. Pode ser uma pequena bandeja de palha trançada, bem chata, com os bordos ligeiramente revirados, ou então uma grande mesa formando um círculo constituído pelos colares dos deuses (o primeiro, o mais exterior, de Xangô, o segundo de Oxalá, o terceiro de Ogun e o quarto, o mais interior, composto de todas as cores para todos os outros Orixás): o opelê ou os búzios devem cair no interior deste círculo ‘encantado’” (6).

A mesa é o opon-ifá, superfície de madeira rigorosamente preparada, recoberta com um pó próprio, o iyerosun. Das modalidades oraculares, tomemos o caso do jogo de ikins. As sementes do dendê, devidamente selecionadas e preparadas liturgicamente, são a matéria-prima dos ikins que, em número de dezesseis, são lançados no opon-ifá de acordo com regras estritas. Os ikins são interpretados de acordo com configurações particulares, que alcançam o número de 256, e aludem a narrativas paradigmáticas, aos mitos dos deuses, os itan.

Essa sobreposição de estratos, articulados e condensados na mesa de operações, é central. Os búzios são, ao mesmo tempo, um retrato da vida do consulente e do mito sob a qual essa vida deve ser interpretada. Mito, mesa e vida se entrelaçam, cada qual falando sua linguagem particular. Cabe ao adivinho, recorrendo ao conhecimento que possui do mito identificado (e à sua memória), relacioná-lo com o ser humano singular à sua frente. A vida de um indivíduo no tempo mundano espelha, de maneira figurada, o conjunto finito de histórias in illo tempore, no tempo mítico antes do tempo dos homens, e isso se revela no pequeno espaço, delimitado e consagrado, da mesa de operações do babalaô.

Exemplo de opon-ifá, com jogo de ikin
Foto Toluaye, 2008 [Wikimedia Commons]

Pleiteamos a Mesa, com maiúscula, como uma instância fundamental da vida humana, como escala em que historicamente organizou o mundo, entre outras, tal como visto no caso do opon-ifá.

Nas sociedades pautadas por uma cosmovisão religiosa — isto é, todas, antes da Ocidental e daquilo que Max Weber chamou de “desencantamento do mundo” (7), a realidade se estruturava de maneira escalar, em planos que guardavam correspondências em termos de organização e mesmo vínculos simpáticos. Uma era o corpo. Outro era o edifício, na forma do templo e da casa. Outro, o assentamento em que se vivia, da aldeia à cidade. E, por fim, o próprio universo, na sua porção organizada, o cosmos (ao contrário do caos que rondava ao seu redor).

Desse espelhamento entre os níveis, aparece a ideia do corpo ou da casa como microcosmo (ou seja, refletindo a estrutura mais ampla), ou da cidade (ou do Estado ou da sociedade, em teorias modernas), por exemplo, como macroantropos, como homem ampliado, cobrindo um leque abrangente que inclui de Platão a Jean-Jacques Rousseau (8). Um exemplo gráfico está na versão de Thomas Hobbes do Corpo ampliado do Rei, tal como desenhado por Abraham Bosse para o frontispício do Leviathan, da edição de 1651. Hobbes concebe o Estado como composto pela miríade de corpos dos seus cidadãos, com o rei na sua cabeça.

Gravura de Abraham Bosse para o frontispício do Leviathan, de Thomas Hobbes, edição de 1651
Imagem divulgação [Wikimedia Commons]

Tais instâncias espaciais estão esboçadas na obra de Mircea Eliade, e sintetizadas em um livro que resume suas ideias sobre o assunto, O sagrado e o profano (9). Aqui entendemos que é um ordenamento escalar, daquelas instâncias que são quase que inevitáveis na vida humana: do abrigo individual e familiar ao assentamento da comunidade, incluindo, abaixo, o que nos é inescapável, que é o próprio corpo, e a totalidade, que é o cosmo. E somamos mais uma, que passara desapercebida de Eliade: a mesa.

Seria a mesa uma instância a mais entre o corpo, a casa, a cidade e o cosmos. Não por acaso o corpo ampliado do Leviatã hobbesiano se debruça sobre o território onde exerce sua soberania como sobre uma mesa, uma superfície ao alcance dos seus braços. Dentro da cosmovisão sacra, a mesa torna-se um simulacro do mundo exterior, como é um espelho de si mesmo; os planos físicos da realidade se espelham e se comunicam, por simpatia. Acreditamos que ela é ainda mais universal que isso.

Vejamos a mesa de operações, a mesa, como espelho e interface de duas camadas da realidade: o eu, ou o pensamento humano, e o mundo exterior, mais amplo.

A prancheta como extensão do eu

Começamos pelo que parece uma digressão: sobre a relação entre pensamento e representação.

A questão da representação radica em uma pergunta: “nós pensamos com palavras?” A resposta iluminista seria: não… primeiro pensamos, e depois falamos. O que dizemos seria a representação de um pensamento claramente formulado, o mesmo valendo para desenhos etc. Gottfried Von Herder (1755-1803) inverte a premissa: pensamos, de fato, com palavras (10). A linguagem não seria a representação de um pensamento, sua exterioridade, mas sua substância, o que traz consequências importantes. Por exemplo, quanto mais sofisticada for uma língua, mais pensamentos podemos ter, porque os conceitos estão mais refinados, os tempos verbais, as ações etc. Por outro lado, ao pensarmos com palavras, a linguagem de cada povo estabelece os limites do que podemos sentir e conjecturar. Os limites são elásticos, e podem ser expandidos, mas estão dados a priori pelo herdado da cultura.

Podemos desdobrar isso em um âmbito filogenético e outro ontogenético. No filogenético, do ponto de vista cultural e histórico, quanto mais palavras o indivíduo aprende ao longo da vida, mais consegue discernir e conectar fenômenos, sensações etc. E, à medida que a língua vai se tornando mais sofisticada, mais podemos fazê-lo. O alemão se incrementou com o desenvolvimento das artes e filosofia nos séculos 18 e 19, por exemplo, enquanto na França já se havia estruturado mais. O mesmo ocorrera na Grécia Antiga, e papel análogo desempenhara o Alcorão no mundo muçulmano, a partir da exegese corânica. Durante a presença islâmica na península ibérica, o idioma árabe era o da poesia, da cortesia, da retórica, da cultura enfim, e não o proto-espanhol, o ladino, que era uma língua rústica (11). Tudo isso vale para figuras e outras formas de representação. Quanto mais cores temos à mão, quanto mais imagens conhecemos, músicas ouvimos, um espectro maior se abrange para compreender e criar. Pode-se entender aquilo para o qual antes se careciam palavras, tais quais as infinitas variedades do humor: o grotesco, o pastelão, o nonsense (12).

A questão é que o pensamento, ou o que quer que ocorra dentro da caixa craniana, possui uma realidade própria. Sob tal ponto de vista, a resposta à pergunta se pensamos com palavras, é simplesmente “não”: pensamos com “pensamentos”. Nós podemos “imaginar” (e mesmo o termo aqui deve ser posto entre aspas), as palavras (escritas, faladas etc.) a partir dessa matéria plástica e estranha chamada “pensamento”. O mesmo vale para as imagens — pensamos por imagens? Sim e não. Pode-se simular que lidando com imagens, porém não são. Guardadas as proporções, dentro do disco rígido de um computador não existem imagens, mas instruções para gerá-las na tela e na impressão (e mesmo “instruções” é uma metáfora, e não a descrição literal do que ocorre). Há outra coisa que é feita de sua própria matéria, seu próprio código.

Voltando à pergunta: pensamos por palavras ou sem palavras? Pensamos por simulacros de palavras, feitas de pensamento, a mesma matéria-prima das imagens mentais, dos sons mentais etc. Essa matéria instável, fugidia, sempre tremeluz, se transformando em outra coisa, uma linha que se metamorfoseia incessantemente. Essa metáfora ainda é completa. Se pensamos na imagem de algo, ela rapidamente flutua, interrompida por outros pensamentos e sensações, que sequer são de sua pretensa natureza imagética. Na mente várias linhas correm em simultâneo, concorrendo pela primazia da atenção, como correntes de água que se alternam na emersão à superfície, para receber um pouco da luz da consciência. Nessa polifonia (e cacofonia) que é todo instante da vida humana, há o fluxo ininterrupto de sensações, uma buzina na rua, um cheiro estranho, uma comichão na perna, a percepção da fome, a preocupação genérica com algo. Sensação, ruído, preocupação e imagem mental, tudo constituído dessa mesma argila chamada pensamento. Para agravar, as linhas se mesclam, porque tudo que pensamos possui ressonâncias, associações, evocando memórias próximas ou longínquas.

As palavras ajudam nos pensamentos. Esse auxílio ocorre tanto “dentro” como “fora”. Pois uma palavra escrita é um ente “sólido”, estável, manchas num papel. Uma palavra falada, uma espécie de objeto sonoro. Uma imagem, manchas no papel, em tela etc. Pois o pensamento humano tende ao amorfo. Dentro da caixa craniana, sentimentos, palavras, imagens, todas são feitas da mesma “matéria”. Na mente, tudo isso cabe — as chamadas ideias. E a coisa menos precisa do mundo é uma ideia. Ela ganha precisão, ou ao menos uma forma, quando se cristaliza e se expressa em uma forma exterior.

A expressão exterior é uma definição. Infinitamente mais precisa que a ideia matriz, na mente humana. Um desenho tem limites, uma maquete tem bordas, uma frase tem começo e fim; um pensamento, não. Ele pode se agregar em nós, núcleos, gomos, mas não tem início nem término. As formas estáveis servem como pontos de apoio para o fluxo das ideias, e para retomá-las depois, no mesmo dia ou meses, anos até, depois. Um escritor precisa escrever suas ideias: o livro é feito de palavras (13). Nós precisamos que as ideias se cristalizem fora da caixa craniana, sob a forma de tais representações para o próprio pensamento transcorrer melhor.

O sujeito que pensa puros pensamentos jamais existiu. Esta exposição em texto — a exteriorização dos pensamentos do autor — auxilia o pensamento, e o obriga, por força da natureza linear do texto, a ter alguma sucessão lógica, e o ato de fazê-lo esclarece ao autor das ideias e escritor do texto sobre seu conteúdo (14). Cada modalidade de expressão tem virtudes próprias. Um desenho preciso estabelece uma simulação geométrica, que o pensamento é quase sempre incapaz de fazer. Um texto ou um pronunciamento obrigam à sucessão das ideias, que na mente humana tendem ao simultâneo e ao confuso.

Tomemos um exemplo da ficção. O gato Murr, personagem do escritor E.T.A. Hoffmann, era um felino singular: ele sabia ler e escrever. Denunciava-se justamente por aparecer insolitamente escrevendo seus poemas e diário. O uso da pena, papel e da mesa — da linguagem escrita, seus instrumentos e suporte —, como expressão e dinamizador do raciocínio e memória, eram a marca da inteligência humana em um gato, e recorrentes nas ilustrações desse personagem.

Desenho do Rei Ferdinando de Portugal do gato Murr, de 1859
Imagem divulgação [Wikimedia Commons]

Tratamos a linguagem, em suas várias formas, como uma técnica e uma ferramenta (15). Em sentido contrário, as ferramentas (sequer as materiais, o que dizer a linguagem) não são coisas exteriores apenas (16). Toda nova tecnologia, em especial as comunicacionais, são extensões ou próteses, e acabam por reorganizar a totalidade do organismo humano. As linguagens têm um impacto nas capacidades, individuais e coletivas. Incluindo as gráficas. Incluindo a prancheta.

Mas o processo projetual traz ainda uma exigência singular, e que vai aparentemente a contrapelo da necessidade de formas estáveis e claras para o pensamento. O arquiteto maduro não concebe separadamente em planta, corte etc., mas em simultâneo, arranjando-os e adaptando-os conforme equaciona problemas. O aluno ainda pensa segmentado, em uma faceta, escala etc., por vez. Assim, pensa-se numa vaga sensação, pensa-se numa ideia geral, isso vem carregado em aluvião de sentimentos, de associações. Imagina-se um corte esquemático, e já aparecem alguns dos materiais, tudo isso simultaneamente. Não se limitam sequer a imagens mentais, confundindo-se e transmutando-se em outras modalidades de pensamento. Esse simulacro só ganha uma feição própria e estável quando se expressa fora da caixa que é nossa mente. Exige diagramas, esboços, anotações, maquetes de materiais simples, em graus de complexidade crescente. No entanto, a diferença é apenas de velocidade, e não no gênero da atividade. Esse tipo de notação gráfica (17) ainda é a exteriorização do processo mental, e a habilidade do praticante é o responsável pela velocidade com que tais elementos são empregados: o desprendimento nas notações, seu grau de síntese e no quanto estas evocam novas possibilidades (18).

De certa maneira, a nossa consciência não está fechada na caixa craniana, mas é uma relação dinâmica com sua envoltória mais imediata, na forma de palavras, de coisas, de imagens, de sons. Nós precisamos fazê-lo. Um arquiteto precisa riscar não para dar vazão às suas ideias, mas para pensar… Para conceber coisas, porque somente o pensamento internalizado não consegue Da mesma maneira, se se quer fazer um discurso, é preciso escrevê-lo para visualizar sua ordem. É preciso recitá-lo, para averiguar as cacofonias. Um texto precisa ser escrito e reescrito para chegar a uma forma ótima. Se o pensamento ocorre fisicamente dentro da caixa craniana, ele necessita o mundo ao seu redor como prótese mais imediata, como necessita seus braços. As linguagens são uma extensão, pela qual transformamos nosso entorno em partícipes de de nossos pensamentos. No caso das palavras faladas e da música, o ar ao redor se torna a extensão. No caso de uma maquete, a sua matéria se torna a extensão. No caso de um desenho, o que está sendo riscado é o suporte, mnemônico mas também intelectivo: as carteiras/ mesas das escolas são provas disso.

A prancheta, antes de ser uma mesa de operações, é uma das modalidades de extensão do Eu e de seus processos mentais.

A prancheta como simulacro do mundo

Trabalhamos sobre superfícies: ao alcance dos olhos — o campo de visão mais imediato –, e ao alcance dos braços. Isto não é acidental. É um pequeno espaço, recortado e ordenado, segundo regras pessoais, na mecânica de trabalho própria. Ocorre em um gabinete, uma escrivaninha, quando vamos trabalhar em uma superfície qualquer. Ou mesmo, como vimos, no chão.

Essa mesa de operações pode ser focada em realizações específicas, físicas e tangíveis, como a costura, a manufatura de algum produto. É a alteração direta da realidade, aos poucos, modesta, uma coisa por vez. A exemplo de uma mesa de costuras, ou na bancada de um chaveiro ou sapateiro. Na pintura de David Ryckaert III sobre os sapateiros, vemos o que se repetia em tantas oficinas e ateliês: as mesas, dos mais variados tamanhos, para o trabalho manual, em especial aquele mais elaborado, que exigia a precisão, o ajuste fino das partes, a ação delicada das mãos, o olhar próximo.

David Ryckaert III, Um atelier de sapateiro (De schoenmakerswerkplaats). Pintura a óleo, c.1650)
Imagem divulgação [Rijksmuseum]

Mas nem tudo é o que é. O ser humano tem uma irrefreável tendência a interpretar as coisas como sendo mais do que elas são. E sequer é algo simbólico, no sentido de ser um ato da imaginação prescindível. Aqui as coisas se confundem — o que é inerente ao fenômeno, acreditamos.

Mesmo nos exemplos anteriores lidamos com simulacros da realidade. Numa mesa de costura, existem moldes e medidas de corpos humanos, esquemáticos. Um sapateiro faz seu serviço igualmente baseado em medidas em escala 1/1, quando não em moldes que extraem do pé real as informações essenciais para seu serviço. A eficiência de sua operação reside em boa medida no grau em que encaixa a realidade exterior à mesa; e para isso as informações essenciais à sua operação precisam estar bem ajustadas.

O simulacro do mundo exterior pode ser uma mera inspiração para uma dinâmica interna, tal qual em jogos. Certos jogos de tabuleiro são análogos ao mundo — como o Banco Imobiliário (Monopoly no original). Outros são mais abstraídos, como o xadrez que, de entrada, reproduzia o confronto entre dois reinos, com suas figuras de autoridade e recursos militares; talvez por isso fosse o jogo dos reis, dos potentados orientais e dos nobres europeus, como se revela em sucessivas imagens antigas. Embora, de fato, tenha uma profunda imbricação com a ideia do Cosmos, dada sua base, o próprio tabuleiro, composto na malha tradicional de 8x8, tal como os templos hindus, tal como apontado por Titus Burckhardt (19).

Ilustração do Codex Manesse, datado entre 1305 e 1340, mostrando o Rei Otto IV de Brandenburgo jogando xadrez com uma dama desconhecida
Imagem divulgação [Wikimedia Commons]

Os jogos de tabuleiro mostram claramente que a mesa de operações não é necessariamente um simulacro exclusivo: pode ser compartilhada, a exemplo dos ritos divinatórios supracitados, onde os membros podem desempenhar a mesma função ou papéis diferentes.

Ainda assim podemos pensar que, desprezados os elementos figurativos que evocam o mundo exterior, a lógica interna de alguns destes exemplos permite sua total autonomia. O jogo tem suas regras circunscritas àquele domínio (20). Na Bauhaus, por exemplo, Josef Hartwig em 1923 ensaiou eliminar a iconografia das peças, de reminiscência medieval (adaptação do mundo hindu), e apenas refletir formalmente os atributos de movimentação espacial de cada tipo de peça.

Mas a mesa como simulacro do mundo pode ganhar ressonâncias mais profundas.

Onde se assume com mais clareza a mesa como espelho da realidade, ela é como um visor, que captura e reduz algum setor da realidade ao fundamental para sua operação, no campo de visão e alcance das mãos.

A leitura da realidade pode se dar por vínculos mágicos, como ocorre com o astrólogo, que cruza informações distintas e esquemáticas, da carta celeste e da vida do consulente. Ou, na leitura dos búzios, pela articulação entre a vida do consulente e a posição dos ikins, que, por sua vez, remete às histórias paradigmáticas que são matriz para interpretação daquela vida. Na hepatomancia, o fígado do animal espelha o céu e suas regiões, e este, o nosso destino, numa malha intrincada de conexões, que coere todo o Universo; a chamada Doutrina das Correspondências. Note-se como estratos e planos distintos e distantes da realidade são comprimidos para caberem na mesa de operações.

Tomemos a figura do astrólogo, no alvorecer da Era Moderna. Johannes Kepler, por exemplo, tinha um modelo que se tornou famoso, onde vincula a posição dos planetas no sistema solar com os sólidos platônicos. É uma “maquete” do sistema solar, estruturado a partir do que seriam sólidos virtuais. Se este modelo e a esfera armilar eram maquete dos céus, os mapas astrais são suas plantas baixas” onde a geometria — a Geometria Sagrada — era fundamental.

À esquerda, modelo de Johannes Kepler, publicado em seu Mysterium Cosmographicum, 1596
Imagem divulgação [Wikimedia Commons]

Mas também o simulacro pode lidar com vínculos mais fiéis, como ocorre com a leitura de uma carta náutica ou um levantamento topográfico, ou ao menos cujo processo analógico não implica numa correspondência: ou seja, a representação não implica em participação, como se entendia no Ocidente antes da Era Moderna.

As ilustrações dos primeiros tratados de perspectiva são interessantes nesse aspecto, exibindo os pioneiros artefatos criados para capturar a estrutura geométrica projetiva por trás da visão humana, e fazer a perspectiva artificialis — isto é, emular a profundidade real em uma superfície. Vemos, em desenho de Jean Dubreuil, como há uma representação por meio de um plano projetante, que intercepta a imagem (outros desenhos de outros tratados mostram os raios projetantes) (21). Há uma redução física do que será o desenho (como o visor quadriculado realiza, interceptando a imagem numa parte reduzida do cone visual). Veja-se que há uma rotação para a superfície, feita pelo próprio artista a partir de sua interpretação (poderia ser uma rotação física, como ocorria em outros artefatos).

Extraído da segunda edição de La perspective pratique, de Jean Dubreuil (1679)
Imagem divulgação

Isso leva ao passo seguinte, que é agir de maneira prospectiva, simulando como seria agir no mundo externo. Como nos cenários de guerra, com movimentação de tropas, recursos etc. O plano de ação possui duas instâncias — a mais óbvia é a do tempo. Da antevisão, e do preparo do indivíduo, física e mentalmente, para o futuro. Mas o termo “plano” trai sua dimensão física em seu próprio nome — a da mesa. De ser algo disposto sobre a mesa para ser pensado. O mundo futuro é reduzido, esquematizado, tornado presente e disposto sobre uma mesa.

A mesa de operações pode implicar em uma operação de fato, uma modificação da realidade exterior, próxima ou distante, por meio de cadeias de transmissão. Estas podem ser mágicas, como num feitiço, ou concretas, como ocorre num painel de controle, de uma máquina qualquer, de um avião ou um automóvel.

A figura U.S. Army Teaches a Trade (G.I. Telegrapher) mostra os primórdios da telemática, onde o aparelho apenas comunicava informações, extremamente rudimentares para o padrão do hoje. A automação cada vez mais permite que máquinas se comuniquem para máquinas; que computadores transmitam dados para operações concretos para máquinas CNC (comando numérico computadorizado). Em um grau mais doméstico, que um computador envie dados para uma impressora.

E o que é a prancheta? É uma mesa de operações em que um simulacro de um pedaço do mundo recortado — o lote, a quadra, a área urbana específica etc. — serve como base para o planejamento de ações futuras, envolvendo em geral a transformação do meio (movimentação de terra, pavimentação, construção, entre outros). Falamos em geral porque existem outras situações. Como, na conservação e restauração, o mapa de danos e um projeto de intervenção, que incluem estabilizações, reparos, e toda sorte de ações sobre matéria já construída.

Voltando ao exemplo dos croquis, nos momentos de elaboração, o papel é algo em aberto: cada pedaço dele será uma janela virtual para recortes, escalas e aspectos diferentes, e elaborado pelas notações gráficas. Pode soar caótico para o observador externo, mas são visores improvisados para a realidade atual e prospectada, vide os croquis de Carlo Scarpa. As peças gráficas técnicas se caracterizam por ser simulacros mais ordenados, com informações precisas da escala, da área recortada e seu local, e do aspecto estudado.

O projeto arquitetônico é, ao menos tradicionalmente, pauta e partitura de uma construção, onde se tenta prever questões de implantação, ventilação, insolejamento, movimentação de terra etc., isto é, todas as variáveis que podem interferir no ambiente construído e no processo de sua realização. A depender do perfil de projeto — da sua escala, da sua etapa, do seu tipo específico — variáveis são eliminadas ou atenuadas, outras são incluídas ou hipertrofiadas. A prancheta tradicional, portanto, se situaria nesta instância. No entanto, as novas tecnologias computacionais mudaram seu estatuto também neste âmbito.

Atualmente, o desktop de um computador é uma mesa de operações que atua em vários níveis. Podemos apenas manejar símbolos presentes — como estas letras. Podemos produzi-las concretamente — por meio da impressão, e, hoje em dia, através da prototipagem digital. Podemos montar cenários hipotéticos. Realizar planos para ações futuras. Efetuar ações presentes, em tempo real, e à distância, com o aumento da eficiência da transmissão de informações, inclusive informações operativas. O desktop é uma mesa mágica — o computador, o tablet — sobre outra mesa (o escritório etc.).

A mesa de operações requer análogos do mundo representado, seja por meio de substitutos metonímicos, seja por figuras com alguma similaridade, ainda que esquemática. Como mundo em miniatura, a mesa de operações opera com aspectos do mundo exterior, amplo e vasto, por meio de uma transposição particular: a redução.

A redução é tanto física quanto simbólica, já que diminui o assombroso número de variáveis do mundo real para umas poucas, capaz de serem manuseadas no pequeno espaço da mesa.

Conclusão

O feito é corriqueiro: sentarmos na prancheta (mesa, computador etc.) e desenharmos o mundo. Para algo ainda mais rápido e comum, que é sentarmos em qualquer lugar, a mesa de um café, e planejarmos nossas ações para os dias imediatos, sozinhos ou em uma ligeira reunião. Para interpretar o mundo, mas para transformá-lo. É na mesa onde o homem se senta para literalmente tabular o mundo: para organizar seus materiais, para começar sua ação/ transformação, seja simbólica (textos, desenhos, planos), seja material (costura, cirurgia etc.). É feito corriqueiro, mas ao mesmo tempo miraculoso.

O fundamento disso está naquilo que Susanne K. Langer apontara como a novidade radical do ser humano: o uso dos símbolos para representar ideias. Como ele faz isso para representar para si o que não está presente, temos que a

“maior mudança operada pela linguagem é o alargado campo de percepção (awareness) dos sêres dotados de fala. A percepção de um animal é sempre de coisas do seu próprio ambiente e de sua própria vida. Ao passo que, na consciência humana, a situação presente, real, constitui amiúde a menor parte” (22).

Num primeiro momento, a mesa de operações seria a representação de coisas, do mundo exterior. Mas, se lembrarmos da primeira seção deste artigo, seria também o contrário. Pois os símbolos — coisas ou figuras, tangíveis ou mentais — são maneiras de cristalizar o pensamento, de dar-lhe alguma estabilidade, fora e dentro da caixa craniana. A menta humana processa símbolos, que indicam ideias mais complexas, como a mão humana maneja símbolos, que indicam coisas mais complexas. A mesa de operações é a maneira de organizar tal alargamento do campo de percepção, disciplinar-lhe, para assim proceder de maneira mais eficiente.

A descoberta do esquema simbólico permitiu que o símio visse a possibilidade de compreender o mundo e intervir nele, seja por laços simpáticos (e, portanto, inexistentes), seja por processos efetivos, mecânicos. É uma maneira de racionalizar o mundo exterior e conseguir lidar com ele, objetificando-o, trazendo-o a sua escala — no espaço da mesa de operações. Essa racionalização apela para a redução: reduz-se o mundo em sua complexidade, inabarcável, do ponto de vista cognitivo e operativo, isolando apenas os elementos relevantes para aquela operação. Precisamos da projeção de nossos processos mentais e sua fungibilidade, como peças e conceitos, para manusear com as mãos: é mais fácil planejar desenhando, escrevendo ou mexendo com sólidos do que o realizando de modo puramente mental.

A mesa de operações, portanto, é uma mesa e é de operações.

Como uma mesa, é uma superfície, dentro dos limites do campo visual e do alcance das mãos. Não pode ser muito grande. Quando lidamos com algo maior — como um painel, um mural, uma tapeçaria –, quase que de imediato criamos um simulacro, uma outra mesa de operações, como um croqui numa escala menor.

E, sendo de operações, pode ser o suporte para ações imediatas, isoladas do que há ao redor, ou como intermediário de algo maior, um dispositivo que por simulacros permite compreender e mesmo interferir em outra escala. Geralmente superior, mas também em escala inferior, se lembrarmos de procedimentos microscópicos, como mais e mais se faz por meio da nanotecnologia. Nessa mesa se opera, dentro de seus limites e fora, por laços mágicos ou pela modelagem de informações em cadeias de transmissão de comandos. Ou, de maneira mais prosaica, planejamos o que vamos fazer.

A prancheta é uma extensão do Eu e, ao mesmo tempo, uma mesa de operações. Tradicionalmente como visor, e cada vez mais como painel de controle.

Pois a prancheta, a mesa de operações antes tão vinculada à Arquitetura, é algo desconhecido dos alunos das últimas turmas de formandos. As mesas generosas de escrivaninhas também parecem estar em ocaso para essas mesmas gerações. A mesa de operações, como instância espacial fundamental do ser humanos, terá uma sobrevida maior?

Atualmente o computador nos apresenta formas novas, e mais eficazes em termos de operações, dessa mesa. E novas tecnologias em veloz desenvolvimento, como a interface sem toque (touchless interface), o reconhecimento de gestos e rastreio de dedos, podem modificar radicalmente a noção de uma superfície física, e se tornar um volume aéreo, com comandos e instrumentos virtuais (23).

Mas ainda com a tônica do mundo reduzido, simplificado, ao alcance de nossas mãos.

notas

1
Trata-se aqui de mesclar elementos da teoria da linguagem como expressão, originada no Romantismo germânico e com implicações importantes no século 20, com a mesa de operações de Georges Didi-Huberman e das escalas da realidade tal como apresentada por Mircea Eliade. Mas há uma outra maneira entender o empreendimento: como uma maneira de encontrar os paradigmas da atividade projetual na prancheta, no sentido do termo empregado por Platão, como no diálogo O Sofista.

2
DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas, ou, O gaio saber inquieto. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2018.

3
Aqui relaciona com a obra de Stefan Czarnowski e a ideia do templum como um despedaçamento da extensão espacial, um recorte e reconfiguração. CZARNOWSKI, Stefan. La partición de la extensión y su delimitación en la religión y la magia/ la cultura religiosa de los campesinos polacos. Cali, Archivos del Índice, 2008.

4
DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit., p. 60.

5
Idem, ibidem, p. 60.

6
BASTIDE, Roger [1958]. Candomblé da Bahia (Rito Nagô). São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1961, p. 151. Estamos tomando a descrição de Roger Bastide somente para fins de exemplo. Apesar de ser um clássico na literatura do gênero, a variedade dos ritos e seus pormenores — de acordo com os cultos, as linhagens de sacerdotes e casas, das regiões em que ocorre o culto (no Brasil, nas Américas e na África, o continente de origem) —, fora a inevitável falta de familiaridade de um antropólogo europeu diante de uma religião iniciática e de mistérios, impede de ser uma descrição fidedigna e definitiva.

7
Die Entzauberung der Welt, que seria literalmente a “des-magicização” do mundo. Termo cunhado, ou popularizado, por Max Weber, levou a uma vertente de interpretação da modernidade, a exemplo da obra de Theodor Adorno ou de Keith Thomas. Weber apresenta uma versão sociológica de um lugar-comum anterior, presente já em Friedrich Schiller e mesmo antes. No entanto, a compreensão usual dessa expressão é equivocada, como demonstra Jason A. Josephson-Storm, negada de entrada por dados empíricos sociológicos, assim como pelas cada vez mais documentadas raízes, ou fundamentos, mágicos, míticos e religiosos, da sociedade e Ciência modernas. Talvez o que possamos afirmar é que houve o desencantamento de uma parcela da esfera pública, daquilo que é lícito afirmar para ser levado a sério, em especial nos meios acadêmicos, técnicos e científicos, a despeito das crenças de seus partícipes. Pode-se acreditar em sortilégios, espíritos, astrologia, anjos e deuses, como a granel ocorre na Universidade; apenas não podem ser invocados publicamente em auxílio ou como fontes legítimas do debate científico. Por isso apelamos para o caráter mágico anterior, e a interpretação possível atual, da mesa de operações. JOSEPHSON-STORM, Jason A. The Myth of Disenchantment: magic, modernity, and the birth of the human sciences. Chicago/London, The University of Chicago Press, 2017.

8
Exemplos da casa como corpo ou ainda como cosmo em miniatura está na obra de Enrico Guidoni, Primitive Architecture. Trabalho clássico sobre a casa como microcosmo é o da “casa cabila”, feito por Pierre Bourdieu, em artigo intitulado “A casa ou o mundo invertido. Um excelente inventário das analogias de comunidades humanas como corpos ampliados, metafóricos ou mesmo efetivos, a partir do direito medieval, está no clássico de Ernst H. Kantorowicz, The King´s Two Bodies: a study in medieveal political theology. GUIDONI, Enrico. Primitive Architecture. Milan/New York, Electra Editrice/Rizzoli International Publications, 1987; BOURDIEU, Pierre. A casa ou o mundo invertido. In O senso prático. Petrópolis, Vozes, 2009, p. 437-462; KANTOROWICZ, Ernst H. The King´s Two Bodies: a study in medieveal political theology. Princeton, Princeton University Press, 1957.

9
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Lisboa, Livros do Brasil, s/d. Eliade Reconhece que o homem religioso precisa sentir-se vivendo em um mundo ordenado, reflexo da ordem cósmica. E que o ato de fundar seu habitat, de sua casa a sua aldeia, repetia ritualmente a cosmogonia. Salientou o simbolismo do centro, que incluía não apenas o centro vivido como um símile do centro cósmico, participando dele, mas também o eixo vertical que unia os planos da realidade, o axis mundi. E, com isso escreveu páginas sobre a constituição do templo, da casa e da aldeia/ cidade como âmbitos sagrados, como tais ilhas de ordem, partes do cosmos.

10
Esta reflexão aparece mais claramente no seu Fragmentos sobre literatura alemã recente (1767-1768). Esse insight de Herder inaugura uma rica tradição da filosofia da linguagem — Johann Georg Hamann, Friedrich Schleiermacher, Wilhelm von Humboldt, até mais recentemente Ludwig Wittgenstein, Eugen Roesenstock, Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf, ou, de modo ainda mais tardio, Vilém Flusser. Herder trata a linguagem como um condicionante do pensamento; haverá outros, depois, que ao tratarão como um determinante. Esta investigação parte desse insight. HERDER, Johann Gottfried von. Philosophical Writings. Cambridge, Cambridge University Press, 2004; FORSTER, Michael N. After Herder: philosophy of lenguage in the german tradition. Oxford, Oxford University Press, 2010; FORSTER, Michael N. German Philosophy of Lenguage: from Schlegel to Hegel and beyond. Oxford, Oxford University Press, 2011

11
Ver MENOCAL, Maria Rosa. O ornamento do mundo: um retrato da vibrante civilização da Espanha medieval. Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 2004.

12
Historiograficamente, Lucien Febvre opera com essa ideia, sob o nome “equipamento/ utensilagem mental”. As palavras denunciavam o quadro mental de um período, ao passo que lhes delineava os limites. Sem percebê-lo, estava seguindo as trilhas da filosofia da linguagem germânica, e da linguagem como expressão. FEBVRE, Lucien. A religião de rabelais: o problema da incredulidade no século 16. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.

13
Como na anedota em que Stephan Mallarmé recrimina a Edgar Degas, seu amigo. Diante da presunção do pintor de que seria um bom poeta por ter muitas ideias, teria respondido Mallarmé que um poema não é feito de ideias, mas de palavras.

14
Podemos ainda acrescentar o prazo. O limite do tempo obriga a encerrar um fluxo de ideias e dar-lhe essa forma exterior, por imaturo que esteja. O contrário seria uma obra aberta, em contínua mudança, um êmulo do pensamento. No famoso conto de Honoré de Balzac, A obra-prima ignorada, um pintor excepcional possui um quadro, que seria sua obra-prima, na qual vinha trabalhando há anos, retocando-o sem cessar. Ao final, se descobre que o quadro, “cores confusamente amontoadas e contidas por uma profusão de linhas esquisitas formando uma muralha de pintura”. BALZAC, Honoré. A obra-prima ignorada, seguido de Um episódio durante o Terror. Porto Alegre, R&PM, 2012, p. 34).

15
Posição já explicitamente defendida por Oswald Spengler e não tão óbvia naquele momento, que enfatizava ser fundamental para o esforço coletivo do ser humano. SPENGLER, Oswald. O homem e a técnica — uma contribuição à filosofia da vida. Porto Alegre, Edições Meridiano, 1941.

16
Como apontara MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo, Cultrix, 1982.

17
Para usar o conceito desenvolvido por BARKI, José. O risco e a invenção: um estudo sobre as notações gráficas de concepção de projeto. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, PPGAU FAU UFRJ, 2003.

18
Algo disso se confirmou por estudos em neurociência: em 2000, dentro do projeto Sciart, comparou-se a atividade cerebral de um pintor profissional, Humphrey Ocean, com a de um pintor amador no ato de copiar um retrato. Os registros de ressonância magnética mostraram que o profissional acedia largamente à memória, com intensa atividade nas áreas cerebrais que correspondem às funções de associação, enquanto o amador tinha maior atividade no córtex visual. Ambos olhavam a mesma pintura: o pintor amador via o que via, enquanto Ocean olhava para, ou por, aquilo que ele já conhecia e associava. Quanto mais sabemos, mais vemos, por assim dizer. Ou mais rica a cena vista se nos aparece. E isso vale para os croquis ou os rudimentos de uma maquete de papel: eles sugerem mais à medida em que quem observa é mais experimente, e enxerga mais com menos, seja ele o autor dos ensaios, seja o professor diante do trabalho de um aluno. ONIANS, John. Neuroarthistory: from Aristotle and Pliny to Baxandall and Zeki. New Haven/London, Yale University Press, 2007, p. 166.

19
BURCKHARDT, Titus. Foundations of Oriental Art & Symbolism. Bloomington, World Wisdom Inc., 2009.

20
Johan Huizinga, no seu clássico Homo Ludens, alude a essa característica humana. Embora sob o enfoque do lúdico, ele assinala repetidamente esse fenômeno, da área delimitada para interação sob regras próprias e exclusivas. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo, Perspectiva, 1993.

21
DUBREUIL, Jean. Le Perspective Pratique. Trousieme et derniere partie. 2ª edição. Paris, Chez Antoine Dezallier, rue Sainte Jacques, à la Couronne d´or, 1679.

22
LANGER, Susanne K. Ensaios filosóficos. São Paulo, Cultrix, 1971, p. 105.

23
Isso já tem aparecido em filmes e animações de ficção científica. Talvez o pioneiro e mais popular do gênero seja o Minority Report (2002), dirigido por Steven Spielberg.

sobre o autor

Daniel Paz é doutor em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (2020) e professor adjunto na mesma universidade.

comments

291.00 processo projetual
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

291

291.01 revisão historiográfica

Arquitetura para além da visualidade

A tradução da materialidade na reprodução e circulação de seus objetos

Bruna Canepa

291.02 tecnologia e espaço urbano

Realidade distorcida

Uma performance no Centro Leste de Florianópolis

Jéssica Caroline Rodrigues de Lima, Indiara Pinto Brezolin, Christian Cambruzzi da Silva, Maíra Longhinotti Felippe and Rodrigo Gonçalves dos Santos

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided