“Winckelmann foi quem primeiro alertou-nos sobre a necessidade de distinguir entre as várias épocas e rastrear a história dos estilos em seu crescimento gradual e em sua decadência. Todo genuíno amante da arte reconhece a justiça e a importância desta demanda” (1).
“Toda grande época deixou-nos seu estilo arquitetônico. Por que não deveríamos nós empreender a descoberta de um estilo próprio de nosso tempo?” (2).
Reyner Banham (3) (1922-1988) sugeriu que a arquitetura moderna, ou Estilo Internacional como o autor preferia, fosse produto da busca por um estilo da modernidade. Por mais que essa proposição soe descabida para alguns, pelo menos a teoria que se desenvolveu na Alemanha desde o neoclássico, por volta de 1800 até meados do século 20, portava a estampa dessa busca; desde Schinkel (1781-1841) até personalidades como Walter Gropius (1883-1969) (4) e Giedion (1888-1968) (5).
A ascensão da Alemanha ao primeiro plano da cultura europeia, nas ciências, nas artes e no pensamento, desde o reinado de Frederico, o grande (1712-1786) na Prússia, foi um notável acontecimento que deslocou a supremacia francesa. Esta se fez sentir também na face teórica e prática da arquitetura cuja força institucional propulsora foi a Bauakademie de Berlim, fundada por David Gilly (1748-1808) e Friedrich Gilly (1772-1800) em 1799, ambos arquitetos imbuídos do espírito neoclássico que predominava na Prússia dessa época. Durante pelo menos toda a primeira metade do século 19, a Bauakademie continuaria como o centro da produção teórica, além de projetual. O mais brilhante arquiteto desse período, tanto como praticante como teórico foi Karl Friedrich Schinkel, o qual manifestava a necessidade de que se criasse um estilo da modernidade, sendo isto menos um temor de que não houvesse estilo, o que já lhe seria um fato, do que se este se houvesse tornado uma impossibilidade; o temor que lhe pesava era de que a arquitetura não teria mais por que ocupar um lugar entre as belas artes (6). Essa manifestação do grande arquiteto deu ensejo a que o tema fosse objeto de indagação durante todo aquele século na Alemanha, com a publicação inaugural, em 1828, de Em que estilo deveríamos construir, do arquiteto Heinrich Hübsch (1888-1968), publicação que se seguiu de longas discussões (7).
É necessário também dar-se conta do que ocorreu quando o célebre connaisseur das artes e literato Johann Joachim Winckelmann (1717-1768), introduziu um helenismo muito peculiar naquele país, o qual se desenvolveria no século 19 com o linguista Wilhelm von Humboldt (1767-1835) entre outros, como o espelho em que as mais nobres aspirações à unidade nacional alemã miravam-se. Outro aspecto a considerar é que durante toda a primeira metade do século 19, na nação alemã, os debates e discussões sobre o estilo da modernidade estiveram tingidos de nacionalismo. Daí que as proposições do grego, do romanesco e do gótico como supostas fontes do estilo da modernidade viessem justificadas por supostas origens nacionais dos estilos. Por outro lado, esses três estilos eram como que uma barreira ao avanço do ecletismo por obra dos endinheirados.
Esta breve introdução visa situar a teoria da tectônica de Bötticher (1806-1899), o primeiro arquiteto a usar este conceito na modernidade em obra de 1846 (8), escrita como um longo discurso para uma solenidade de homenagem a Schinkel, falecido em 1841 e a quem tanto devia. Entre outras coisas, segundo Hermann (9), essa obra foi uma das primeiras ocasiões em que o emprego do ferro na construção, nas condições da revolução industrial, foi introduzido a um público amplo naquele país. O texto era representativo do período entre os anos de 1843 e 1852, quando preparava a publicação de A tectônica dos helenos em quatro volumes. Esta obra teria ainda duas outras versões (1872-1874 e 1881) diferentes entre si na apresentação dos conceitos, na linguagem e na relação com o público. Em 1995, Frampton (10) com a publicação de um livro muito respeitável, trouxe à baila o termo e o conceito que andavam um tanto esquecidos, oferecendo-nos inclusive uma instrutiva etimologia.
Assim situado o autor e a obra, vamos ao texto de Bötticher, o único de que dispomos em uma língua a nós accessível. Esse texto se dispõe de início a interrogações e respostas frontais: qual é o propósito da história? Conhecer os estilos do passado! E o que, afinal, constitui o estilo? O princípio estrutural e a condição material em que se baseia! Mas a história trazia a estampa do anterior e do posterior, assim, para a apreciação moderna, os estilos helênico e medieval seriam opostos ou complementares? Eram opostos e complementares, isto é, dois estágios da história que tiveram que esgotar seu tempo antes que um terceiro estilo pudesse nascer, o qual não rejeitaria os precedentes, mas basearia suas realizações naqueles dois para ocupar o terceiro estágio de desenvolvimento a surgir como uma inevitabilidade histórica! Bötticher esperava uma síntese da qual nasceria o estilo da modernidade, mas como ela se daria? Pelo princípio de um novo material! Então, enquanto este último não surgisse, dever-se-ia confiar no entendimento dos estilos do passado, e não os usar como fim, e sim como a tradição com a qual satisfazer as necessidades do presente: “Este seria um verdadeiro ecletismo […] pois a natureza conduz cada coisa a sua meta suprema e definitiva […]. Um falso ecletismo seria unificar os extremos com base no que é a negação das qualidades invioláveis de cada um; seria a arbitrariedade em vez da lei” (11). Repare-se que na fórmula de Bötticher, ser o negador ou o negado é uma questão de posição relativa na série, e a teleologia natural que apresentava parecia mais derivar de sistemas panteístas do que de uma filosofia natural propriamente.
A história, nos dizia, já havia visto essas composições de mau ecletismo várias vezes. Assim como no ecletismo de seu tempo, muitas práticas do passado ignoravam que “a origem de cada estilo específico se apoia sobre a causalidade de um novo princípio estrutural derivado de um material, que somente ele conduz a um novo sistema capaz de cobrir espaços e assim produzir um novo mundo de formas artísticas” (12). A saída, por enquanto, seria ou separar os estilos e em seguida chegar a uma síntese para a qual ainda houvesse, eventualmente, oportunidade; ou adotar um novo princípio estrutural e um novo material, quando isso se tornasse possível.
Bötticher se perguntava então:
“Como nasce um novo estilo e como ele se define em termos de princípio? […] A essência de um estilo particular é indicada pelo sistema com que a cobertura de espaços é articulada em partes ou unidades estruturais. Pois a forma possível de um espaço enclausurado depende da forma possível da cobertura e, tanto o plano geral e seu layout particular dependem da organização desta. Em todos os estilos a cobertura é o fator determinante da posição e da configuração dos suportes estruturais, bem como do arranjo e da articulação dos muros envolventes e, finalmente, das formas artísticas de todas as partes relacionadas. Assim, a cobertura revela o princípio estrutural de cada estilo e constitui o critério com o qual julgá-lo” (13).
O material liberaria a força estrutural que lhe é própria para a estrutura quando recebesse a forma adequada. Essa força dependeria da estrutura microscópica do material, atômica, molecular etc. Mas as forças não são iguais em todos os materiais, esses pedem formas diversas para os membros estruturais. As abóbodas comandam forças de compressão, já o sistema trilítico grego comanda vigas de pedra à flexão com vãos necessariamente curtos. Bötticher propunha, então, uma estética da arquitetura na qual se mostrava a criação de sistemas estruturais que se tornaria, mais tarde, corriqueira na projetação arquitetônica:
“O domínio estrutural do material está na raiz de toda arquitetura. Por isso ela tem uma vantagem sobre a escultura e a pintura e é investida de um grau superior de independência prática frente às outras duas artes. Enquanto a arquitetura deve antes de tudo sair-se vitoriosa na luta com o material e, sem um modelo como guia, estabelecer um sistema espacial antes que possa convocar a escultura e a pintura para embelezá-lo com suas formas artísticas; a escultura e a pintura representam ideias por usar analogias familiares tomadas ao mundo exterior” (14).
Essas posições de conceito pretendiam, enfim, sustentar uma teoria do estilo e, com isso, do estilo da modernidade. Consequentemente, cada geração que criara um novo estilo, sem um modelo ou imagem como guia, tivera que começar do começo, com o processo de dominar o material. Quem não houvesse passado por isso teria ficado com algum estilo ready-made. Nós mais modernos, devemos nos dar conta de que na história, considerada de um ponto de vista como o da moderna engenharia, poucas vezes se criaram sistemas estruturais, os quais uma vez criados eram empregados continuadamente por séculos com variações relativamente pequenas, até que algumas obras levassem aqueles sistemas a seus limites, como o Panteão romano, Hagia Sofia ou as grandes catedrais góticas. Já a modernidade parece seguir o roteiro que Bötticher sugeria, a constante invenção de sistemas estruturais sem dramas históricos, porém.
Bötticher acreditava, de um modo histórico eclético e muito otimista, que a tradição fosse seletiva e eliminasse o estéril. Aliás, dizer otimista não chega perto das expectativas, suas e de seu tempo, de que a ciência e a indústria modernas tinham o potencial de, num futuro não muito distante, virem a eliminar a própria necessidade do trabalho. Não era essa a esperança de socialistas e comunistas de todos os matizes? A tradição era-lhe, ao que parece, a síntese da história a preservar e do subsequente progresso necessário:
“É por isso que a história e a tradição preservaram, para o bem do homem, monumentos que consagram os princípios de cada estilo — sempre o resultado do processo precedente — de tal modo que, bem examinado, podemos saber o resultado do que aconteceu precedentemente e colher o fecundo. […] Se a história houvesse se contentado com o helenismo não teríamos tido a Idade Média; e se esta última tivesse terminado a evolução, a humanidade teria chegado ao fim. Se nos encontrássemos dessecados de toda a energia criativa tão generosamente dispensada às gerações anteriores, seríamos sepultados pela melancolia. Se a história não tivesse mostrado com clareza que há uma força interior sempre a produzir algo novo, [uma vontade talvez?], e que o processo de desenvolvimento pelo qual um aspecto da arquitetura se tornou proeminente com os gregos e o aspecto oposto com a Idade Média, então deveriam os dois ser continuados por uma geração futura como síntese?” (15).
Assim, feitos estes comentários, resta acrescentar como resposta à questão precedente que
“A resistência da pedra à compressão e à flexão se esgotou para fins estruturais […] Ela já não pode sozinha formar um estágio de desenvolvimento superior […]. Um novo e desconhecido sistema de cobertura, que certamente trará consigo um novo mundo de formas artísticas, só poderá aparecer com um material ainda desconhecido ou que até agora não foi usado como princípio guia. Ele deverá permitir cobrir vãos mais amplos, com menor peso próprio e maior confiabilidade. No que toca ao design espacial e à construção ele deverá satisfazer qualquer necessidade espacial ou de planejamento. […]. Mas isto significa que, para aquelas partes sobre as quais todo o sistema repousa, outro material será usado. Este outro faz com que seja possível introduzir suas funções estruturais nas quais outro princípio até agora tem operado. […]. Esse material é o ferro, que já tem sido usado com este propósito em nosso século. […] Destinado a suplantar o grego e o gótico introduzirá na arquitetura a restante terceira força, a tração ou força absoluta (16).
Aqui, novamente, as expectativas de que ciência e indústria viessem a ter meios para vencer todas e quaisquer demandas da necessidade, que mantinha o homem atado ao ganharás o pão com o suor do teu rosto, se manifestava. Semper (17), contudo, se dava conta do equívoco: “Já se tornou evidente que as invenções já não são, como o eram antes, meios de vencer a privação e para o deleite. Pelo contrário, a privação e o deleite é que criam o mercado para as invenções. A ordem das coisas foi invertida”. Bötticher, porém, esperava do ferro uma superioridade desmesurada sobre todos os materiais e todos os membros estruturais que não trabalhassem a qualquer esforço que não a tração:
“Substituir o sistema helênico de vigas de pedra por vigas de ferro à flexão seria apenas uma permuta de materiais e não uma mudança de princípio. Conduziria assim a um progresso bastante limitado e unilateral e provaria sua inadequação assim como aquela das vigas de pedra para vencer amplos vãos” (18).
É necessário lembrar que uma das inovações da revolução industrial britânica, que os alemães observavam, eram galpões da indústria da fiação do algodão com vários pisos construídos com material incombustível e suportados por vigas de ferro, de que ninguém tirou qualquer consequência estética. Se fosse o contrário, a primazia que Bötticher atribuía à cobertura talvez tivesse sido um pouco menos convincente. Fica claro, contudo, que sua ênfase na primazia da cobertura valeria também como critério retrospectivo da historiografia dos estilos, das coberturas planas de lajes de pedra egípcias, ao Panteão romano e às abóbodas de aresta.
A atividade do arquiteto livre das inibições do “mau ecletismo”, conforme Bötticher, seria então, tal como concebia, elucidar o princípio estático e construtivo bem como a lei e a forma de cada membro estrutural, o que o autor chamaria mais tarde de Kernform (19). Feito isso restaria desvendar as formas artísticas a serem aplicadas aos membros e às partes com o propósito de figurar a estrutura e sua espacialidade, o que chamava de Kunstform (20). Pois se não servissem a essa função, deveriam fazê-lo para simbolizá-las e tornar visível o conceito de estrutura e de espaço sempre que, em seu estado estrutural puro não pudessem ser percebidas. Assim, membros estruturais e suas formas artísticas seriam concebidos inicialmente por um processo iterativo: o sistema arquitetônico em sua forma estrutural pura, que é um produto técnico (do puro entendimento) dava origem e recebia as formas aperfeiçoadas (pela imaginação) que lhe conferiam a estampa artística. A estrutura mesma seria uma forma inventada sem modelo no mundo exterior; as formas artísticas, criações mentais, seriam tomadas do que há no mundo exterior:
“Na criação das formas artísticas, a arquitetura tem muito em comum com a escultura e a pintura e segue o mesmo princípio, muito embora seja uma arte da representação apenas após ter cumprido a face material da tarefa relacionada à estrutura e ao sistema de enclausuramento do espaço. A escultura e a pintura podem exprimir ideias e aplicar o método metafórico da linguagem pictórica em que as formas artísticas tomam o lugar da ideia que é puramente inteligível. A arte pictórica não pode representar uma ideia como tal, mas representá-la através de um símbolo e assim dar-lhe corpo. A arquitetura segue o mesmo método. Ela toma seus símbolos e formas artísticas somente daqueles objetos naturais que corporificam uma ideia análoga àquela existente e inerente ao sistema arquitetônico. Assim, nenhuma ideia para a qual não exista equivalente no mundo exterior poderia ser representada pela pintura e tampouco pela arquitetura. A essência da arte pictórica em suas relações com a natureza repousa nessa interação entre conceito e objeto, entre invenção e imitação” (21).
A invenção seria o acesso do entendimento à ideia, cujo conhecimento é totalmente abstrato sem qualquer análogo sensível. A imitação, que é parte da arte pictórica, seria o impulso (da vontade?) por sua própria objetivação em coisas e imagens do mundo sensível.
A concepção que Bötticher nos apresentava do que fosse o trabalho do arquiteto e de sua face estética é admirável. Mas suas relações com o estilo trazem junto uma concepção anterior à agilidade com que a indústria, desde a difusão dos altos fornos na década de 1890, tem propiciado a criação de sistemas construtivos que muitas vezes diferem de modo muito menos dramático do que foram a invenção da siderurgia e a introdução do aço nas construções. Seu surgimento, sempre cada vez mais célere, já não dá ensejo àquelas mudanças dramáticas que o autor via no passado, a mudança das visões de mundo socialmente compartilhadas. A despeito da ênfase, Bötticher mostrava também a intuição deste algo mais que os estilos do passado tinham além do movimento da técnica e de sua representação: “uma só pessoa não pode consagrar um estilo, e […] somente uma nação inteira pode acolhê-lo e […] toda uma época é necessária para seu desenvolvimento (22). Chamemos, interpretando Bötticher, de visão de mundo à exigência de que o estilo arquitetônico fosse expressivo da sociabilidade e do humano, caso não fosse para oscilar sem cessar como no falso ecletismo. Com efeito, todos os estilos que surgiram no ocidente desde o imperador Constantino até o Barroco, por exemplo, eram tão comprometidos com o cristianismo quanto o estilo grego na sua origem era com seu paganismo:
“Carecemos tanto da habilidade quanto do desejo de retornar à arte helênica, pois isso seria regredir dois mil anos no mínimo. Mas seria igualmente impossível soprar vida nova no gótico. Pretender continuar com qualquer um dos dois estilos seria como tentar aperfeiçoar a perfeição” (23).
Aqui voltamos a Reyner Banham (24) cujo argumento já apresentamos anteriormente: não haveria mais estilo na modernidade, porque a velocidade com que a tecnologia cria e substitui os sistemas arquitetônicos já não permite mais a busca pela perfeição, e que as obras primas modernas que analisou, como a Villa Savoye e o Pavilhão de Barcelona, projetados em 1928, extraíam sua excelência não da tecnologia ou da indústria, mas de uma estética suposta da máquina que já estava superada em 1930. O argumento de Bötticher (25) é análogo e contrário, não haveria mais busca pela perfeição a não ser que um novo material, com sua configuração de membros estruturais e com sua formação da cobertura, abrisse espaço para um novo estilo. Pelos mesmos motivos, Banham negava a possibilidade de novos estilos, não importa quanto se tentasse cria-los com potencial de longo desenvolvimento. Se assim for, Bötticher estava descrevendo uma situação moderna, a inexistência de estilo, em vez da época de um futuro estilo.
Aqui entre nós brasileiros
Tivemos um arquiteto muito polêmico e brilhante, Vilanova Artigas (1915-1985), criador de uma obra verdadeiramente enigmática, cujos sentidos não são fáceis de distinguir. Para quem tem expectativas de uma obra moderna funcionalista, a obra da maturidade de Artigas representa uma decepção ou requer um autoengano. Mas para quem tiver disposição para uma obra que tenha algo mais a mostrar, esta pode ser uma boa viagem, em companhia de Bötticher. Como já tivemos oportunidade de examinar a obra de Artigas longamente (26), só faremos aqui relembrar os termos que usamos e as observações acerca de seu partido típico de projeto.
A maturidade profissional de Artigas veio dos meados para o fim da década de 1950, quando a sua produção ficou um tanto reduzida sem deixar, porém, de ser intensamente autoral. Referimo-nos à pesquisa estrutural-volumétrica do estádio do São Paulo Futebol Clube — SPFC, às casas Baeta (1956), Rubens de Mendonça, ou dos triângulos (1956), José F. Fernandes (1957), e, sobretudo à casa José Mário Taques Bittencourt (1959). Não nos esqueçamos de que entre 1960 e 1961 Artigas realizou várias de suas obras mais emblemáticas, como os Ginásios de Itanhaém e de Guarulhos, o Anhembi Tênis Clube, os vestiários do SPFC, a Garagem de Barcos do Santa Paula Iate Clube e a primeira versão do edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo — FAU USP.
Há um edifício posterior, a Rodoviária de Jaú (1973), que nos parece proporcionar um diálogo interessante com Bötticher. O partido do projeto aparece como de costume no corte em que o piso mais alto do edifício concorda com o nível da rua circundante de cota mais alta (rua Saldanha Marinho a sudoeste) e se resolve como uma praça ou um passeio contínuo a ela. A laje de cobertura sobre a praça tem uma espessura aparente de 1,30m, ou seja, tem o aspecto de um volume distante do volume abaixo em 2,50m, um pé direito que retira qualquer indesejável grandiloquência do edifício público.
O térreo, ao nível da rua mais abaixo (rua Humaitá, a nordeste), proporcionou três pisos funcionais no desnível de 6,5m. A topografia do terreno acompanha a da cidade construída no vale do rio que lhe deu nome. As duas ruas circundantes distam entre si 74m (entre meios fios). O primeiro andar com lajes “caixão-perdido” acima e abaixo, contínuas em superfície às empenas de concreto nas extremidades, tem configuração de uma caixa suspensa sobre pilotis.
A espacialidade de múltiplas continuidades de circulação e de visão, bem como de reversões massa-espaço se faz com rasgos abertos no piso da praça aos pisos inferiores. Com uma passarela a separá-los, os rasgos enriquecem as possibilidades da visualidade, bem como drenam o ar poluído da pista dos ônibus logo abaixo.
As áreas de lazer do edifício, como o espaço para uma lanchonete e o belvedere (de frente e aberto ao vale do rio Jaú) estão sob a cobertura da praça, bem como a galeria de lojas no piso abaixo e o acesso principal na cota zero. Há, portanto, dois volumes amplos e horizontais, a laje que cobre a praça e o volume que comporta a galeria de lojas, o qual é totalmente envidraçado para a rua Humaitá. A laje que cobre a praça superior apoia-se em colunas de aspecto vegetal ou antropomórfico conforme se queira, visíveis ao longe, e terminadas numa base bem estreita.
O prolongamento dos pilares nos níveis mais abaixo parece-nos ter uma seção desproporcional à esbeltez que a técnica poderia ter proporcionado, mas não conhecemos os motivos do projeto estrutural. A continuidade desses pilares com as colunas do nível superior, faz destas antes capitéis do que colunas independentes, algo que se mostra à medida que atravessamos o edifício. Noutras palavras, este capitel é a forma-artística que dá visibilidade à forma-núcleo necessariamente abstrata. Assim como volume e espaço, luz e sombra, objeto material e objeto que abriga e abre vistas e passagem, a coluna e o capitel se alternam conforme a posição da qual são observados. Os capitéis são encimados por perfurações na laje de cobertura por onde as vigas dobram-se como arcos para chegar à base e, ao contrário da laje que projeta sombra intensa sobre o piso, deixam a luz entrar; mais uma alternância, portanto, entre luz intensa e sombras igualmente intensas nas obras do arquiteto.
Como já tivemos ocasião de mostrar (27), a concepção de espaço de Vilanova Artigas se dá como permanente reversão de massa ou coisa material em espaço, luzes em sombras intensas, amplos vãos em reduzidos pontos de apoio estruturais, figuração de pesos imensos como sobre apoios antropomórficos, e uma noção de acabado arquitetônico, o concreto aparente, que une a realização técnico-científica com o trabalho perigoso e corporal estafante de multidões de trabalhadores. Sobretudo, os grandes vãos tornam-se possíveis pelos sistemas construtivos do concreto armado e/ou protendido. Enfim, uma série de figuras da desmedida que se pode atribuir à indústria humana. A alternância entre a coisa-material e o espaço prolongado pela técnica, através dos edifícios bem como das cidades, mostra-se uma concepção de modernidade como contínuo de fronteiras indeterminadas ou espaço potencialmente infinito como na Broadacre City de Wright.
Com Artigas, a relação entre formas-núcleo e formas-artísticas está sempre presente na reversibilidade entre a massa e o espaço, ou melhor, entre os agrupamentos funcionais e o espaço contido no volume geral do edifício. Essa reversão parece-nos inverter e explicitar uma concepção de espaço enunciada por Alois Riegl (1858-1905) (28), cuja compreensão das artes, desde os egípcios até pelo menos o período tardo romano, era que o espaço seria o indeterminado e contrário às expectativas dos povos antigos, para os quais as individualidades materiais cerradas eram o determinado e positivo. Com Artigas, o espaço e a coisa material alternam-se permanentemente, o espaço penetra as coisas e as coisas se interpõem ao espaço.
Qual o sentido dessa alternância dos extremos que a tradição representou como imobilidade em sua essência? Ora, um sentido e uma esperança pelo fim de limites para a vontade que impele o homem neste mundo e que a modernidade paga com o peso da desmedida. Se a praça superior da Rodoviária de Jaú, se desfez da grandiloquência, tornou-se, porém, um mirante em 360° no topo de um vale. Desse modo, a rua de cima vai, a rua de baixo vem, os viajantes e os ônibus vão e vêm, o peitoril da passarela que corta o vazio da laje-piso da praça, de um elemento auxiliar torna-se volume arquitetônico à medida que a passarela se torna uma rampa descendente, o qual, quando esta chega a seu ponto mais baixo, torna-se por sua vez aberto à circulação e a amplas vistas.
Há tipologias estruturais modernas, como arcos tri-articulados, que têm momento zero no ponto de apoio junto às fundações e na cumeeira; este é o caso da célebre Galerie des Machines da Exposição Universal de Paris de 1889. Mas é também o caso do capitel da Rodoviária de Jaú cujo encontro dos quatro arcos sobre o topo do pilar se dá também por momento zero; é óbvio que o mesmo de dê no Santa Paula Iate Clube com o uso de juntas estruturais de pontes. Na FAU USP, a transição das empenas periféricas para seus pontos de apoio, estes como pirâmides prolongadas para cima a partir dos blocos de fundação, se dá também em condições de momento zero no encontro de duas estruturas. Desta forma, podemos apontar o que seria uma forma-núcleo recorrente nesses e em outros exemplos. Elas poderiam ser resolvidas numa completa obscuridade, mas não o são pois o arquiteto lhes imprimia uma forma-artística que nos compenetra do poder produtivo e realizador da modernidade lado a lado com sua desmedida. Assim, as formas não são necessariamente apenas a visibilidade da ideia estrutural invisível, mas esta última se compõe com as formas-artísticas para proporcionar a visibilidade de uma reflexão feita na surdina.
As relações com Bötticher são várias. Seus projetos parecem concebidos da cobertura para baixo, do mesmo modo que o teórico atribuía às coberturas a determinação da organização em planta e dos muros de enclausuramento. Artigas fez no prédio da FAU USP com que a cobertura grade de troncos de pirâmide vazadas só toque ou se encaixe nas colunas e nas empenas circundantes, deixando as partições funcionais efetivas, mas subordinadas a uma mesma continuidade espacial. Os muros divisórios abaixo só adquirem presença significante quando formam, com as lajes caixão-perdido, volumes quando vistos de fora; é o que se dá no ateliê multidisciplinar por exemplo. A técnica e a concepção espacial fazem da cobertura repetitiva como é, algo que se prolonga a perder de vista, quase que sem limites determinados.
Para ousar referir Artigas a Bötticher, poderíamos dizer que o arquiteto daria a ver um sentido, ou seja, uma objetivação da vontade que estaria dormente como ideia nas estruturas ortogonais de concreto que encontramos por toda parte. O sentido estava mesmo lá à espera de quem o trouxesse à visibilidade ou trata-se de uma atividade criativa sendo desempenhada? Esta pergunta só tem sentido se ignorarmos o registro metafísico de Bötticher, cuja passagem entre forma-núcleo e forma-artística não se limitava ao plano das propriedades dos materiais tal como conhecidas pela física. Assim, podemos chamar os recursos plásticos de Artigas de ornamentos, mas no sentido que se costuma atribuir a Bötticher, a célebre ontologia do ornamento (29), isto é, tudo menos uma vestimenta convencional sobreposta às construções, mas, sim, como soluções construtivas que os arquitetos vão encontrando e refinando, animados com suas visões de mundo pessoais as quais tornam-se públicas, mas não universais, tão logo se realizem em obras.
Esses paralelismos entre o texto de Bötticher e as obras de Artigas não devem nos deixar numa dúvida excruciante sobre se o arquiteto conhecia o texto do teórico. Mas Artigas, que não lia o idioma de Bötticher, passou quase que todo o ano de 1947 num programa da bolsa Fulbright em estudos nos Estados Unidos, país que, naquela época, ainda abrigava muitos scholars alemães refugiados apesar da Segunda Guerra Mundial já ter terminado. Então a resposta é que é sim possível que Artigas tenha conhecido o pensamento do ilustre teórico, por uma via indireta talvez. Mas a questão de fundo é a do caráter das artes na modernidade, época em que o espírito deixou seu invólucro sensível e se dá a conhecer no seu próprio meio, o das ideias abstratas (30). A arte, nesse quadro, deixou de mostrar o espírito na imediatez do sensível e passa a depender da mediação das ideias e da literatura. Artigas é no mínimo um bom exemplo de quão difícil se tornou fazer obras artisticamente significativas pela via tradicional da imitação.
notas
1
GOETHE, Johann Wolfgang von [1969].. Apud IRWIN, David. Introduction — I Life and reputation. In IRWIN, David (org.). Winckelmann — writings on art. London, Phaidon Publishers, 1972, p. 3.
2
SCHINKEL, Karl Friedrich. Apud MALLGRAVE, Harry Francis. The Rise of German Theory. In MALLGRAVE, Harry Francis (org.). Modern architectural theory: a historical survey, 1673–1968. New York, Cambridge, 2005, p. 91.
3
BANHAM, Reyner. Theory and Design in the First Machine Age. 2nd edition. New York, Praeger Publishers, 1967, p. 320-330.
4
GROPIUS, Walter. Arquitetura total. In GROPIUS, Walter. Bauhaus: novarquitetura. 2a edição. São Paulo, Perspectiva, 1974, p. 205-220.
5
GIEDION, Sigfried. The need for a new monumentality. In ZUCKER, Paul (org.). New architecture and city planning: a symposium. New York, Philosophical Library, 1944, p. 549-568.
6
SCHINKEL, Karl Friedrich. Literary fragments — from Notes for a textbook on architecture (1835). In MALLGRAVE, Harry Francis (org.). Architectural theory, an anthology from Vitruvius to 1870. v. 1. Malden, Blackwell Publishing, 2006, p. 414-415.
7
HERMANN, Wolfgang (org.). In what style should we build? Santa Monica, The Getty Center for the History of Art and the Humanities, 1992.
8
BÖTTICHER, Karl. G. W. The principles of the Hellenic and Germanic ways of building with regard to their application to our present way of building. In HERRMANN, Wolfgang (org.). Op. cit., p. 147-167.
9
HERRMANN, Wolfgang. Op. cit.
10
FRAMPTON, Kenneth. Studies in tectonic culture: the poetics of construction in nineteenth and twentieth century architecture. Cambridge, The MIT Press, 1995.
11
BÖTTICHER, Karl. Op. cit., p. 151-152.
12
Idem, ibidem, p. 153.
13
Idem, ibidem, p. 154.
14
Idem, ibidem, p. 154.
15
Idem, ibidem, p. 155-156.
16
Idem, ibidem, p. 157-158. Grifo do autor.
17
SEMPER, Gottfried. Science, Industry and Art. In The four elements of architecture and other writings. 1st. edition. Cambridge, Cambridge University Press, 1989, p. 133-134.
18
BÖTTICHER, Karl. Op. cit., p. 158-159.
19
LABRUSSE, Rémi. Référence hellénique et ontologie de l’ornement: La “tectonique” de Karl Bötticher. In MUAFROY, Sandrine; ESPAGNE, Michel. L’Helleénisme de Wilhelm Von Humboldt et ses prolongements européens. Paris, Demopolis, 2016, p. 225 <https://tinyurl.com/3yu5hw6n>.
20
Idem, ibidem, p. 231.
21
BÖTTICHER, Karl. Op. cit., p. 163.
22
Idem, ibidem, p. 157.
23
Idem, ibidem, p. 157.
24
BANHAM, Reyner. Op. cit.
25
BÖTTICHER, Karl. Op. cit.
26
GABRIEL, Marcos Faccioli. Vilanova Artigas: a poética traduzida. Antíteses, v.13, n. 25, Londrina, jan./jun. 2020, p. 447-481.
27
Idem. Ibidem.
28
RIEGL, Aloïs. El arte industrial tardorromano. Madrid, Visor, 1992.
29
FRAMPTON, Kenneth. Op. cit.
30
HEGEL, Georg F. W. Curso de estética: o belo na arte. 1a edição. São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 19-20.
sobre o autor
Marcos Faccioli Gabriel é arquiteto e professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp Presidente Prudente. Mestre em Arquitetura (EESC USP, 2003) e doutor em Arquitetura (FAU USP, 2017), com a tese intitulada Mário Pedrosa e a arquitetura brasileira: autonomia e síntese das artes. Realizou em 2021, estágio pós-doutoral na FAU USP com pesquisa intitulada O estilo da modernidade de Schinkel ao Werkbund.