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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O artigo problematiza a relação entre o conteúdo simbólico do espaço público e a dinâmica cultural e política nas cidades atuais, a partir de exemplos do século 19 e 21, recolocando a questão da importância do espaço público para a democracia hoje.

english
This article aims to discuss the relationship between symbolic contents of public space and cultural and political dynamics in cities today, through exemples from 19 and 21 centuries, thus addressing the importance of public space for democracy.

español
Este artículo tiene como objetivo analizar la relación entre los contenidos simbólicos del espacio público y las dinámicas culturales y políticas en las ciudades, abordando la importancia del espacio público para la democracia.


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MOREIRA, Clarissa; MESENTIER, Leonardo Marques de. Estátuas, toponímia e configurações. A materialidade e o simbolismo do espaço público e a dinâmica cultural e política nas cidades. Arquitextos, São Paulo, ano 24, n. 293.02, Vitruvius, out. 2024 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/24.293/9022>.

Sacralizado na cidade colonial, teatralizado pela corte barroca, vulgarizado pela industrialização, o espaço público se transformou para acompanhar as mudanças históricas dos modos de urbanização. Que destino se reserva ao espaço público hoje, numa sociedade pós-industrial, globalizada, tecnológica e em rede, com todos os riscos e desafios dessas novas condições?

Por algum tempo, a pandemia de Covid-19 esvaziou o espaço público e a isso se associou um grande impacto sobre uma série de atividades econômicas na cidade. A experiência da restrição à vida no espaço público contrasta com um evidente desejo pelo espaço público, manifesto no aumento da frequência em parques e praças como lugares relativamente seguros para se estar fora de casa e, em alguns casos, repositórios do contato possível com o mundo exterior.

Essa restrição à vida no espaço público contrasta também com a necessidade política de influenciar a esfera pública através de manifestações, como as que ocorreram em plena pandemia. Essas manifestações recolocam a necessidade de tomada do espaço público como o lugar de se fazer ouvir, demonstrando que, apesar dos riscos, neste as urgências e necessidades colocadas por grupos sociais e suas disputas pode se refletir de forma mais permanente do que nas redes sociais.

Atento a essas questões, o objetivo deste artigo é discutir aspectos centrais da relação que se estabelece hoje entre o conteúdo simbólico do espaço público e a dinâmica cultural e política nas cidades. Para tal, em um primeiro momento, o artigo revisita conceitos fundadores relativos ao tema do espaço público. Em seguida, confronta estes debates conceituais com transformações do espaço público na história urbana da cidade do Rio de Janeiro, como as que ocorreram na praça XV de Novembro e na Cinelândia no século 20. Finalmente, relaciona a teoria ao debate sobre situações atuais onde a importância do espaço público se reafirma em conflitos envolvendo esculturas públicas e placas homenageando personagens públicos relevantes.

Espaço público e esfera pública

O espaço público constitui a parcela do ambiente urbano comum e, por ser lugar de convivência e de confrontação dos diferentes sujeitos sociais, é um bem comum (1) necessário à vida democrática e à existência da democracia. O espaço público é, portanto, parte integrante daquilo que Habermas chamou de esfera pública da vida social (2). Para Habermas, a esfera pública aparece como instância mediadora das relações entre os poderes constituídos e a sociedade civil e de determinação daquilo que predominará como interesse público.

Nas sociedades democráticas, é na esfera pública que se desenvolve o debate sobre como deve atuar o Estado frente aos problemas, às questões e aos temas de interesse dos diferentes grupos que formam a sociedade, de modo a encontrar um caminho de legitimação das políticas públicas. A esfera pública é composta por mídia, redes sociais, parlamento, espaços de debate e, com destaque, o espaço público. A esfera pública como mostrou Habermas, é, portanto, um espaço comunicacional e o espaço público a integra também como um espaço da comunicação social (3).

Por ser espaço de comunicação social, o espaço público interage de forma relevante com a vida cultural das cidades. A comunicação social se realiza a partir da cultura, enquanto compartilhamento de sentidos e significados. Por outro lado, a cultura, para gerar sentidos e significados comuns, depende de processos comunicacionais, que se realizam apoiados por meios de comunicação. O espaço público, como local de encontro, se coloca também como lugar de comunicação na cidade, envolvendo discursos verbais e não verbais. Nas manifestações no espaço público, por exemplo, o significado está presente não só na fala dos manifestantes, mas também em roupas, atitudes, cartazes e outras formas de expressão que fazem parte do compartilhamento cultural entre os que ali estão. O mesmo ocorre nas festividades no espaço público, como o carnaval, onde uma intensa comunicação social ocorre, muitas vezes tendo caráter igualmente político.

Para o historiador e museólogo Ulpiano Bezerra de Meneses, “a cidade é artefato, é campo de forças e é imagem”, e essas “três dimensões” estão “solidariamente imbricadas, cada uma dependendo profundamente das demais” (4). Estátuas, obeliscos, placas e outras formas de significar o território e a própria configuração dos espaços públicos, por serem artefatos portadores de significado constroem, através da imagem, o significado do espaço público, em diversos níveis. Pela relevância dessas imagens para a dinâmica cultural das cidades, o espaço público tende, portanto, a ser disputado e moldado pelas forças políticas que atuam sobre a cidade. De fato, como observou o geógrafo e urbanista francês Jérôme Monnet: “Aquele que manipula os símbolos pode manipular os processos de identificação e pode, assim, influenciar na constituição do grupo que legitima o exercício de poder” (5).

O espaço público é, portanto, o lugar privilegiado da manifestação política e cultural, que pode alcançar significado pela expressão da coletividade e superação do individual, numa dimensão que as redes sociais, através da Internet, ainda não produzem, por serem gerenciadas por plataformas mediadoras da comunicação que estão sob controle privado e que expressam a manifestação coletiva apenas como somatório de manifestações individuais. Por outro lado, essas redes deram uma nova dimensão a tudo que ocorre no espaço público. O que antes se restringia ao âmbito da vida pública local, pode agora circular pelo mundo através dos caminhos da Internet.

A esfera pública permanece como o lugar de debate das orientações políticas da sociedade, incluindo, é claro, a construção de políticas públicas. Ao tratar da relação entre espaço público e mídias, citando como exemplo as manifestações de junho de 2013 no Brasil, Moraes e Rosanelli observam que esse processo pode ter sido claramente “impulsionado a partir das redes sociais […] expandindo-se em ritmo ainda mais acelerado à medida que ganhavam maior visibilidade na mídia tradicional” (6), sem deixar de ter o espaço público como suporte fundamental.

Hoje as redes sociais moldam fortemente a esfera pública; e, de fato, o espaço público, como parte integrante da esfera pública, é atravessado pelas disputas que tomam as redes sociais e a mídia. Essas novas relações, longe de representar uma fragilização do espaço concreto da cidade, trazem a ele uma nova dimensão, como analisaremos mais adiante no artigo. Na era das comunicações remotas, na contramão desse novo protagonismo do espaço público, observa-se seu abandono pela esfera governamental, especialmente nas periferias urbanas.

Disputas simbólicas: as praças e as memórias

Segundo o filósofo e sociólogo francês Maurice Halbwachs (7), a memória coletiva está presente em narrativas compartilhadas pelo grupo social e na configuração dos lugares onde se deram suas vivências comuns, que se associam às práticas coletivas em lugares de referência. De fato, as vivências de práticas coletivas e os lugares onde ocorrem formam uma estrutura que é fundamental para a existência da memória coletiva, sendo esta a base fundamental das memórias individuais.

As cidades e o espaço público das cidades são, portanto, o lócus por excelência das memórias coletivas e, por isso mesmo, o advento da urbanização da vida social ampliou a relevância das memórias coletivas para a memória individual. A vida urbana produziu uma diversidade de experiências coletivas pela combinação de grupos sociais, lugares e momentos, gerando múltiplas memórias vivenciadas por diferentes grupos, em diferentes lugares. Essa profusão de acontecimentos certamente gera acúmulo e sobreposição de memórias coletivas para os grupos sociais que se apropriam do espaço público e essas memórias se associam ao significado simbólico do espaço público. A própria noção de lugar coletivo remete ao espaço público como repositório dos afetos comuns. A formação e a reprodução das memórias coletivas nas cidades têm no espaço público uma estrutura básica de sua dinâmica.

Se os lugares públicos onde se realizam atos e vivências coletivas são fundamentais para as memórias dos grupos sociais nas cidades, então as praças, por serem lugares para onde os atos e as vivências coletivas tendem a confluir, condicionam profundamente a memória nas cidades. Praças são, portanto, lugares centrais da construção da memória coletiva, constituindo-se em um patrimônio também afetivo, sejam elas reconhecidas enquanto tal, ou não. Pelo seu poder de acionar memórias coletivas, as praças se constituem em lugares patrimoniais ou potencialmente patrimoniais. Nesse sentido, o projeto de urbanismo precisa considerar a importância da memória coletiva para as relações intersubjetivas e, mesmo, para a saúde mental dos habitantes, dada a sua relevância para a construção das subjetividades individuais e de grupos.

 

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Com relação ao Rio de Janeiro, é possível indicar o caso do Terreiro do Paço, na praça XV de Novembro, como lugar onde ocorreu uma mudança relevante na configuração do espaço público, com reflexos sobre a memória coletiva na cidade. Durante o período imperial, o Terreiro do Paço era o lócus onde se realizavam as cerimônias da corte imperial, com caráter de representação do poder imperial. Para que essas cerimônias pudessem se realizar, com séquitos em cortejo, se fazia necessário que o espaço central da praça fosse desobstruído e também que fosse preservado, tanto quanto possível, o percurso entre o Paço Imperial e as igrejas presentes naquele espaço, dada a relação existente entre o Estado imperial e a Igreja católica, naquele período.

Depois que a República foi instaurada, na área correspondente ao Terreiro do Paço foi colocada uma estátua do General Osório, cercada de árvores. A nova configuração da praça, intencionalmente ou não, muda a configuração do espaço de tal forma que só com exercício de imaginação se poderá recordar o espaço dos ritos da representação imperial. A capacidade da praça, enquanto suporte da memória imperial, se dissolveu na percepção cotidiana do cidadão comum. Nesse episódio, se percebe claramente que a imagem do ambiente construído se traduz em uma dimensão simbólica do espaço que é ao mesmo tempo um alvo e um instrumento de poder.

 

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Outro exemplo de reconfiguração do espaço público que teve importância para a reconfiguração da memória e da identidade da cidade do Rio de Janeiro foi o caso da retirada do Palácio Monroe da Cinelândia. No Rio de Janeiro, a Cinelândia é um lugar que se associa aos carnavais, às manifestações políticas e ao encontro com os amigos após o trabalho. Um espaço público impregnado de referências de memórias coletivas que se vinculam ao significado simbólico do lugar. A praça Floriano, chamada de Cinelândia, é um exemplo clássico de uma praça que está fortemente ligada à memória política da cidade, por ser o local de destino de muitas manifestações. Ela também é um marco fundamental da memória cultural da cidade.

O Palácio Monroe abrigou o Senado Federal entre 1925 e 1960, mas o edifício permaneceu até o ano de 1976. Já se acreditou que o Monroe foi demolido em função das obras de construção do metrô, porém o traçado deste foi desviado para não afetar as fundações do palácio. O desaparecimento do Monroe da paisagem dissolve a imagem da Cinelândia como lugar associado ao Estado Nacional. Para a imagem do Rio de Janeiro, por consequência, o sentido de capital do governo nacional do Brasil também se perdeu, afetando os processos cotidianos de reativação desse sentido na memória da cidade.

Gordon Cullen argumenta que a imagem da cidade (8) se produz a partir de uma relação entre elementos presentes na paisagem urbana, num processo onde a mudança, acréscimo ou supressão de um elemento altera o significado dos demais. A partir dessa formulação de Cullen, analisando o caso do Porto Maravilha, Mesentier e Moreira (9) argumentam que a intervenção na área do Porto do Rio de Janeiro gerou uma transformação no seu significado a partir da demolição de um viaduto que atravessava toda a área, a avenida Perimetral; da reurbanização das vias; e da implantação do Museu de Arte do Rio de Janeiro — MAR e do Museu do Amanhã. Antônio Colchete nota ainda que o foco na transformação de espaços públicos a partir da criação de novos atrativos culturais — murais de grafite, como os de Eduardo Kobra; esculturas públicas como da Cidade Olímpica; além de exemplos de patrimônio histórico recuperado — transformaram-se em modos de comunicar à cidade o sentido de área transformada (10).

Inserido no mesmo processo, porém surgindo de um modo que não estava previsto inicialmente no Projeto Porto Maravilha, ocorreu a descoberta do Cais do Valongo (11). Construído no início do século 19, o Cais do Valongo foi local de desembarque e comércio de escravizados africanos até 1831. Durante os vinte anos de sua operação, entre 500 mil e um milhão de escravizados desembarcaram no Cais do Valongo. Estima-se que tenha sido a maior porta de entrada de escravizados nas Américas e, por isso, recebeu o título de Patrimônio Histórico da Humanidade pela Unesco. As escavações para revelar o cais implicaram em uma mudança na configuração urbana da região portuária que evidenciou e sublinhou significados presentes na área. O Cais do Valongo tornou-se uma referência da cultura afro-brasileira no Rio de Janeiro, sublinhando este aspecto na área onde está inserido.

O antigo cais foi reformado em 1843, como parte dos preparativos para o desembarque da Princesa Teresa Cristina de Bourbon, futura esposa do Imperador Dom Pedro II, passando a ser chamado de Cais da Imperatriz. Nesta remodelação, operou-se um verdadeiro apagamento da paisagem anterior, a fim de oferecer à aristocracia um cenário distinto do Cais do Valongo. O que vemos hoje no Porto do Rio é uma sobreposição de referências desses momentos históricos e a prova de que, ao longo da história, ocorreram várias intervenções urbanísticas com o objetivo de operar no espaço público apagamentos da imagem de práticas sociais escravistas, ainda que estas mesmas práticas fossem as responsáveis pela sustentação do sistema político-econômico da época.

VLT Rio, Praça Mauá
Foto Mario Roberto Durán Ortiz, 2016 [Wikimedia Commons]

Um exemplo mais recente, nesse mesmo sentido, foi a supressão total da praça Américo Brum, espaço público referencial para a comunidade do Morro da Providência, na região do Porto do Rio de Janeiro. Essa praça foi destruída para a construção de um teleférico, que funcionou por pouco mais de seis meses, durante o período dos Jogos Olímpicos. A destruição dessa praça gerou diversas manifestações a partir de 2011. A praça, com papel relevante na memória social e urbana da mais antiga favela existente no Rio de Janeiro, representou uma perda que até hoje é lembrada e lamentada por moradores (12).

A configuração morfológica das praças se constitui em relevante suporte das memórias coletivas, sendo, portanto, elemento central na dinâmica cultural das cidades. Mudar a configuração urbanística de uma praça afeta a capacidade do lugar de acionar lembranças e de possibilitar novas vivências a elas relacionadas. A modificação de uma praça de forma equivocada pode contribuir para a produção do esquecimento coletivo e, consequentemente, para a desagregação de certas memórias coletivas. Tal tipo de transformação, pelo impacto que venha a ter sobre as identidades coletivas, pode até mesmo induzir à desagregação de certos grupos sociais. Trata-se, portanto, de um objeto central para o projeto de urbanismo, por sua relevância para a preservação das memórias e identidades sociais, que se associam aos processos de construção da sociabilidade na cidade.

Disputas simbólicas: homenagens, esculturas e placas

A arte e o patrimônio cultural conferem significado ao espaço público. Estátuas, obeliscos, colunas e templos participam do ambiente construído das cidades, compondo espaços públicos. Esses objetos não são apenas decorativos, mas também objetos dotados de sentido cultural. Como artefatos de sentido cultural, através de sua imagem esses objetos comunicam valores, crenças e utopias, gerando significados do passado, do presente e do futuro, que contribuem para modelar o imaginário social, no sentido da reprodução do ordenamento cultural que os produziu.

Para o geógrafo Roberto Lobato Correa (13), a força dos monumentos nas cidades depende de três fatores: sua localização, sua escala e sua interconexão com práticas culturais e políticas. Esse autor assinala que “o alcance espacial dos monumentos é limitado face aos modernos meios eletrônicos de comunicação, que instantânea e simultaneamente produzem imagens impregnadas de intenções”. No entanto, transformações tecnológicas possibilitaram o aumento da produção de imagens sobre a cidade, ampliada a partir do uso de celulares com câmeras fotográficas, da prática social de realizar fotos e selfies, e do desenvolvimento das redes sociais da Internet, vem ampliando o alcance da difusão das imagens das cidades de forma não coordenada, com alcance definido pelos meios informáticos de comunicação.

Em onze de junho de 2020, os jornais noticiaram que um grupo de manifestantes ligados ao movimento Black Lives Matter tinham derrubado e lançado no Porto de Bristol uma estátua que homenageava Edward Colston, um britânico comerciante de escravos (14). Na cidade inglesa de Bristol, a estátua foi arrancada do seu pedestal durante protesto de manifestantes anti racistas, desencadeado pela morte do afro-americano George Floyd, assassinado por um policial branco nos Estados Unidos. Essa ação contribuiu para alimentar um debate mundial sobre estátuas no espaço público que constituem símbolos do passado colonial e escravocrata. Outras estátuas se tornaram alvo de disputas em torno do racismo. A discussão tomou as redes sociais também no Brasil, originando uma pluralidade de debates e visões sobre o que celebrar, o que destruir e o que arquivar como informação relevante de tempos passados.

Toppling of Colston Statue
Foto Greenhill22, 8 jun. 2020 [Wikimedia Commons]

O ato da destruição, em si, revela a revolta contra os traços racistas ainda persistentes na cultura ocidental. Quando se referencia o espaço público com figuras como a de um sequestrador que praticava assassinatos e outros atos violentos, se está construindo o ordenamento cultural da cidade através do espaço público. Nessas circunstâncias, as percepções sociais da escravidão são construídas a partir de uma estrutura cultural racista e ganham um caráter estruturante que garante a sua reprodução.

Emerge desses atos a própria relevância do espaço público para as cidades. Sendo o foco deste artigo a questão do espaço público, o mais importante neste âmbito é entender como esses atos políticos, em relação às estátuas de escravocratas e colonialistas, são reveladores da natureza do espaço público, enquanto lugar de afirmação e de disputa pelo ordenamento cultural das cidades. Observa-se o quanto é relevante, para as cidades, a relação entre a imagem de elementos simbólicos, como estátuas, obeliscos, colunas e templos que participam do ambiente construído, impregnando o espaço público de significado.

Mas o caso citado não foi o único de uma disputa envolvendo estátuas no espaço público. Por exemplo, em 2013, em Kiev, na Ucrânia, manifestantes derrubaram uma estátua de Lenin durante protesto contra o governo. Algumas estátuas de Lenin já haviam sido alvo de protestos durante o processo de dissolução da antiga União Soviética. Mas, na Alemanha, 24 anos após a queda do muro de Berlim, as autoridades alemãs resolveram recuperar uma estátua de Lenin que havia sido enterrada (15). Em 2020, a estátua foi inaugurada novamente na cidade de Gelsenkirchen, na Alemanha. As autoridades da cidade tentaram banir a estátua, mas a tentativa foi anulada pela justiça do país.

No Brasil, não é a primeira vez que, num contexto de mudanças de valores políticos-culturais, as estátuas presentes no espaço público são objeto de uma ação política. É possível citar, por exemplo, o caso de uma estátua do poeta espanhol Garcia Lorca, que foi objeto de uma explosão, em 1969 (16), durante o período militar, realizada por grupos de ultradireita. Posteriormente, em 1979, alunos da Universidade de São Paulo retiraram a estátua do depósito municipal da prefeitura de São Paulo, em seguida a recuperaram e a colocaram nos pilotis do Museu de Arte de São Paulo — Masp.

Outro caso, também ligado ao período da ditadura militar e da luta pela redemocratização no Brasil, foi referente ao Memorial 9 de Novembro, um monumento de autoria do arquiteto Oscar Niemeyer, construído na cidade de Volta Redonda RJ, em homenagem a três operários mortos em 9 de novembro de 1988. O monumento foi inaugurado em 1º de maio de 1989 e no dia seguinte, na madrugada, o local sofreu um atentado a bomba. O monumento foi parcialmente destruído. O próprio Niemeyer pediu que a obra fosse reerguida (17), mas mantendo parte de sua destruição, como testemunho histórico. Porém, no período em que esses casos ocorreram, as práticas de produção e veiculação de imagens de maneira difusa e espontânea a partir de celulares e redes de Internet ainda não tinham se desenvolvido, o que restringiu o alcance dos debates aos veículos das grandes empresas de comunicação.

Dois outros episódios recentes envolveram marcadores simbólicos do espaço público que implicaram em disputas simbólicas, mudanças e reafirmações de valores. Após o assassinato da vereadora Marielle Franco, em março de 2018 — figura pública que, além de intelectual de muitas outras faces, simbolizava diversos grupos sociais excluídos: mulher, bissexual, negra e com origem social em uma das favelas cariocas, a Maré — foram feitas placas de rua com seu nome e coladas em lugares da cidade. A iniciativa dos grupos de protesto pelo assassinato foi objeto de uma retaliação de grupos de extrema direita e a placa com o nome da deputada foi quebrada publicamente na praça onde foi colocada (18). Em 2021, uma placa foi finalmente inaugurada no Rio de Janeiro, na Cinelândia, próxima à Câmara de Vereadores, marcando assim a oficialização dessa homenagem. Em outras cidades do mundo, homenagens do mesmo tipo foram feitas (19).

Distribuição de mil placas para Marielle
Foto Marcelo Freixo, 14 nov. 2018 [Wikimedia Commons]

Com o mesmo sentido de disputa de significado, em 2021, quando do falecimento do ator e humorista Paulo Gustavo, após uma longa hospitalização decorrente de contágio por Covid-19, foi realizada uma homenagem através da mudança do nome de uma das ruas mais importantes de Niterói, onde ele morava (20). As ações no espaço público reverberaram nas redes e mídias virtuais e vice-versa. Em ambos os casos observa-se que, ao mesmo tempo em que muitas questões se desenrolaram no âmbito virtual, o suporte concreto e permanente que o espaço público pode oferecer à disputa pela construção simbólica e política da sociedade permaneceu altamente relevante.

Na sociedade se configuram hegemonias político-culturais que duram um período de tempo, dando certa estabilidade a valores culturais. Porém, essa estabilidade se rompe em algumas circunstâncias. O ato político em relação a um artefato (estátua) no espaço público é revelador de tensões culturais próprias de períodos de disputa político-cultural, indicando que sua presença de artefatos que expressam representações culturais está sujeita a transformações.

A estátua passa a ser objeto de disputa e deixa de ser tolerada ou considerada representativa quando certo estado de equilíbrio entre as identidades sociais deixa de existir. A disputa revela a relação entre as manifestações no espaço público das cidades e a construção social das dominações e contra-dominações culturais, e traz à tona elementos que antes passavam despercebidos para a maioria da sociedade. Na contemporaneidade, essas disputas ganham projeção pela difusão de imagens da cidade, à escala global, através de redes de comunicação de Internet.

Considerações finais

Observa-se que o espaço público guarda, na sua configuração, referências de memórias coletivas que dão base a identidades sociais. Com reflexos sobre a dinâmica cultural das cidades, esses significados interagem com a dinâmica política da cidade. Por outro lado, as memórias e identidades coletivas também se fazem referenciar por estátuas, obeliscos, placas e outras formas de homenagear personagens da história, e contribuem para o significado do espaço público.

O espaço público aparece hoje tensionado pelo acirramento das disputas no campo de forças das cidades. Entre as razões para esse acirramento aparecem, de um lado, uma instabilidade nas relações entre essas forças, que se associa a um processo de transformação de identidades sociais; e, de outro, o avanço da reprodução técnica das imagens e o aumento da capacidade de sua veiculação socialmente difusa, que amplifica o valor da imagem do espaço público da cidade, tanto para a atração de fluxos nacionais e internacionais de consumidores e capitais, quanto nas disputas político-ideológicas no campo de forças da cidade.

Assim, o que constrói a imagem do espaço público, dando significado ao que em uma sociedade democrática a todos pertence, precisa ser representativo de valores aceitos como comuns. Para se colocar um marcador simbólico no espaço público, o objeto precisa corresponder aos valores que estão predominando na esfera pública em um determinado momento, sendo coletivamente aceitos. Mas, no curso da história, as mudanças político-culturais tornam inaceitável aquilo que antes era considerado natural e desejável o que antes não era. O dissenso relativo ao espaço público evidencia, portanto, uma transformação político-cultural na cidade, que deve ser objeto de atenção da gestão urbana.

As questões sobre o que confere significado ao espaço público são reveladoras, portanto, da relação entre a esfera político-cultural e o espaço público das cidades. As disputas pelo espaço público também indicam que uma transformação sociocultural está em curso. Diante dessa transformação, cabe indagar, portanto, se a temática do espaço público tem encontrado, no Brasil, a devida centralidade nos debates, tanto no que diz respeito às políticas públicas e à gestão das cidades, quanto no debate acadêmico sobre urbanismo e projeto urbano contemporâneo. Fortalecida pela evidência de sua importância para o cotidiano da vida social, dada a falta que fez em tempos de pandemia, o espaço público demanda agora maior atenção, tanto no campo do urbanismo quanto no da gestão urbana.

Seja por meio da sua supressão direta, ou de normas que restrinjam o seu uso, como os toques de recolher; seja por meio de grades cercando praças, ou pregos colocados no chão sob os viadutos, para que eles não sirvam de abrigo; seja por meio da prática da violência por parte do Estado ou de grupos paramilitares, as interdições, privatizações ou supressões do espaço público constituem um cerceamento à democracia. Cabe considerar, portanto, que para a vida democrática, o espaço público representa a possibilidade da existência, da presença, da manifestação e da publicidade dos pontos de vista daqueles que são completamente desprovidos de espaço na cidade e de meios para interferir nos processos políticos. É onde esses podem se fazer ouvir com maior ênfase. Mesmo diante das capacidades ampliadas de comunicação via redes sociais, percebe-se que o espaço público da cidade se mantém como palco e arena da vida política, como lugar do encontro, do apoio mútuo ou do tensionamento político, permanecendo central.

O espaço público se reafirma, de fato , como bem comum, de uso comum, no sentido atribuído por David Harvey, anteriormente citado. Frente ao aumento da relevância do espaço público para a sociabilidade urbana, as disputas pelo espaço público reforçam sua vitalidade, sua necessidade, evocando seu papel de protagonista na transformação de valores e na construção de uma sociedade mais adequada aos tempos atuais. Uma sociedade com mais pluralidade e respeito às diversas histórias e memórias sociais. A democracia precisa preservar o espaço público, para preservar a si mesma e impedir que ações políticas de controle das potências transformadoras do espaço público venham a constranger a própria democracia. O controle do espaço público necessita, portanto, existir a partir de instâncias democráticas.

notas

NE — Este artigo foi originalmente apresentado no evento 17º SHCU | 1822-2022: futuros, demolição & progresso, em dezembro de 2022.

1
HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. Sao Paulo, Martins Fontes, 2014.

2
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural na esfera pública: investigação quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro, Tempo brasileiro,1984.

3
Idem, ibidem.

4
MENESES, Ulpiano. Morfologia das cidades brasileiras: introdução ao estudo histórico da iconografia urbana. Revista USP, n. 30, São Paulo, Edusp, 1996, p. 144-155.

5
MONNET, J. La symbolique des lieux : pour une géographie des relations entre espace, pouvoir et identité, Cybergeo : European Journal of Geography [En ligne], Politique, Culture, Représentations, document 56, mis en ligne le 07 avril 1998, consulté le 06 juillet 2021 <https://tinyurl.com/yc7yh4b6>.

6
MORAES, Lauro A.; ROSANELI, Alessandro Filla. A mídia e o novo espaço público. In Olhares pelo Espaço Público. Curitiba, UFPR, 2019.

7
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Centauro, 2006.

8
CULLEN, Gordon. A paisagem urbana. Lisboa, Edições 70, 1996.

9
MESENTIER, Leonardo Marques de; MOREIRA, Clarissa da Costa. Produção da paisagem e grandes projetos de intervenção urbana: o caso do Porto maravilha no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 16, n. 1, 2014.

10
COLCHETE FILHO, A. F. et al. Porto Maravilha e sua nova centralidade: as contribuições do mobiliário urbano e da arte pública para a ressignificação da área. Oculum Ensaios, v. 17, e204321, 2020.

11
LIMA, Tania Andrade; SENE, Glaucia Malerba; SOUZA, Marcos André Torres de. Em busca do Cais do Valongo, Rio de Janeiro, século 19. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, v. 24, n. 1, 2016, p. 299–391.

12
GERBASE, Fabíola. Moradores do Morro da Providência protestam contra a interdição da praça. O Globo, Rio de Janeiro, 19 jul. 2011 <https://tinyurl.com/m23jt4e5>.

13
CORRÊA, Roberto Lobato. Monumentos, política e espaço. Geo Crítica — Scripta Nova — Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, v. IX, n. 183, Barcelona, Universidad de Barcelona, 15 feb. 2005 <https://tinyurl.com/26rjub7s>.

14
Statue of U.K. slave trader fished from harbor amid backlash over another of Scouts founder. CBS News, 11 jun. 2020 <https://tinyurl.com/ykw3z7y6>.

15
Manifestantes ucranianos derrubam estátua de Lênin em Kiev. G1, São Paulo, 8 dez. 2013 <https://tinyurl.com/2vr25mm3>.

16
Monumento a Federico Garcia Lorca. Demonumenta <https://tinyurl.com/4y5e3mbr>.

17
Monumento IX de novembro. Fundação Oscar Niemeyer <https://tinyurl.com/bdhzzwzw>.

18
Candidato que destruiu placa de Marielle é deputado mais votado no Rio. Veja, São Paulo, 8 out 2018 <https://tinyurl.com/yks3wrhm>.

19
Marielle Franco recebe mais uma homenagem internacional e terá rua com seu nome em Lisboa. Revista Forum, 27 jul. 2019 <https://tinyurl.com/4u5vtwpk>.

20
SOUZA, Rafael Nascimento de. Moradores de Niterói fotografam placa de rua em Icaraí que recebeu nome do ator Paulo Gustavo. O Globo, Rio de Janeiro, 20 mai. 2021 <https://tinyurl.com/5b7f4c6s>.

sobre os autores

Clarissa da Costa Moreira é arquiteta e urbanista (FAU UFRJ, 1995), mestre em Urbanismo (Prourb UFRJ, 2002), doutora em Filosofia da Arte e da Arquitetura (Universidade Paris 1 — Sorbonne, 2007) e professora doutora da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. Publicou o livro Ville et Devenir: Dogville ou le devenir-village des métropoles (Paris, L’Harmattan, 2009).

Leonardo Marques de Mesentier é arquiteto e urbanista (FAU UFRJ, 1983), mestre (1992) e doutor (2001) em Urbanismo pelo IPPUR UFRJ. Professor doutor da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. Publicou “Produção da paisagem e grandes projetos de intervenção urbana: o caso do Porto Maravilha no Rio de Janeiro Olímpico”. (Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 16, n. 1, mai. 2014).

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293.02 espaço público
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293

293.00 tectônica

A tectônica de Karl Bötticher e o canto dos pontos de apoio

Marcos Faccioli Gabriel

293.01 arquitetura de interiores

A influência de Janete Costa na arquitetura de interiores em Fortaleza CE

Beatriz Helena Nogueira Diógenes, Márcia Gadelha Cavalcante and Tania de Freitas Vasconcelos

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