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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O artigo analisa a atuação da arquiteta e urbanista Enilda Ribeiro no debate político-profissional, em defesa da autonomia do campo. Destaca a sua importância como mulher pioneira e seu papel no fortalecimento da profissão.

english
The article analyzes the role of architect and urban planner Enilda Ribeiro in the political-professional debate, in defense of the autonomy of the field. It highlights her importance as a pioneering woman and her role in strengthening the profession.

español
El artículo analisa la actuación de la arquitecta y urbanista Enilda Ribeiro en el debate político-profesional, en defensa de la autonomía del campo. Resalta su importancia como mujer pionera y su papel en el fortalecimiento de la profesión.


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MARTINS, Camila Casarotto; CANEZ, Anna Paula. Enilda Ribeiro. Uma mulher arquiteta e urbanista em defesa da profissão. Arquitextos, São Paulo, ano 24, n. 294.00, Vitruvius, nov. 2024 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/24.294/9028>.

Figura notável no contexto da arquitetura moderna no Rio Grande do Sul e na luta pela autonomia do campo profissional, Enilda Ribeiro (Rio Grande, 1923 — Porto Alegre, 2010) é uma mulher a ser reverenciada. A arquiteta e urbanista é lembrada principalmente pela coautoria do projeto do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, que desenvolveu com o arquiteto Demétrio Ribeiro em 1952, em Porto Alegre, e pelo seu expurgo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul — UFRGS, em 1964, ano em que a Ditadura Civil-Militar decretou o Ato Institucional n. 1 — AI-1 no Brasil.

No entanto, o conhecimento sobre Enilda Ribeiro merece ser ampliado para além desses fatos. O presente artigo é um recorte da dissertação Profissão: arquiteta: Enilda Ribeiro e as memórias do debate político-profissional no seu arquivo pessoal, realizada no Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul — PPGMusPa UFRGS. A partir da pesquisa no arquivo pessoal da arquiteta, sob guarda do Instituto de Arquitetos do Brasil Departamento Rio Grande do Sul — IAB RS, e nos arquivos de instituições que tiveram relação com Enilda Ribeiro, foi possível reconhecer a sua importância na luta pela autonomia do campo profissional, principalmente por meio das entidades de classe na década de 1980.

Por vezes oculta atrás do nome de Demétrio Ribeiro, que foi seu professor, colega e companheiro, Enilda Ribeiro foi uma mulher pioneira em seus espaços de ação, em contextos marcadamente masculinos. Muitas vezes longe dos holofotes, a favor da luta coletiva, foi sempre diligente na defesa da profissão. Se a Política do CAU para a Equidade de Gênero (1) tem como um dos seus eixos a Equidade na História da Arquitetura e Urbanismo, este trabalho contribui para a visibilização de uma mulher fundamental para a história da profissão.

Uma mulher na arquitetura moderna em Porto Alegre

Enilda Ribeiro iniciou seus estudos acadêmicos em 1946, quando foi habilitada a ingressar no curso de Arquitetura do IBA, que havia entrado em funcionamento no ano anterior. Esse foi o primeiro curso superior de Arquitetura no Rio Grande do Sul — antes havia apenas um curso técnico na área, na mesma Instituição e, posteriormente, o curso de Engenheiros-Arquitetos da Escola de Engenharia da URGS (atual UFRGS) (2). Em 1950, na formatura da segunda turma do curso, composta apenas por homens, Enilda Ribeiro tornou-se a primeira mulher graduada em curso superior de Arquitetura no Rio Grande do Sul. Já em 1954, Enilda Ribeiro ingressou no curso de Urbanismo, já criado na Faculdade de Arquitetura da UFRGS. Em 1955, recebeu o diploma de urbanista, sendo também a primeira mulher a obter esse título no Rio Grande do Sul (3).

Naquele período, a arquitetura moderna passava por um período de afirmação em Porto Alegre, que representava também a busca da profissão por sua identidade e autonomia. Ao longo da sua formação, Enilda Ribeiro foi impactada pelas ideias modernas, principalmente sob influência do meio uruguaio. Em 1948, a visita do arquiteto uruguaio Maurício Cravotto ao curso de Arquitetura do IBA (4) evidenciou a influência do país vizinho na arquitetura praticada no Rio Grande do Sul. Demétrio Ribeiro, cuja formação como arquiteto deu-se em Montevidéu, foi um dos principais representantes e pensadores da arquitetura moderna no estado e defendia maior aproximação com as aspirações populares e com o meio cultural; inclusive criticava a perspectiva alienante de parte dos seguidores da vertente moderna no restante do Brasil.

 

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Ainda como estudante, Enilda Ribeiro participou de atividades da Associação Araújo Porto Alegre — Aapa. Criada em 1947 por alunos de Artes e Arquitetura do IBA, a associação notabilizou-se pelas viagens de estudos que visavam à aproximação com o povo brasileiro, à valorização da cultura popular e à busca por uma estética moderna. Enilda Ribeiro participou da viagem à Bahia e a Minas Gerais, em 1948, em que os participantes desenharam, pintaram ou esculpiram os locais visitados e, posteriormente, realizaram exposições com as produções. Nessa viagem, estavam presentes o arquiteto Fernando Corona, seu filho Luís Fernando Corona, Carlos Fayet, Vitório Gheno, Christina Balbão, entre outros nomes proeminentes das artes e da arquitetura.

 

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As influências da arquitetura moderna podem ser percebidas na produção arquitetônica de Enilda Ribeiro, principalmente entre as décadas de 1950 e 1960. Em um período efervescente, a arquiteta participou de diversos concursos de projetos no estado, como para a Sede da Sociedade dos Amigos da Praia do Imbé (1951, premiado em 2º lugar); um hotel no Balneário de Atlântida (1951, premiado em 3º lugar, em coautoria com Demétrio Ribeiro) e dos planos diretores de Passo Fundo (1952), Gramado (1956), Marau (1957), Espumoso (1958), entre outras cidades, todos eles em colaboração com outros arquitetos. Além disso, elaborou projetos de residências unifamiliares, analisados por Daniel Pitta Fischmann (5), entre outras criações como profissional liberal, urbanista na Prefeitura Municipal de Porto Alegre ou ainda estudante no IBA.

Mas seu trabalho mais expressivo e reconhecido como exemplar da arquitetura moderna em Porto Alegre é o prédio do Colégio Estadual Júlio de Castilhos. Criado em coautoria por Enilda Ribeiro e Demétrio Ribeiro, o projeto “Julinho” venceu o concurso público promovido pelo governo estadual em 1952. É citado em um dos livros referenciais dessa vertente na cidade, produzido por Alberto Xavier e Ivan Mizoguchi em 1987. Sobre o projeto, os autores evidenciam a perspectiva social presente na sua concepção:

“Disposto em terreno triangular de grandes dimensões, compreende dois blocos de quatro pavimentos e auditório, articulados segundo um eixo de simetria. Filia-se, de certo modo, às pesquisas de alguns arquitetos europeus, notadamente André Lurçat na sua fase de pós-guerra. No depoimento dos autores, a solução adotada reflete a discussão autocrítica da arquitetura moderna em curso naqueles anos e a busca de uma arquitetura capaz de valorizar no subconsciente das pessoas o seu próprio lastro cultural, ao invés de acentuar a superioridade da cultura erudita, posição alheia às tendências predominantes no Brasil. Dentro dessa linha esforçam-se por uma “visão estética afim à do povo”, através da criação de espaços claramente legíveis, adequados à superposição de funções diferenciadas, como circulação e reunião de grupos informais” (6).

Em 2016, foi solicitado o tombamento municipal do prédio do Julinho, justificado pelas suas soluções arquitetônicas de concepção modernista, tendo sido tombado em definitivo em 2024 (7).

 

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Arquiteta, urbanista e comunista: os expurgos na Ditadura Civil-Militar

Ao longo da sua formação acadêmica, Enilda Ribeiro conviveu com pessoas identificadas com a esquerda comunista em Porto Alegre — muitos deles vinculados ao Partido Comunista Brasileiro — PCB —, como Edvaldo Pereira Paiva, Edgar Graeff e Demétrio Ribeiro, como professores, e Carlos Fayet e Nelson Souza, como colegas. Naquele período, Enilda Ribeiro se posicionava claramente como comunista: “e nós éramos […] [como] o Niemeyer, por exemplo, […] [que] sempre foi um comunista que diz que era comunista" (8).

Sob esse espectro político-ideológico, a arquiteta foi tocada pelos ideais de uma arquitetura mais democrática, comprometida com a realidade social, em busca de uma sociedade justa e igualitária. Em 1954, Enilda Ribeiro, Demétrio Ribeiro e Nelson Souza, em coautoria, apresentaram o artigo “Situação da arquitetura brasileira” (9) no 4º Congresso Brasileiro de Arquitetos, em São Paulo. No texto, que se tornou uma das principais referências críticas à arquitetura moderna no Brasil, os autores evidenciavam sua filiação ao Realismo Socialista, que vinculava a arte aos aspectos sociais e criticava a dimensão criadora individual do artista. Dessa forma, o texto era crítico aos arquitetos brasileiros que se direcionavam para uma minoria social, alienados da realidade social do seu meio e defendia a democratização da arquitetura, voltada para a satisfação dos problemas da população brasileira.

Sua posição à esquerda evidencia-se em eventos dos quais participou na década de 1950. Um deles é a 2ª Assembleia Nacional de Mulheres, ocorrida em outubro de 1953, em Porto Alegre — Enilda Ribeiro compôs a mesa de abertura. Convocado pela Federação de Mulheres do Brasil, de forte influência comunista, o evento debateu a defesa da paz, da infância e dos direitos da mulher, assim como melhores condições de vida. No mesmo ano, em novembro, ocorreu o Festival Crioulo pela Paz, também em Porto Alegre, de grande apelo popular, com manifestações artísticas ligadas às tradições regionais. Dessa vez, o evento foi realizado por representantes do Movimento dos Partidários da Paz, organização internacional de liderança comunista — e Enilda Ribeiro estava entre os nomes que fizeram sua convocatória.

Tanto a 2ª Assembleia Nacional de Mulheres quanto o Festival Crioulo pela Paz foram monitorados pela Delegacia de Ordem Social e constam nos seus relatórios (10). Mais tarde, a imagem de Enilda Ribeiro como comunista e os registros que evidenciavam sua posição político-ideológica foram utilizados como justificativa para as punições sumárias que sofreu na Ditadura Civil-Militar.

Em 1964, quando o governo militar decretou o AI-1, Enilda Ribeiro lecionava na Faculdade de Arquitetura da UFRGS, atividade que iniciou em 1953. Após ser investigada pela Comissão Especial de Investigação Sumária da UFRGS (11), foi expurgada da Universidade. Desde 1960, Enilda exercia também o cargo de urbanista na Secretaria Municipal de Obras e Viação da Prefeitura Municipal de Porto Alegre — Smov PMPA. A colaboração entre os órgãos repressores da Ditadura Civil-Militar, que seguiam uma linha de coerência no âmbito municipal, estadual e federal, levou também à demissão de Enilda Ribeiro das suas funções na prefeitura.

Primeiros passos na luta pela autonomia da profissão

O curso de Arquitetura do IBA, marcado pelo espectro da esquerda comunista, era considerado subversivo. Rivalizava com o curso de Engenheiros-Arquitetos da Escola de Engenharia — EE, considerado reacionário. Enquanto o curso do IBA contava com notórios comunistas em seu quadro de professores, o curso da EE tinha como figura de destaque o professor Eugênio Steinhoff, austríaco naturalizado estadunidense (12). Foi nesse clima de polarização entre os cursos, no contexto da Guerra Fria, que se lançou a proposta de criação de uma Faculdade de Arquitetura, independente das Artes e das Engenharias. A ideia, no entanto, teve grande resistência por parte dos engenheiros, que defendiam a criação de um Instituto de Arquitetura anexo à EE.

Diante desse cenário, estudantes do IBA mobilizaram a campanha Por Uma Faculdade de Arquitetura — Pufa (13). Enilda Ribeiro era uma das lideranças, ao lado de Vera Fabrício, Carlos Fayet, Paulo Vallandro, entre outros alunos e alunas. A campanha contou com o apoio de diversas entidades profissionais, como o IAB; entidades estudantis, como a União Nacional dos Estudantes; e com nomes importantes, como o arquiteto Oscar Niemeyer e os senadores Salgado Filho e Ernesto Dornelles.

 

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A criação de uma unidade de ensino independente representava um avanço fundamental para a autonomia da profissão. Ali provavelmente iniciou-se a militância de Enilda Ribeiro em torno da política profissional, uma luta que marcou sua história de vida. Em 1952, enfim foi criada a Faculdade de Arquitetura da recém federalizada UFRGS, a partir da fusão dos dois cursos superiores de Arquitetura existentes em Porto Alegre.

A primeira mulher presidenta do IAB RS

Enilda Ribeiro provavelmente iniciou sua relação com o IAB logo após a fundação do Departamento do Rio Grande do Sul, em 1948. Uma pequena anotação escrita à mão pela arquiteta, em um papel do seu arquivo pessoal, revela que, em 4 de novembro de 1949, ela se associou ao IAB RS. Como ainda era estudante, foi registrada como sócia aspirante; mas, logo após a sua diplomação, já se tornou sócia titular e passou a se envolver nas atividades de secretaria do Instituto. Embora a pesquisa não tenha encontrado muitos registros, é provável que Enilda Ribeiro tenha mantido relação próxima com o IAB RS ao longo das décadas de 1950, 1960 e 1970.

Mas foi a partir da promulgação da anistia que o envolvimento de Enilda Ribeiro com o IAB RS aprofundou-se e que se iniciou uma década de efervescência na sua militância pela política profissional nas entidades de classe. Em 1979, a Lei da Anistia permitiu que Enilda Ribeiro voltasse às suas atividades profissionais. No entanto, a arquiteta optou por solicitar sua aposentadoria pela prefeitura e por não retornar à UFRGS. Enilda Ribeiro “declarou não ter aceito o seu cargo de volta por achar mais importante lutar pela classe dentro de uma entidade como o IAB do que voltar para as condições atuais de ensino na Universidade” (14).

Em 1980, Enilda Ribeiro foi eleita presidenta do IAB RS — a primeira mulher a ocupar essa posição, um reconhecimento aos anos de dedicação à profissão e ao instituto.

No discurso de posse da diretoria eleita para o biênio 1980-1981, fica claro o direcionamento que a gestão, presidida por Enilda Ribeiro, daria à entidade. Eis um trecho do discurso:

“Temos a responsabilidade social de atuar junto à comunidade a fim de colaborar para que o povo compreenda a situação desses problemas que são fundamentais para a sociedade.
Essa atividade refletirá, necessariamente o pensamento da maioria, na medida em que houver uma participação mais expressiva dos arquitetos nas atividades da Entidade.
A primeira função do IAB é o convívio entre os arquitetos para que cada um possa ultrapassar os limites de sua situação profissional isolada e debater, trocar ideias, formar e defender a sua opinião sobre a profissão em seu conjunto e, assim contribuir para o desenvolvimento da arquitetura” (15).

No discurso de posse, Enilda Ribeiro, representando a coletividade, enfatiza o papel social da profissão e a participação de arquitetas e arquitetos nas atividades da entidade — posição alinhada ao que ela defendia nos seus primeiros anos de exercício da profissão. Nesse sentido, uma das preocupações de Enilda Ribeiro em sua gestão foi a interiorização do IAB RS, de maneira que os profissionais das cidades do interior do estado também fossem integrados às discussões.

Uma evidência disso é a realização do I Encontro Estadual de Arquitetos, em junho de 1980, uma parceria entre o IAB RS e o Sindicato dos Arquitetos no Estado do Rio Grande do Sul — Saergs. Os documentos do arquivo pessoal de Enilda Ribeiro revelam sua capacidade de mobilização da classe e sua aplicação na organização do evento, desde os convites aos participantes e a divulgação para a imprensa até a produção dos relatórios.

 

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O conselho profissional próprio e a reforma da legislação profissional

O 1º Encontro Estadual de Arquitetos centrou-se nas discussões sobre a reforma da legislação profissional e a criação de um conselho profissional próprio para arquitetura e urbanismo — pautas que concentraram os debates profissionais naquele década. Ao lado de Enilda Ribeiro e do arquiteto Newton Burmeister, a mesa de abertura do evento contou com as presenças de Fernando Burmeister, da Direção Nacional do IAB, e Alfredo Paesani, da Federação Sindical dos Arquitetos, que trariam informações importantes sobre a reformulação da Lei n. 5.194, de 24 de dezembro de 1966.

 

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Essa legislação regulava o exercício das profissões de Engenheiro, Arquiteto e Engenheiro-Agrônomo e criava o Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia e Conselhos Regionais — Sistema Confea/Crea. No entanto, era uma legislação gestada sem a devida participação dos arquitetos (16) e há muito tempo questionada por eles, que reivindicavam autonomia para o exercício e fiscalização da profissão. Em um texto que provavelmente foi proferido na abertura do 1º Encontro Estadual de Arquitetos por Enilda Ribeiro, a arquiteta diz:

“Nós, os arquitetos, estamos engajados numa luta por novas condições legais do exercício profissional.
Queremos que o nosso campo de atribuições seja respeitado e consagrado em lei, e que não fique na dependência de resoluções de um conselho.
Queremos que, da mesma forma que as outras profissões, o exercício da arquitetura seja tarefa dos que estudaram arquitetura.
Queremos um órgão de fiscalização eleito pelos arquitetos, que possa lutar por maiores garantias de trabalho” (17).

Em 1979, em Brasília, o 10º Congresso Brasileiro de Arquitetos — CBA aprovou um anteprojeto de lei elaborado pela Direção Nacional do IAB — IAB DN, que demonstrava a insatisfação geral dos arquitetos que Enilda Ribeiro ecoou naquele pronunciamento. Em seu documento final, o evento recomendava um amplo debate sobre o anteprojeto entre os profissionais, por meio das suas entidades e órgãos representativos. Na gestão do IAB RS entre 1980 e 1981, Enilda Ribeiro colocou em prática as deliberações do 10º CBA, como se percebeu no 1º Encontro Estadual de Arquitetos e em outras ações promovidas pela diretoria, em conjunto com o Saergs e os arquitetos do Crea RS.

Entre 1983 e 1985, Enilda Ribeiro ocupou outra posição importante: naquele triênio, a arquiteta exerceu a função de tesoureira no IAB DN, presidido pelo arquiteto Telmo Magadan. No entanto, seu papel extrapolou a tesouraria. Além de ter se dedicado à reestruturação financeira da entidade, Enilda Ribeiro foi responsável por mobilizar os debates, em âmbito nacional, sobre a reformulação da legislação profissional e criação do conselho profissional, tal qual recomendava o documento final do 10º CBA.

Ainda em 1983, foi criada a Comissão Diretora das Entidades Nacionais — Cden, órgão conveniado com o Confea, que deveria promover debates entre as entidades vinculadas ao sistema. Entre 1984 e 1985, como secretária da Cden, Enilda Ribeiro coordenou os debates sobre a legislação profissional nos Departamentos Estaduais do IAB e presidiu os encontros regionais em Belo Horizonte, Fortaleza e Porto Alegre, além de editar boletins para publicizar as ações da Comissão. Figura central para a organização dos eventos e a mobilização da classe, a arquiteta cumpriu um extenso cronograma de encontros, que culminou na posição nacional do IAB sobre a legislação profissional, deliberada na 70ª reunião do Conselho Superior do IAB — Cosu, em 1984.

Em 1986, quando a gestão do IAB DN já havia se encerrado, Enilda Ribeiro assumiu a posição de coordenadora da Cden. Naquele ano, o debate sobre a legislação foi realizado entre as áreas profissionais vinculadas ao sistema Confea/Crea. Constatado um cenário político desfavorável para a reforma da lei n. 5194/66, fortaleceu-se a ideia de criar um conselho interprofissional, composto por subsistemas autônomos para cada profissão. No entanto, a ideia encontrou resistência na área da engenharia, que não chegou a um consenso sobre a sua posição, o que acabou por paralisar o processo de discussão que havia se iniciado. Restava frustrada a proposta de reformulação da legislação, que posteriormente foi retomada.

Décadas depois, após mais de meio século de discussões sobre a reformulação da legislação profissional, foi promulgada a Lei n. 12.378, de 31 de dezembro de 2010. A nova legislação regulamentou o exercício da profissão de arquiteto e urbanista e criou o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil — CAU BR e os Conselhos Estaduais. A transição do Sistema Confea/Crea para o CAU deu-se ao longo de 2011, até que, em 15 de dezembro daquele ano, foi oficialmente fundada a nova autarquia.

Enilda Ribeiro faleceu em 24 de abril de 2010, no mesmo ano em que, meses depois, o CAU foi criado. Infelizmente a arquiteta não presenciou a concretização de um dos seus principais objetivos na profissão, mas suas lutas não foram em vão e fortaleceram a arquitetura e o urbanismo, para que essa área exerça hoje seu papel social com autonomia.

A mulher por trás dos papéis e escritos

Os documentos do arquivo pessoal de Enilda Ribeiro transparecem o seu papel como alguém que trabalhou diligentemente pela profissão, principalmente nas entidades profissionais. A arquiteta manteve uma relação próxima com o IAB ao longo de toda a sua vida profissional, o que culminou no período em que foi presidenta do IAB RS e tesoureira do IAB DN. Sua atuação como secretária e, posteriormente, coordenadora da Cden também foi de grande valia para o avanço no debate político-profissional sobre a reforma da legislação e a criação do conselho profissional.

Os papéis do Arquivo Enilda Ribeiro revelam também traços do seu comportamento. A arquiteta trabalhou muitas vezes de forma silenciosa, nos bastidores. Em muitos documentos, percebe-se a sua caligrafia em rascunhos de textos que não foram assinados por ela — ou foram discursos proferidos por outras pessoas, ou foram posteriormente publicados em nome das entidades com as quais se envolveu. Não por acaso, a pesquisa revelou poucas publicações ou artigos em nome de Enilda Ribeiro.

 

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O que os documentos transparecem é que ela estava comprometida com a coletividade, com o fortalecimento da profissão e com a participação de arquitetas e arquitetos na construção da luta. Isso se revela também ao se analisar o conjunto documental como um todo. Entendido como um arquivo pessoal, o Arquivo Enilda Ribeiro remete aos gestos de arquivamento de si (18), que envolvem a seleção arbitrária e intencional de registros pessoais que construam uma imagem social para a posteridade. No entanto, o arquivo pessoal de Enilda Ribeiro revela menos uma preocupação com a perpetuação do seu nome e mais o seu comprometimento com a profissão.

Os documentos são testemunhas do debate político-profissional, principalmente na década de 1980, e foram guardados e acumulados pela arquiteta. Não se sabe ao certo a sua intenção, mas é provável que houvesse uma preocupação com a memória da profissão, à qual ela atribuía algum valor, associada a um perfil acumulador e sem organização sistemática. Posteriormente, após a sua morte, os documentos foram reunidos pelo seu secretário pessoal e doados ao IAB RS, por escolha dos familiares da arquiteta.

Essa perspectiva é fundamental para se analisar a relevância de Enilda Ribeiro na história da arquitetura e urbanismo. Como Ana Gabriela Lima (19) ressalta, a história da profissão enfatiza as figuras superlativas e as obras de prestígio, principalmente de arquitetos homens brancos. No entanto, a autora propõe que, ao se analisar a história das arquitetas na profissão, tenha-se em mente que suas contribuições muitas vezes estão escondidas atrás das pranchetas, silenciadas em projetos colaborativos, geralmente assinados pelos homens, que muitas vezes são seus maridos ou companheiros.

Embora Enilda Ribeiro tenha obras superlativas em seu currículo, ressaltam-se os nomes dos homens que a acompanharam nos projetos — como é o caso do projeto do “Julinho”, que muitas vezes tem Demétrio Ribeiro citado como seu único ou principal autor (20). Quando atuante nas entidades profissionais, as contribuições de Enilda Ribeiro nem sempre estão evidentes em publicações ou discursos em seu nome, mas os papéis do seu arquivo pessoal revelam que ela estava lá, nos bastidores, na organização da classe, na mobilização das discussões, em um trabalho dedicado à coletividade. É para esse reconhecimento que esta pesquisa pretende contribuir.

Portas abertas por um arquivo pessoal

O arquivo pessoal de Enilda Ribeiro, guardado pelo IAB RS, instigou a pesquisa que deu origem à dissertação. Graças à preocupação do Instituto com a sua memória e ao trabalho de organização sistemática dos seus acervos, desenvolvido em parceria com o curso de Museologia da UFRGS e com o CAU RS desde 2019, foi possível acessar os documentos, explorar seus conteúdos e analisar as suas nuances.

Arquivo Enilda Ribeiro no IAB RS durante a pesquisa [Acervo Camila Casarotto, 2021]

A preservação dos acervos de arquitetura e urbanismo no Brasil é assunto urgente. As notícias sobre a destinação dos acervos de Paulo Mendes da Rocha (em 2020) e de Lucio Costa (em 2021) para a Casa da Arquitectura, em Portugal, suscitaram debates e acenderam alertas entre profissionais do patrimônio cultural, entre eles arquitetos/as, arquivistas e museólogos/as.

Esta pesquisa, então, é mais um sinal para a importância de preservar os acervos de arquitetura no Brasil — não apenas plantas, croquis, maquetes e outros materiais típicos do fazer arquitetônico, mas também os acervos arquivísticos, tal qual o arquivo pessoal de Enilda Ribeiro, que guarda testemunhos do debate político-profissional e da defesa da profissão na segunda metade do século 20. Com a preservação desses acervos no Brasil — inclusive a sua patrimonialização como forma de chancela e maior proteção —, é possível potencializar, em seu próprio território, a realização de pesquisas, exposições e discussões sobre temas fundamentais da história da arquitetura.

Nesta investigação, somente porque este arquivo foi mantido pelo IAB RS, tendo passado recentemente por tratamento arquivístico, é que foi possível constatar a importância de Enilda Ribeiro e contribuir para a sua visibilização e reconhecimento. Muitas vezes relegada ao papel de coadjuvante nos seus contextos de atuação, por vezes apagada atrás dos homens arquitetos e urbanistas, Enilda Ribeiro cumpriu papel crucial, como articuladora nas entidades, para a conquista de autonomia profissional e de um conselho próprio, concretizado na criação do CAU.

Seus itinerários nas áreas da arquitetura e do urbanismo, em defesa da profissão desde a época de estudante, bem como os percalços que enfrentou — em especial a perseguição pela Ditadura Civil-Militar —, credenciaram a arquiteta a conquistar o reconhecimento dos seus pares e ocupar posições de destaque no campo profissional. Por isso, Enilda Ribeiro merece ser lembrada e celebrada, em âmbito regional e nacional, como uma das protagonistas na construção da identidade profissional de arquitetas e arquitetos.

notas

1
COMISSÃO TEMPORÁRIA DE POLÍTICA PARA A EQUIDADE DE GÊNERO. Política do CAU para a Equidade de Gênero. Brasília, CAU BR, 2021 <https://tinyurl.com/4hzk2nfs>.

2
FIORI, Renato Holmer. Arquitetura moderna e ensino de arquitetura: os cursos em Porto Alegre de 1945 a 1951. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, PUC RS, 1992.

3
ROVATI, João Farias. La modernité estailleurs: "ordre et progrès" dans l'urbanisme d'Edvaldo Pereira Paiva (1911-1981). Tese de doutorado. Paris, Université de Paris VIII, 2001, p. 266 <https://tinyurl.com/22vs3m2e>.

4
O Arquivo Histórico do Instituto de Artes — Ahia UFRGS dispõe de ampla documentação relativa à visita do arquiteto Maurício Cravotto ao IBA em 1948.

5
FISCHMANN, Daniel Pitta. Modernas e gaúchas: residências unifamiliares em Porto Alegre 1949-1970. Tese de doutorado. Porto Alegre, Propar UFRGS, 2023 <https://tinyurl.com/5xsb3nr4>.

6
XAVIER, Alberto; MIZOGUCHI, Ivan. Arquitetura moderna em Porto Alegre. São Paulo, Pini, 1987, p. 104-105.

7
O tombamento definitivo do Colégio Estadual Júlio de Castilhos foi publicado no Diário Oficial de Porto Alegre em 13 de março de 2024 (p. 51-52).

8
MANSAN, Jaime Valim. Os expurgos na UFRGS: afastamentos sumários de professores no contexto da Ditadura Civil-Militar (1964 e 1969). Dissertação de mestrado. Porto Alegre, PPGH PUCRS, 2009, p. 126.

9
RIBEIRO, Enilda; RIBEIRO, Demétrio; SOUZA, Nelson. Situação da arquitetura brasileira. In XAVIER, Alberto (org.). Depoimento de uma geração: arquitetura moderna brasileira. Edição revista e ampliada. São Paulo, Cosac & Naify, 2003, p. 204-207.

10
Disponíveis apenas para consulta local no arquivo do Núcleo de Pesquisa História — NPH UFRGS, Fundo Dops, discos n. 9-10.

11
O documento de convocação de Enilda Ribeiro para apresentar sua defesa oral à Ceis, assinado por Nagipe Buaes (presidente da comissão), integra o Arquivo Enilda Ribeiro, sob guarda do IAB RS.

12
NUNES, Lívia Fernanda Ribeiro. Os 5 professores comunistas: Demetrio Ribeiro, Edgar A. Graeff, Edvaldo P. Paiva, Enilda Ribeiro, Nelson Souza. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, Propar UFRGS, 2016, p. 162-163.

13
RIBEIRO, Enilda; CARVALHO, Vera Fabrício. Por uma faculdade de arquitetura — Pufa. In LICHT, Flávia Boni; CAFRUNI, Salma. Arquitetura UFRGS — 50 anos de história. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2002, p. 39-41.

14
Homenagem aos professores anistiados. Arquiteto/RS — Jornal do Sindicato dos Arquitetos no Estado do Rio Grande do Sul, n. 15, Porto Alegre, set. 1980. Arquivo do Saergs.

15
Discurso de posse — Instituto de Arquitetos do Brasil — Departamento do Rio Grande do Sul. Arquivo Enilda Ribeiro/IAB RS.

16
MORENO, Júlio; ECHEVERRIA, Leonardo. Memória da luta pela criação do CAU e do ano de sua fundação. Edição digital, CAU BR, 2020, p. 9 <https://tinyurl.com/58xk4cjy>.

17
Documento sem identificação, escrito à mão por Enilda Ribeiro. Arquivo Enilda Ribeiro/IAB RS.

18
ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos históricos, v. 11, n. 21, Rio de Janeiro, 1998, p. 9-34 <https://tinyurl.com/2e9nrps6>.

19
LIMA, Ana Gabriela Godinho. Arquitetas e arquitetura na América Latina do século XX. São Paulo, Altamira Editorial, 2014 <https://tinyurl.com/25hp5feh>.

20
Um exemplo disso está no texto de justificativa para o tombamento do prédio do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, publicado no Diário Oficial de Porto Alegre (13 mar. 2024, p. 51-52), que menciona Enilda Ribeiro e Demétrio Ribeiro como autores do projeto, mas referencia apenas o arquiteto como responsável pela obra e destaca apenas a sua trajetória.

sobre as autoras

Camila Casarotto Martins é publicitária (2011) e museóloga (2023) graduada pela UFRGS e mestre pelo PPGMusPa UFRGS (2024).

Anna Paula Canez é arquiteta e urbanista (1989), mestra (1996) e doutora (2006) pelo Propar UFRGS. Professora adjunta (2017) na Faculdade de Arquitetura da UFRGS e professora permanente (2020) e coordenadora substituta (2023) do PPGMusPa UFRGS. Autora dos livros Fernando Corona e os caminhos da arquitetura moderna em Porto Alegre e Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole.

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