“A história é ao mesmo tempo límpida e obscura”.
Umberto Eco, A ilha do dia anterior
“Mas, em todo caso, tendo inimigos, também se terá amigos. Sustente uma opinião ‘sóbria’, imparcial sobre um assunto, e irá se indispor com ambos os lados. Um deles irá importuná-lo com seus desdéns e modismos de papagaio, o outro poderá declará-lo uma pessoa imprópria, perigosa, suspeita, um renegado, e ficará escrevendo relatórios literários sobre o senhor”.
V. Bielínski, Pensamentos e observações sobre a literatura russa
A partir de meados do século 18 iniciou-se uma parcial, porém significativa alteração na paisagem urbana de São Paulo. A cidade, que até então se caracterizava por edifícios construídos em taipa de pilão (a maioria de um só pavimento, com seus “portaes e alizares de páo”, como descreveu Morgado de Matheus em 1766(1), vê surgir no frontispício da igreja do Mosteiro de São Bento algo inusitado: a pedra de cantaria.
Empregada pela primeira vez, chamava duplamente a atenção da população: inicialmente pelas novidades que apresentava na configuração da fachada que embora conservasse aspecto tradicional no delineamento dos umbrais das portas e janelas, confeccionadas ainda em madeira, eram por sua vez emolduradas por duas cimalhas de cantaria de pedra e pilastras que arrematavam os beirais da igreja, decoração enriquecida por um frontão clássico, triangular, mas que ostentava uma tríade de óculos talhada em pedras que proporcionava melhor aeração e ampliava a iluminação interior da igreja. A torre seguia a forma usual, erguida em taipa de pilão, porém com os cunhais arrematados em pedra, com cúpula em forma de chapéu-de-bruxa.
Esses poucos elementos em cantaria de pedra conferiam, entretanto, uma feição algo diferente ao edifício, a qual, embora nesse primeiro experimento denotasse ainda insegurança e tímida aspiração plástica, pois que pouco fugia do padrão tradicional, mantendo os “portaes e alizares de páo”, instaurava todavia um jeito novo de edificar e ornar que se revelaria objeto de desejo pelas demais comunidades religiosas, lentamente planejado e por fim utilizado nas mais importantes igrejas do núcleo urbano paulistano na segunda metade do século 18, e que se configurou em novo paradigma da arquitetura religiosa paulistana, definindo sua paisagem urbana que assim permaneceu por largo do período, até o primeiro quartel do século 20.
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A cantaria de pedra parece ter sido utilizada nos anos 1760 no antigo Colégio Jesuítico por determinação de Morgado de Matheus, ao promover reformas para adapta-lo para sede de seu governo. As informações a respeito remeto ao próprio governante: “Mandei fazer quase que de todo novo a torre deste Colegio, todo o alpendre da portaria, todas as prisões e corpo da guarda deste governo e hospital dos soldados, e negros […] e uma varanda que era muito necessária para o desafogo dos corredores, que são muito abafadiços” (2).
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A Sé de São Paulo talvez tenha sido a primeira a manifestar interesse pelo novo paradigma em obra contratada poucos anos depois com recursos vindos da Corte, muito embora a sua consecução veio a ser interrompida em meio à execução por razões alheias à vontade da Cúria mas cujos membros se notabilizarão pelo empenho e determinação com que manobraram interesses privados e públicos que concorriam àquela altura para viabilizar a conclusão do frontispício da igreja Matriz, e, com isso, tornando acessível a todos interessados contratar a única força-de-trabalho presente na cidade capaz de realiza-la (3).
Assim, a obra da nova Matriz (4) só se concluiu entre os anos 70 e 80 do século 18, mesmo período em que as duas Carmos (que apreciaremos em seguida, em especial a da Ordem Terceira pois nos possibilita conhecer em mais detalhe como se processou a introdução da pedra de cantaria à taipa de pilão) completavam seus frontispícios ornados igualmente em pedra de cantaria.
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A suspensão da obra da Sé, todavia, não impediu que a comunidade carmelitana aspirasse a empreender obras com o mesmo propósito naqueles anos 1760/1770. Lamentavelmente, entretanto, a Província de Santo Elias nada conservou da documentação desse período; resta-nos hipóteses que conjecturamos a partir de documentos conservados pela Ordem Terceira do Carmo. Esses informam relativamente às obras que os Religiosos do Carmo realizavam então, e que a Ordem Terceira resolvem, pari passo, iniciar obras de edificação e reformas, que acabariam por construir a nova capela bem ao lado da torre e igreja da Ordem Primeira, num mesmo alinhamento, formando assim uma composição arquitetônica assaz interessante, a qual seria denominada por Mário de Andrade de “partido carmelitano tradicional” da antiga Província de Santo Elias em razão de ter sido repetido pelas comunidades de Santos, Mogi das Cruzes e Angra dos Reis (5).
No caso das Carmos paulistanas, que vemos retratada na aquarela de Thomas Ender, a cantaria de pedra comparece com forte expressão, empregada em profusão nos frontispícios de ambas as igrejas, bem como na torre (a nosso ver, a mais bela e robusta da cidade), provendo o partido com soluções plásticas de inegável beleza (também infelizmente desfeita no primeiro quartel do século 20).
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É fácil perceber que a ornamentação das três citadas igrejas — a Matriz e as duas Carmos —, superaram de longe as ainda tímidas soluções da pioneira beneditina no emprego da cantaria de pedra, constituindo talvez o que de melhor foi produzido na cidade, especialmente no pórtico da Matriz (este certamente o mais exuberante trabalho em cantaria de pedra realizado na capital no período Colonial) e na entrada das igrejas carmelitanas. É uma pena que os arquivos dessas instituições religiosas não tenham se preocupado em registrar na época as pessoas que se encarregaram da elaboração dos projetos dessas frontarias em pedra de cantaria, restando-nos apenas conjecturar a respeito, como buscar entre os membros mais intelectualizados da Igreja a autoria dos mesmos ou a participação de algum arquiteto ou engenheiro português (há quem suspeite da participação de militares que prestavam serviços nas diferentes capitanias ao governo metropolitano) de passagem pela cidade. Tudo leva a crer que as construções dessas frontarias de pedra seguiam orientações especificadas em projetos previamente elaborados e aprovados pelos membros dessas comunidades religiosas. Sabemos que a Ordem Terceira do Carmo de São Paulo administrava as obras do frontispício de sua nova capela baseada em risco que apresentara ao Pedreiro Antonio Francisco de Lemos que, todavia, fora infeliz na sua execução, tendo sido a obra realizada desaprovada pelo sargento mor Antonio Joze que, em sua presença, “Com o risco na mão e lida a obrigação do dito mestre achou o dito sargento mor que a obra tinha muitos erroz cujos reconhece o dito mestre”, sendo obrigado a desistir de repará-la. Os erros cometidos eram relativos à disposição dos elementos de cantaria de pedra: “Simalha de sima do arco, simalha real que esta asima das janellas e as quatro pirâmides enfim tudo quanto se acha feito no remate da simalha para sima que se há de demolir para se executar conforme o risco” (6). O emprego da pedra de cantaria na forma descrita constituía pois uma inovação, a qual, é lícito supor, não era tarefa a ser realizada por artífice, mesmo que credenciado (tratava-se de um mestre pedreiro), mas insuficientemente experiente para executa-la. Pois, como veremos, a aplicação da pedra de cantaria se fez a partir da taipa de pilão, servindo essa como elemento estruturante da edificação, e, a partir dele, com o reforço de um segundo elemento — o tijolo que reveste toda a parede de taipa — e, por fim, com o auxílio do ferro e da cal, afixar os elementos de cantaria fabricados nesse corpo assim edificado. Trabalhos dessa magnitude exigiam igualmente suportes próprios e associados, alicerçados em material equivalente em robustez e força — terra apiloada e pedra — capazes de resistir ao peso dos elementos mais robustos talhados nos pórticos, como os arcos aplicados na superfície das fachadas das Carmos. Tudo isso, a nosso ver, devia exigir conhecimento prático, experiência do profissional para lidar com ambos os sistemas construtivos de forma a compatibilizá-los com segurança, sem os quais não seria possível chegar à solução plástica desejada, ou seja, dotar as igrejas paulistanas e depois, igualmente, os edifícios públicos com uma feição moderna tal como ocorria em outras partes da Colônia . A perfeição técnica do trabalho realizado então nessas igrejas citadas, pôde ser atestado pela longevidade de algumas ainda presentes na urbe paulistana, como a citada Terceira do Carmo e as franciscanas de que falaremos a seguir e mesmo daquelas que infelizmente foram destruídas, mas que nela figuraram até o início do século 20.
As igrejas franciscanas, que até hoje se conservam, agora tombadas também pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Iphan, são também desse período e igualmente se valeram da cantaria de pedra para a ornamentação de suas fachadas no final do século 18. Mas, da mesma forma que a Igreja dos Frades Carmelitas, a Igreja da Ordem Primeira não soube cuidar da documentação da época em que a construiu, sendo apenas possível considerar sua configuração a partir de referências coetâneas demandadas pelos Terceiros para a construção da sua igreja, conhecidas graças ao volumoso estudo empreendido por Frei Adalberto Ortmann (7).
Assim, mesmo com as dificuldades apontadas, nos foi possível observar que a realização dessas obras esteve na dependência de duas ordens de coisas: de um lado, de recursos para viabilizá-la, não disponíveis previamente e amealhados paulatinamente, mesmo pelas corporações religiosas mais ricas de São Paulo, durante a realização das obras ao longo da segunda metade do século 18; e a uma condição excepcional experimentada na época, qual seja, a dependência para com o artífice capaz de efetuá-las, Joaquim Pinto de Oliveira, o afamado Tebas, que, em princípio, pertencia a um senhor, o mestre pedreiro Bento de Oliveira, que o empregava nos serviços de cantaria de pedra.
Esse processo de transformação parcial da paisagem urbana paulistana, analisado por Luís Saia (8) ficou conhecido como “movimento de renovação estilística”, que, todavia, não reconheceu valor (e, por consequência, não promoveu o tombamento dos exemplares que dele restaram, com exceção da Igreja e Convento da Luz, em verdade o único conjunto que havia sobrevivido, completo, quando foi fundado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Sphan em 1937), já que se apoiavam em materiais e lineamentos estranhos às soluções estéticas próprias do tradicional sistema construtivo da taipa de pilão que Saia privilegiava.
E, a bem da verdade, não é difícil reconhecer a justeza de seus argumentos quando se observa que o que se buscou introduzir, mediante a pedra de cantaria, soava em princípio pretencioso e do ponto de vista da secular tradição da técnica da taipa de pilão como algo postiço, falso e excêntrico, não indo além da intenção de reproduzir na cena urbana paulistana o que a arquitetura religiosa realizava, com exuberante qualidade e soluções inovadoras em outras áreas coloniais mais afinadas ao sistema da pedra e cal, valendo-se de elementos clássicos reutilizados ornamentalmente pelo barroco como expressão de grande refinamento artístico. A novidade era, pois, um produto de importação, desentranhada da tradição construtiva regional — essa a ótica pela qual podemos compreender a visão e a posição do conhecido arquiteto que dirigiu o Iphan em São Paulo até seu falecimento (1975) (9).
Importa, porém, notar que o uso da pedra de cantaria se fez inicialmente valendo-se ainda da taipa de pilão que permaneceu como sistema construtivo básico, ou seja, estruturando o corpo do edifício, acolhendo, entretanto, a pedra como elemento de ornamentação das fachadas, apenas. Depois de figurar por mais de um século e meio entrementes o que permaneceu dessa arquitetura, com a exceção citada acima, foi muito pouco, e, como facilmente se verifica, adulterada posteriormente por reformas, destruída por inteiro ou fracionada pelo processo de urbanização iniciado no segundo quartel do século 20. Nomeemo-las então: além da já citada Luz, única sobrevivente que se manteve ilesa; a São Bento foi descaracterizada por reforma no início do século 20; a Igreja Matriz, que ostentava o mais refinado trabalho de cantaria de pedra no portal de seu frontispício com a torre (obra-prima de Tebas), destruída em 1911; o belo conjunto arquitetônico da Carmo (convento, igreja e sua suntuosa torre) destruído em 1928 que daria lugar depois ao edifício da Secretaria da Fazenda do Estado, restando somente a capela ou igreja dos Terceiros, graças a resistência de sua comunidade que se opôs a entrega-la ao Estado; e o conjunto franciscano que cedeu à Faculdade de Direito (1828) o convento, por sua vez remodelado no século 20, permanecendo porém, e a duras penas, as Igrejas das Ordens Primeira e Terceira — que testemunharam atos organizados pelos antigos e atuais alunos da faculdade contra as ameaças e em defesa da Democracia no país, aos quais compareci (11 de agosto de 2022).
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A esses exemplares sobrantes poderíamos acrescentar outros que se valeram do expediente da pedra de cantaria ainda na Capital, como o Quartel da Legião de Voluntários Reais (1791), e fora dela, como as igrejas de Itu, onde Tebas, presume-se, tenha tido participação (10).
Sistema misto de construção
Assim denominamos o sistema que vimos surgir na cidade de São Paulo em meados do século 18 que possibilitou a aplicação da pedra de cantaria no aformoseamento de nossas igrejas. Sistema que exigiu todo um conjunto de procedimentos que permite unir camadas de elementos que se justapõem, obtendo como resultado solução plástica mais afeita ao padrão estilístico da época.
A utilização desse sistema, porém, insistimos, não era tão simples como a princípio pode transparecer. Uma coisa é aliar a taipa ao tijolo desde o princípio da construção tendo por objetivo ornamenta-la com a pedra de cantaria, fixando-a com ferro, cal e areia como Tebas fazia (técnica que será utilizada posteriormente também na decoração interna dos edifícios, sobretudo na ornamentação artística das igrejas, valendo-se em alguns casos da pedra para confecção de arco-cruzeiros, além da madeira entalhada tradicionalmente utilizada nas cornijas, pilastras, cimalhas etc.). Outra coisa, e bem diferente, ocorreria em período bem posterior, responsável por criar um falso histórico, no qual se fez uso de expediente semelhante, para reformar velhos edifícios feitos de taipa de pilão e conferir-lhes novas fisionomias, adaptando-os ao gosto então vigente, quer seja: o uso do encamisamento da taipa com tijolos para o fim de vestir as fachadas dos edifícios antigos com elementos ornamentais recém-chegados ao mercado da construção, próprios dos estilos em voga, reformas na verdade, que levam os desavisados à ilusão de tratar-se de arquitetura contemporânea, e desse modo destruir a primitiva configuração, evento inovador que todavia apaga o seu passado histórico e cria um cenário enganoso, ilusório, falso, inautêntico, que mais o deprecia do que o eleva.
Vale, portanto, investigar a fundo a história de cada monumento, sem o que a apreciação baseada apenas na aparência, no estado em que hoje se apresenta, pode ser enganosa e levar até mesmo o profissional da área de preservação a se complicar ao dispensar ou menosprezar a história do monumento, o que realmente aconteceu com ele no processo percorrido desde sua criação até o presente, e assim estabelecer o seu verdadeiro valor histórico que, a meu ver, há de privilegiar, sempre que possível, o seu valor artístico — configurado segundo o estilo da época em que surgiu — e, se este estiver já descaracterizado, procurar restitui-lo o mais próximo possível, por meio de procedimentos técnicos e científicos restaurativos modernos.
É necessário pois cautela e exame meticuloso para não confundir uma coisa com a outra — tarefa que requer principalmente conhecimento da história de cada edifício, que, se negligenciado, pode e geralmente acarreta danos ainda maiores quando se trata de monumentos históricos, podendo confundir até mesmo profissionais com experiência em restauro arquitetônico, iludindo-os a toma-los em princípio como edificações de períodos ulteriores, especialmente quando acrescidos de corpos edificatórios envoltórios
Vale, pois, ainda uma última consideração acerca do sistema misto de construção surgido em meados do século 18 entre nós. Quando com ele nos deparamos (11), verificamos que os elementos de cantaria de pedra das fachadas — dos portais sobretudo — exigiam solução própria do sistema construtivo da pedra e cal. Esse foi o procedimento utilizado nos arcos do frontispício da nova capela dos Terceiros do Carmo de São Paulo em 1772. E é, até o momento, o único caso razoavelmente documentado que dispomos que tornou possível conhece-lo com certo detalhamento.
Lê-se num desses documentos que, para erguer os arcos da entrada seria necessário apoiá-los sobre “alicerce” igualmente de pedra (comum), fabrica-lo junto à base da taipa “donde ha de nacer os arcos”. Obra de sustentação dos arcos que Tebas exigiu constar em contrato, afirmando que “o fará a dita ordem a sua custa porem” ele próprio se encarregaria de administrar sua execução, declarando ainda que “eu hei de aprovar o fixo dele como do como que há de ser feito demarcando e riscando e aprovando a segurança e fixo do dito alicersse athe o por capaz dele eu asentar” os ditos arcos (12). Documento único, mas de enorme importância para quem queira entender os procedimentos exigidos pelo sistema construtivo misto que tornou possível a renovação estilística da qual foi personagem determinante.
Obra de igual natureza realizou pouco antes na vizinha igreja da Ordem Primeira do Carmo, certamente sob a orientação do mestre Bento de Oliveira Lima, seu senhor, sobre quem podemos supor, teria Tebas tido acesso ao aprendizado da cantaria de pedra (provavelmente ainda em Santos de onde provieram) para dele se valer nas obras que veio a empreender na capital (quem terá ensinado o ofício a Tebas? ainda é questão a ser elucidada).
Seja como for, com Bento e Tebas abriu-se uma possibilidade de inovação estilística que se efetuou sem renunciar inteiramente ao tradicional sistema de construção baseado na taipa de pilão, o qual perduraria ainda até meados do século 19 na capital e nas demais cidades do planalto paulista.
As igrejas de Itu
O uso da pedra de cantaria se fez também em algumas igrejas de Itu no mesmo período, como observamos em texto intitulado “As torres das igrejas de Itu” em 2020, analisando a iconografia existente sobre a Matriz, o conjunto arquitetônico franciscano e a de Nossa Senhora do Carmo (aquarelas de Miguelzinho Dutra e fotos da segunda metade do século 19), uma vez que não restou coisa alguma dos registros da época nos arquivos documentais respectivos. Convido, pois, o leitor interessado, à leitura do mencionado artigo (13).
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Na vizinha cidade de Sorocaba, existe a igreja do Mosteiro de São Bento que, por similaridade, indica o uso da mesma arquitetura mista referida. Outros casos semelhantes supomos existir em cidades vizinhas à Capital, ainda a serem identificados.
As “igrejas paulistas” de Minas Gerais
Saindo do território paulista, mas ainda no período colonial, vamos encontrar essa mesma solução inventada na capital paulista de adornar com pedra de cantaria construções feitas em taipa de pilão também na região de Minas Gerais. Inicialmente, ainda na primeira década do século 18, as pequenas igrejas ou capelas feitas em taipa de pilão; mas o rápido enriquecimento proporcionado pela mineração propiciou em meados do século reformas ou reconstruções que deram origem a templos maiores. É quando se verifica em algumas delas a manutenção da taipa como sistema edificatório básico, valendo-se, porém, do sistema misto observado nas igrejas da capital paulista de associar a taipa ao tijolo e aplicar a pedra de cantaria, com a mesma finalidade de adornar as fachadas.
Dentre as várias igrejas que se valeram desse sistema em meados do século 18 (28 foram recentemente catalogadas pelo Iphan MG) são dignas de menção: a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, a de Nossa Senhora da Assunção de Mariana e de Nossa Senhora do Pilar de São João Del Rey (14) (muito embora, já no transcurso do século 19, tenham-se reformulado, fazendo uso da pedra e cal ou de alvenaria de tijolos, perdendo assim parcial ou inteiramente as feições primitivas, que faziam com que se assemelhassem às paulistanas do mesmo período).
A se fiar nas informações disponibilizadas pelo Iphan MG relativamente a Igreja Matriz de Ouro Preto, sua construção se fez pela nave, a partir de 1728, ao lado ou à frente da primitiva capela seiscentista em razão da realização dos ofícios até ser concluída a nave (1733), levantada em taipa de pilão (15), assim como as duas torres, uma das quais será substituída, pelo perigo de arruinar-se, em 1781. A primitiva capela foi destruída em 1733, quando se deu início a construção da capela mor, ainda pelo sistema da taipa de pilão. Cem anos depois, uma das paredes laterais da nave, por ameaçar ruína, foi substituída por alvenaria (1825). Em “1848 foram concluídos o frontispício em pedra e a outra torre” conferindo a feição definitiva que até hoje permanece, substituindo a do século 18.
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Sobre essa configuração, diz Valter Nascimento, entretanto: “A fachada em alvenaria e cantaria é obra mais recente que o corpo interno da igreja e difere muito do estilo explosivamente barroco encontrado em seu interior, gerando aí uma contradição arquitetônica: o volume externo da igreja não corresponde ao espaço interno da nave, sendo que a parte interna é visivelmente menor, instalada dentro da caixa de alvenaria”.
Essas igrejas paulistas de Minas Gerais, assim como as demais lá construídas em meados do século 18 receberam obras em continuidade, algumas atingindo o século 19, quando deram por concluídas. Muita coisa aconteceu com elas. Mas essas paulistas, nelas temos muito interesse, sobretudo quando foram primitivamente erguidas, buscando ornamentarem-se exteriormente através do mesmo sistema construtivo aqui em São Paulo empregado. A documentação por ventura ainda nelas existente desse período poderá esclarecer muita coisa acerca desse modo de construir inovador e que perdurou ainda por muito tempo, ao final do qual se combinará a novos materiais, substituindo a pedra de cantaria por elementos mais leves e de mais fácil manejo, revelando uma capacidade de continuidade e progressão notável, mantendo a taipa como elemento estruturante, como terei oportunidade adiante de mostrar. Espero que pesquisadores mineiros e paulistas voltem suas atenções a essa questão que julgo ser de importância para a história da arquitetura religiosa brasileira.
E coloco uma questão para despertar interesse a respeito: o que vínhamos tomando como sistema construtivo criado na cidade de São Paulo pode não corresponder inteiramente à verdade visto que no mesmo período estava sendo utilizado também em Minas, muito embora, é bom salientar, por paulistas já lá radicados — o que, portanto, não altera a ‘paulistanidade’ da invenção e aumenta a percepção de intenso intercâmbio entre as duas regiões (por cautela, e também por ser tema que merece pesquisa mais aprofundada, preferimos registrar a questão e instar colegas pesquisadores a investigar onde ocorreu primeira e efetivamente a junção desses diferentes sistemas que associou a taipa de pilão ao tijolo e à pedra de cantaria e que aqui chamamos de sistema misto de construção, se na cidade de São Paulo ou em áreas de povoamento paulista em Minas).
Entrementes, acreditamos que nesse período já se estabelecera uma dinâmica de relações, tanto econômicas como sociais e culturais entre as regiões, mesmo admitindo o considerável afluxo migratório paulista para as regiões de mineração, especialmente a Minas Gerais, sendo elevado o percentual de paulistas que por lá se fixavam.
As oportunidades que se ofereceram a partir do descobrimento do ouro não se limitavam, como se sabe, à exploração do metal, concedidas a quem possuísse capital e escravos suficiente para a sua extração, nem mesmo ficaram restritas ao comércio de insumos estrangeiros para essa atividade extrativa; foram ampliadas logo com o fornecimento de gêneros alimentícios que deu possibilidade de ingresso e circulação de novos contingentes de paulistas à região, criando mercado e ocupação para um indeterminado mas vultoso número de pessoas para irem e virem de São Paulo a Minas, criando assim circulação de gente, de capitais, e também de troca de experiências e transladação de conhecimentos e costumes, dentre os quais se incluíam as maneiras de viver dos diferentes migrantes, o modo como construíam suas moradas, as igrejas e edifícios públicos, adaptando-os aos espaços por eles ocupados.
Assim, a circulação entre as regiões paulista e mineira, o leva e traz de produtos e de experiências diversas, mesclando-as e difundindo-as entre as regiões nos leva a indagar, onde esses produtos e experiências tiveram exatamente início, se cá ou lá ou lá ou cá?
A dúvida, embora incomode o historiador, pois o impossibilita de cravar um enunciado categórico como gostaria, requer, por sua vez, continuidade de pesquisa, busca por documentos que lastreiem mais fielmente esse processo de interação e transferência de experiências no campo da construção.
Fica registrada a questão, embora, para efeito do que até o momento conhecemos, não podemos recusar a primazia da inovação construtiva aos citados Bento de Oliveira Lima e Joaquim Pinto de Oliveira Tebas.
Câmara e Cadeia de Atibaia (16)
Apresenta-se como um caso excelente de ser analisado e ajudar-nos a entender o sistema construtivo misto em sua evolução e aprimoramento no século 19; trata-se de exemplar derradeiro desse sistema em território paulista que não foi compreendido por Luís Saia e tão pouco pelos seus críticos, pois não estavam adequadamente munidos de informações a seu respeito — razão porque se viram também em dificuldades para entender e explicar a presença da taipa de pilão no edifício da Câmara e Cadeia de Atibaia.
Luís Saia parecia desconhecer o que vimos acontecer desde meados do século 18 na construção e reformas das igrejas citadas, onde se fez uso propositado do tijolo para revestir a taipa, procedimento único capaz de viabilizar a aplicação da pedra de cantaria para adorna-las. Em outras palavras: eram edificações estruturadas em taipa de pilão que teriam, já desde o início da construção, a intenção de conferir uma solução plástica que a taipa sozinha não permitia, buscando-se então, com esse sistema misto, e em conformidade, sim, com os padrões estéticos vigentes nas regiões mais prósperas da Colônia , dotá-las das feições lá empregadas. Das cinco igrejas que remanesceram do período colonial em São Paulo (a São Bento seria mais uma vez reformada no século 19), quatro delas mantiveram suas feições primitivas — as duas franciscanas, a Terceira do Carmo e, fora do núcleo urbano, a Luz —, dentre as quais, no entanto, somente esta última foi objeto de exame apurado por parte do diretor paulista que promoveu seu tombamento mesmo sendo produto desse mesmo movimento de renovação estilística e tendo acrescido uma segunda fachada no século 19 fora do projeto primitivo.
Entendia Luís Saia que eram resultado de “reformas que simulavam esplendor plástico oitocentista [sic] genuíno nas áreas mais ricas da Colônia onde possuíam legitimidade e pertinência face à maior expressão econômica e à maior importância política que desfrutavam tais centros”.
Que buscavam esse esplendor plástico, existente em outras regiões, não há porque não acatar a alegação, e que, como apontou também, teria sido impulsionado pelo poder governamental e pelas instituições religiosas, menos ainda. E mais: que esse movimento de renovação estilística erradicou praticamente o que havia em São Paulo de mais antigo e característico das construções em taipa de pilão, renovando também e literalmente o que havia ainda de mais expressivo na ornamentação interna nas igrejas seiscentistas, não temos a menor dúvida. Afora as capelas jesuíticas do entorno da Capital, as de S. Miguel, Embu, Carapicuíba e Guararema, e a formosa Capela de Santo Antonio/São Roque, monumentos representativos da arquitetura tradicional paulista (seiscentista) com seus respectivos acervos artísticos, restaram, das igrejas reformuladas no século 18, pouquíssimas peças do universo artístico religioso anterior, hoje recolhidas aos museus, o da Luz especialmente e alguns outros locais ainda precariamente organizados.
Ocorre, todavia, que esse foi o processo histórico; o que caracterizava o pequeno burgo paulistano até meados do século 18 foi, em parte, modificado no momento em que essa estilística moderna inova radicalmente a feição das igrejas e dos prédios públicos daí por diante.
Digo em parte porque a taipa de pilão perdurou firmemente na cidade e arredores como sistema construtivo prevalecente, configurando o grosso das edificações, típicas da arquitetura vernacular paulista, conforme a descreveu Morgado de Matheus. Por mais que se lamente a destruição promovida pelo novo sistema, eliminando a antiga feição das igrejas, e propondo uma estética nova que, ilegítima ou impertinente, ofereceu à paisagem urbana paulistana algo que perdurou e a caracterizou até o início do século 20, quando a maioria dessas igrejas sofrem novamente perdas consideráveis em suas feições (quando não destruídas por inteiro), tendo algumas permanecido isoladas no cenário urbano paulistano até os dias de hoje (17).
Não prestou atenção Luís Saia ao que ocorria nas entranhas do movimento de renovação estilística como ele próprio enunciou, quer seja, as transformações que se operavam no sistema construtivo tradicional que, para amodernar-se, exigia a incorporação de materiais e técnicas até então estranhas à taipa de pilão, todavia, necessárias para alcançar o padrão estético da época, a qual irá acolher outro material, mais leve e de fácil aplicação, em meados do século 19, que passaremos a considerar. Claro, tais transformações no sistema construtivo tradicional não ocorreram ao acaso; pelo contrário, foram resultado das exigências do momento, emanadas pelas autoridades eclesiásticas e governamentais interessadas em nivelar a capital paulista à das demais, provendo-a de arquitetura correlata.
Com base nessas considerações, damos um passo adiante, para examinar o que acreditamos constituir exemplar ulterior dessas transformações, fruto da evolução ou progressão natural desse sistema construtivo que se revelou capaz de manter-se fiel à sua origem (a terra apiloada) ao mesmo tempo em que se adaptava às exigências estéticas subsequentes incorporando novos materiais.
Assim, apresento algumas considerações acerca da Casa de Câmara e Cadeia de Atibaia, restaurada por Luís Saia, apoiando-me em parte nas críticas apresentadas por Antonio Luiz Dias de Andrade (18), de que Saia teria cometido erro por entende-la enquanto exemplar pertencente ainda às construções feitas unicamente de taipa de pilão, adulterado, porém poucos anos depois. A reprovação a Antonio Luiz baseava-se, como se lê no capítulo em que trata da Câmara de Atibaia, em críticas de antigos colegas de Saia, especialmente do arquiteto Edgar Jacintho, que argumentava na ocasião pela manutenção do estado em que se encontrava (antes do restauro), correspondente a forma própria, típica dessas edificações do século 19.
Todavia, sempre me perguntei por que afinal lá se encontravam as paredes de taipa de pilão sobrepostas por camadas de tijolos sustentando os elementos de sua modenatura que, entretanto, já abandonara a pedra de cantaria substituindo-a por um material mais leve e barato, porém de efeito semelhante: elementos decorativos fabricados em argamassa modelada de elaboração artística, aliás, pouco pretenciosa.
Antonio Luiz Dias de Andrade não questiona a presença da taipa, e, sem mais dizer, parte para relatar o procedimento adotado por Luís Saia na Casa de Câmara e Cadeia de Atibaia, o qual de forma imediata e sem maiores estudos, resolve remover esses elementos que julgava constituir peças apostas ao edifício na reforma de 1855 e posteriores, que compreendiam todo o revestimento externo e modenaturas, inclusive a platibanda e a sineira — o que contrariou o arquiteto Edgar Jacintho que não se eximiu de manifestar sua contrariedade, emitindo, conforme pesquisa de Antonio Luiz Dias de Andrade, parecer reivindicando “informações mais completas sobre os projetos das instalações e reforço estrutural, bem como quanto as soluções para a recomposição do beiral, aconselhando fossem realizadas pesquisas históricas, de modo a se conhecer as reformas e adaptações sofridas pelo edifício ao longo do tempo, parecer este endossado pelo diretor do DCR, arquiteto Renato Soeiro, que solicitou providências ao 4º Distrito”.
Continuo com a explanação de Antonio Luiz Dias de Andrade: “A documentação encontrada [no Arquivo Central do Iphan], todavia, não confirma haver sido cumprida aquela orientação, prosseguindo nos meses seguintes as obras, constando [n]os serviços realizados a complementação do revestimento interno e externo, destituído este de toda e qualquer modenatura”.
Constatava Luís Saia, em face da “notável modificação na fisionomia plástica do edifício, que passou a ser mais severo mediante a limpeza procedida na platibanda e no remate das vergas”, e visto que os gradis de ferro dos balcões apresentavam-se como elementos destoantes, propôs, em seguida, a sua substituição por “guarda-corpo de madeira com balaústre também de madeira de secção quadrada, dispostos diagonalmente, saída esta de largo uso em São Paulo”.
Prossegue Antonio Luiz: “Julgava [Saia] indispensável remover a caixilharia existente entre as duas grades das janelas das celas, sendo a externa de ferro batido e a interna de madeira, sugerindo a sua substituição por duas folhas cegas”.
Por sua vez, “O arquiteto Edgard Jacintho, [continua Antonio Luiz] assusta-se com a radicalidade das obras empreendidas, parecendo-lhe que o ‘Dr. Saia recuou demais no tempo, ao emprestar fisionomia arcaizante a um lídimo monumento novecentista, cuja modenatura em geral, e em particular nos vãos, encarecia-o como, na espécie, exemplar excepcional do período em causa’ — referindo ao parecer do arquiteto Lúcio Costa — concluindo pela impropriedade de se substituir os gradis dos balcões”.
O edifício apresentava (antes do restauro) a fachada com quatro colunas lisas, duas que arrematavam o edifício e outras duas que emolduravam o pórtico com portão e dupla de janelas embandeiradas com vergas curvas, sendo o espaço entre elas preenchido com relevos geométricos feitos com argamassa — uma mistura que, para a época, se supõe seria composta por mistura de água, cal e areia (19) — e que passou a ter a preferência, em substituição à pedra de cantaria (mais elaborada, de maior duração e que requeria profissionais especializados, melhor remunerados, porém difícil de se encontrar em São Paulo nesse período). Desse material seriam também todos os demais elementos ornamentais aplicados no edifício (a cimalha que demarcava os pavimentos do edifício, os lambris das janelas bem como as cornijas que arrematavam as janelas envidraçadas (o vidro era produto importado) etc., exceto a platibanda, elemento certamente incorporado em período posterior quando se eliminou o beiral primitivo. As fachadas laterais e posterior apresentavam o mesmo padrão ornamental da fachada principal, com a mesma argamassa, cuja aplicação tinha a vantagem de, por ser mais leve, não exigir maior espessura da camada de tijolos que encamisavam as paredes de taipa de pilão (como supomos anteriormente quando consideramos a aplicação da pedra de cantaria nas igrejas paulistas e mineiras no século anterior).
Assim, o que se constata é que a taipa continuava presente, a formar a estrutura do edifício, revestida toda ela com tijolos tal como as paredes dos frontispícios das igrejas paulistas de meados do século anterior, observando-se apenas a alteração do elemento ornamental, com a pedra de cantaria cedendo lugar a argamassa moldada.
Portanto, a Câmara e Cadeia de Atibaia, edificada no segundo quartel do século 19 (e reformada no início do terceiro quartel), configura-se, a nosso ver, desdobramento do sistema construtivo misto (originado no século anterior), onde a modenatura abandona a pedra de cantaria por elemento mais barato e de mais fácil aplicação, porém de efeito plástico parecido.
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Há que se considerar, entretanto, que, quando Saia efetuava, na primeira fase do restauro, a decapagem das paredes tanto externas como internas do edifício, constatou a exuberância que a “arquitetura de terra” havia atingido na Casa de Câmara e Cadeia de Atibaia, pois apresentava uma variedade de elementos associados, tanto a tradicional madeira (nos batentes que delimitavam os vãos das janelas e da porta principal, nos frechais de sustentação do primitivo telhado, bem como na trama das paredes internas de pau-a-pique), o tijolo que revestia a taipa externa e internamente, como também o emprego da pedra comum na reparação das paredes externas de taipa, como, é claro, os elementos em argamassa empregados na modenatura externa do edifício, e, ainda, a pedra lavrada, presente no sopé da porta de entrada (20).
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Assim, nessa perspectiva que apresento, a presença desses elementos todos no edifício revela processo evolutivo da própria taipa de pilão, capaz de associar-se a técnicas construtivas que Luís Saia não soube ou não quis entender que se originara bem antes, de certo por não ter examinado a fundo o que havia lhe chamado a atenção quando observou o cenário urbano paulistano da segunda metade do século 18, em razão da reformulação de suas principais igrejas e alguns edifícios públicos, e que ele mesmo definiu como movimento de renovação estética.
Em consequência não estava suficientemente munido de informações para compreender os procedimentos que se desenvolveram no sistema construtivo paulista a partir de meados do século 18 e que se estenderam ao período seguinte, quando da edificação da Câmara e Cadeia de Atibaia, razão porque a despojou dos elementos ornamentais que constituíam a sua feição inicial.
Portanto, a Câmara e Cadeia de Atibaia, edificada no segundo quartel do século 19 (e reformada ainda no início do terceiro quartel), configura-se um desdobramento de um sistema construtivo misto (constituído, repito, no século anterior), onde a modenatura abandona a pedra de cantaria por elemento mais barato e de mais fácil aplicação, porém de efeito plástico parecido, todavia inteiramente descartada por Luís Saia.
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O que levou o arquiteto Edgard Jacintho a manifestar-se chocado com a radicalidade das obras empreendidas, parecendo-lhe que o “Dr. Saia recuou demais no tempo, ao emprestar fisionomia arcaizante a um lídimo monumento novecentista, cuja modenatura em geral, e em particular nos vãos, encarecia-o como, na espécie, exemplar excepcional do período em causa e arremata, definindo-o com mais precisão, monumento tombado como expoente de transição da arquitetura do século 19”.
Recuado, porém, demasiadamente no tempo, o fez perder significação e legitimidade, posto num estado contraditório com a sua própria trajetória histórica.
Diante desse libelo, Antonio Luiz Dias de Andrade, todavia, foi além, e equivocou-se em meio à própria argumentação: ao manifestar sua concordância com Edgard Jacintho, afirmou, entretanto, que Luís Saia, “no curso das obras de restauração em momento algum tenha sido mencionado tratar-se de construção de alvenaria de tijolo” (?). E, note-se, sua crítica (diferentemente do momento da manifestação de Edgard Jacintho) já estava embasada em documentação rastreada em pesquisa histórica (reunida na Superintendência de São Paulo) relativamente às obras de construção da Câmara e Cadeia de Atibaia (iniciadas em 1836) e às reformas realizadas nos anos 1850 pelo empreiteiro David Saltoni com projeto de Euzébio Stevaux e Diretoria de Obras Públicas da Província.
Antonio Luiz ainda chama a atenção de que “em todas as ocasiões [em que a edificação foi por Luís Saia] analisada como remanescente de taipa de pilão” e afirma ser “Impossível compreender os tijolos postos a mostra pela remoção do revestimento como simples encamisamento, pois o monolitismo das paredes [de tijolos] encontrava-se denunciado na escarção das envasaduras, inexistindo quaisquer vestígios das tradicionais padieiras de madeira, comuns às construções de taipa. Aliás [recrimina], bastaria atentar para a reduzida espessura das paredes externas, em confronto com o predomínio dos vãos, para reconhecer a incompatibilidade; impraticável para qualquer boa taipa resistir tão apreciáveis esforços.” Antonio Luiz aponta razões técnicas próprias da taipa de pilão, seu “monolitismo”, para, ao mesmo tempo, assim nos parece, negar sua presença e função estrutural no edifício que a seu juízo tratava-se de uma “construção de alvenaria de tijolo”.
Tais considerações parecem indicar que também Antonio Luiz, tal como Luís Saia, estava longe de compreender o sistema construtivo misto, inaugurado em meados do século 18, que, no segundo quartel do século 19, progrediu para uma solução mais fácil, que permitiu reduzir a robustez das paredes de taipa, bem como do próprio encamisamento com tijolos, para receber novo elemento de decoração, desta feita em argamassa.
Assim, a espessura menor da taipa, em nosso entendimento, está a indicar maior conhecimento dos encarregados da obra acerca do seu comportamento face a agregação do tijolo com vista a receber esse novo elemento, mais leve e ajustado, o que indica já certo desenvolvimento, e posso até arriscar, aprimoramento desse sistema construtivo misto.
Aprimoramento que dispensava alicerces de pedra adicionais como na fase anterior, conferia menor robustez e maior leveza ao edifício ao oferecer mais opções de ornamentação exterior, tornando-o mais econômico — o que, de certo, facilitou a propagação da argamassa na segunda metade do século 19, ao fim do qual começar-se-á a verificar o abandono paulatino da taipa e a preferência pela alvenaria de tijolos, consolidando-a como sistema construtivo capaz também de acolher tanto a argamassa como ainda o retorno da pedra de cantaria na modenatura das edificações do início do século 20, tanto externa como internamente.
Incorreram, desse modo, em enganos, a nosso ver, tanto o restaurador como o seu crítico; embora Antonio Luiz, tenha logrado demonstrar os equívocos de Saia e diante também das justificativas que o restaurador apresentava em sua defesa — “A arquitetura do planalto, condicionada pelo uso generalizado da taipa de pilão e mais individualizada num quadro restrito de evolução regional, demonstrou maior resistência face às novas influências que caracterizavam o século passado” [19], bem como demonstrado que “as técnicas tradicionais mantiveram um predomínio absoluto que (só) começa a cair lentamente no terceiro quartel do século passado para se extinguir já no fim, deste século” — e tenha Antonio Luiz por outro lado desvelado “o quanto [Luís Saia] se distanciou da realidade histórica em favor de uma interpretação decorrente de uma ideia” para prevalecer “A ideia da arquitetura tradicional paulista, a qual cumpria fazer preponderar entre todos os edifícios escolhidos como testemunho”, por outro lado, equivocou-se igualmente [o crítico Antonio Luiz] ao dizer que o monumento nada mais tinha a ver com a taipa de pilão, e considera-lo produto de outro sistema construtivo, o qual sustenta “tratar-se de construção de alvenaria de tijolo”, como se as paredes de taipa lá não existissem. Ao contrário de Luís Saia, Antonio Luiz ou não se deu conta, ou optou por ignorar a presença da taipa ou ainda desqualificar sua importância na armadura no edifício, subtraindo-a da análise, de modo que fez o monumento “avançar no tempo”, a um tempo posterior ao da sua construção, quando se configuraria novo modelo, mais afinado com o gosto do final do século (eclético?), que traz em seu bojo a contribuição de construtores, engenheiros e arquitetos estrangeiros que se fazem presentes no cenário urbano paulista em grande número.
Se simulássemos tal assertiva — “tratar-se de construção de alvenaria de tijolo” — como factível, e fosse Antonio Luiz o restaurador da Câmara e Cadeia de Atibaia, é de se imaginar que poderia ele tomar a decisão de expurgar do edifício as paredes de taipa visto que, por entender que se tratava de construção de alvenaria de tijolo, não exerceriam mais função alguma. Constituiria um equívoco, uma atrapalhação do construtor que não entendera o projeto que lhe fora apresentado, enfim apenas um resquício de algo que se abandonou e que, portanto, poderia ser depurado no restauro? Porém, caso não fosse esse o entendimento, e resolvesse preservá-las, mesmo assim teria dificuldade para explicar, visto que, tal como Luís Saia, não soube compreender que a taipa permanecia como elemento basilar, embora consistisse naquele contexto somente parte, deveras importante, estrutural, de um sistema construtivo mais complexo, misto como o denominamos.
De modo que Antonio Luiz deixou escapar que também perseguia uma ideia igualmente “estranha” ao monumento — a de uma arquitetura respaldada apenas na alvenaria de tijolos — ideia que, todavia, não condiz com o contexto histórico do monumento — do período de “transição da arquitetura do século 19”, como classificou Edgar Jacintho —, e o remete a um tempo futuro, onde não existiria mais nem a taipa nem o taipeiro e a alvenaria de tijolos já preponderaria no território paulista — o que contradiz com o que ele próprio observou nas fotografias do Caderno de Obras, na documentação gerada durante o restauro entre os arquitetos do Serviço do Iphan, bem como nos documentos disponibilizados tempo depois na Regional paulista que lhe forneceram material histórico para melhor analisar a questão que abordou largamente em sua tese, incluindo o restauro de outros monumentos nacionais igualmente analisados sob esse mesmo ponto de vista — o da ideia preconcebida ou, como chamou, de um suposto “paradigma”, elaborado pelos arquitetos do Sphan , que orientaria as restaurações no país e que teria por base, entre outras premissas, a valorização dos cânones do movimento modernista em que atuavam.
De modo que nem tudo o que Antonio Luiz considerou e postulou ao condenar o restauro realizado na Câmara e Cadeia de Atibaia condiz com a realidade do edifício; a despeito da profundidade da pesquisa efetuada e da força dos argumentos que apresentou. Porque, afinal, é forçoso que se admita, a taipa estava lá e sempre esteve, desde o início da construção (1836) até o momento da restauração em 1955, como as fotos evidenciam e os documentos históricos comprovam.
O que fez com que incorresse em precipitação tão desmedida quanto a de Luís Saia, sem fundamento na realidade que ele próprio observou, ao aventar que a Câmara e Cadeia de Atibaia fosse já uma edificação de período ulterior, quando a taipa não mais estaria presente e a alvenaria de tijolos passa a predominar.
Mas a taipa ainda lá estava nas entranhas da Câmara e Cadeia de Atibaia e cumprindo a sua tradicional função, a de estruturar o edifício, e recepcionar os materiais que possibilitaram ornamenta-la com a argamassa, sendo necessário para tanto revesti-la (encamisar) com tijolos (que Antonio Luiz os vê desempenhar função estrutural), o que, ao contrário do que se supõe, repito, denota evolução do que hoje estamos denominando arquitetura de terra nos estertores de sua vigência, até certo apuramento técnico, e não apenas resistência face às novas influências, até cair em desprestígio em favor de outros sistemas, como a alvenaria de tijolos que se propagou do último quartel do 19 em diante no território paulista (21), à qual a Câmara e Cadeia de Atibaia efetivamente não pertencia.
Na ocasião em que foi construída não se abandonara ainda a taipa de pilão e nem havia se iniciado exclusivamente o emprego da alvenaria de tijolos nas construções do planalto paulista, como imaginou Antonio Luiz. E para que assim tivesse ocorrido, haveria de se ter destruído em 1855 o arcabouço primitivo da Casa de Câmara e Cadeia de Atibaia (construído em taipa de pilão em 1836), e o reconstruído todo em alvenaria de tijolos — o que, como se viu, não foi feito por ocasião da primeira reforma do edifício; ao contrário, conservaram a estrutura de taipa de pilão socada em 1836 que lá permaneceu documentando o sistema misto pelo qual foi construído.
Alguma explicação, portanto, haveria de ter a presença da taipa na Câmara e Cadeia de Atibaia, verificada na primeira fase da restauração e comprovada na documentação histórica.
Explicação que procuramos oferecer ao abordar o tema da introdução da cantaria de pedra na paisagem urbana paulistana desde meados do século 18, baseado num sistema construtivo que aliou à taipa o tijolo e a pedra de cantaria, um sistema construtivo misto (concebido, segundo o que até agora foi possível descobrir, pelo Pedreiro Bento de Oliveira Lima e seu escravo Joaquim Pinto de Oliveira, Tebas) (22) sistema que progrediu no século 19 para acolher a argamassa em substituição à pedra de cantaria (23).
De modo que a Câmara e Cadeia de Atibaia, tombada como a definiu Edgard Jacintho, um “lídimo monumento novecentista … exemplar excepcional do período em causa … expoente de transição da arquitetura do século 19” e, acrescentamos por nossa conta, “produto autêntico da evolução da arquitetura de terra” e “referência do sistema construtivo misto”, desenvolvido a partir de meados do século 18, poderia ter sido conservado no estado em se encontrava em 1955, mantida a sineira, expurgada apenas a cornija e reposto o telhado em beiral, dotando-a assim de uma feição mais próxima à fase de transição indicada.
notas
NE — Texto escrito originalmente em novembro de 2022 e revisado em dezembro de 2023 para ser publicação no periódico Arquitextos.
1
“Está edificada a cidade de São Paulo no meyo de huma grande Campina em sítio hum pouco elevado que a descobre toda em roda [...] todas as paredes dos edifícios são de terra; os portaes e alizares de páo por ser muito rara a pedra, mas não deixa de ter Conventos, e bons Templos, e altas Torres da mesma matéria com bastante segurança e duração; os mais sumptuosos e melhores são a Sé, este Colégio q’ foy dos Jezuitas, especialmente o Seminario em que estou aquartelado, a Igreja do Carmo, e o seu Convento que se está reedificando, a de S. Bento, que não está acabada, e o de S. Francisco que he antigo, e o pertendem reformar. Tem cazas grandes e de Sobrado; todas as mais são baixas com quintaes largos, que a fazem parecer de mayor extenção”. Documentos Interessantes para a História e Costumes de S. Paulo. Daesp, v. 72, São Paulo, 1962, p. 57-59.
2
Carta de Morgado de Matheus de 21 de julho de 1767. Documentos Interessantes para a História e Costumes de S. Paulo (op. cit.).
3
CERQUEIRA, Carlos Gutierrez. Tebas Vida e Obra na São Paulo Colonial <https://tinyurl.com/3vc87zee>.
4
Essa matriz permaneceria, conservada nesse estado originário, até 1911, quando foi demolida.
[1] 5
Já em 1942, Mário de Andrade chamava a atenção da direção do órgão para “uma observação de algum interesse a respeito da arquitetura tradicional carmelitana, pelo menos no Brasil. Dela fiz participação ao doutor Lucio Costa. Trata do curioso dispositivo, tão bem exemplificado nas duas Carmos de Santos, nesta 6ª Região, das igrejas Primeira e Terceira serem construídas como corpos gêmeos de um mesmo edifício, com uma torre só fazendo de corpo central. Esse era o dispositivo das Carmos de S. Paulo e das de Angra dos Reis. Não posso garantir ainda se este curioso partido é exclusivamente carmelitano, nem se só é observado no Brasil, e nesta região central do país. Mas julgo fornecer a V. Sª um problema por solucionar”. ANDRADE, Mário de [6 mai. 1942]. Cartas de trabalho. Correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade (1936-1945). Rio de Janeiro, Mec Sphan pró-memória, 1981.
6
Livro de Termos da VOT do Carmo da Cidade de São Paulo, v. 4, 1772-1810, f. 11.
7
ORTMANN, Frei Adalberto. História da Antiga Capela da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco em São Paulo. Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/MES, publicação n. 16, 1945.
8
SAIA, Luís. A arquitetura em São Paulo. In BRUNO, Ernani Silva (org.). São Paulo, terra e povo. Porto Alegre, Globo, 1967, p. 245.
9
O professor Marcus Tognon é doutor em História da Arte da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Unicamp, estuda e ministra e dá palestras sobre a arquitetura de terra, razão pela qual solicitei a leitura deste artigo. Dele obtive vários comentários e uma sugestão: que abordasse a renovação estilística apontada por Luís Saia como expressão do poder monárquico português nos domínios coloniais, com o que concordei imediatamente; mas penso que ocuparia espaço demasiado às limitadas pretensões desse escrito. Assim, abusando da sua atenção e generosidade para comigo, reproduzo aqui parte da mensagem que me enviou por e-mail, como manifestação do respeito e admiração que nutro por ele e maneira de obter sua parceria nesse escrito que mereceu a sua aprovação: “Sobre essa ‘renovação estilística’ do 18, especialmente nos templos, eu sempre avento a hipótese do influxo monumental celebrativo que os reinados de Dom João V e Dom José I impuseram no reino e nas colônias de então: afinal, usar a tradição clássica na linguagem arquitetônica, com grandes e completos entablamentos, ordens gigantes sob pedestal, cornijas contínuas nas fachadas laterais, curvas e torres sineiras eloquentes nos frontais principais, assim, significam uma adesão aos fundamentos do poder centralizador e se colocam, ao mesmo tempo, como marcas de sustentação e emulação de um ideal estético do império emanado de Lisboa. Na minha livre-docência de 2018 estudei o caso do Palácio dos Governadores, risco de Pinto Alpoim sob demanda do Conde de Bobadela, e o fato de termos ali a primeira grande alvenaria/cantaria de Vila Rica, se transforma no modelo a ser seguido nos próximos empreendimentos construtivos monumentais entre as dobras da serra do espinhaço até os morros diamantinos. São Paulo não estaria no mesmo fluxo, na mesma atmosfera?”. Certamente, professor Tognon, que estava sob o mesmo fluxo e mesma atmosfera, aos quais a cidade de São Paulo aderiu a partir de Morgado de Matheus e demais governadores durante o século 18, com destaque às instituições religiosas que adotaram o modelo referido, ou, ao menos, aproximaram-se dele.
10
A suposição parte do fato de Tebas ter estado presente em Itu no ano de 1795, erguendo o Cruzeiro defronte ao conjunto arquitetônico franciscano, bem como por constatarmos a aplicação da pedra de cantaria no aformoseamento das respectivas igrejas na década anterior. Assim também, a presença da cantaria de pedra nas fachadas da Matriz e da Igreja de Nossa Senhora do Carmo.
11
A análise, porém, advirto, conta com poucos documentos, quase únicos, que a embase; a maioria oriunda do arquivo documental da Ordem Terceira do Carmo de São Paulo.
12
Os documentos em que nos baseamos são o contrato de Tebas e os registros de despesas para a construção dos arcos do frontispício a partir de 1772 lançados nos Livros de Termos e de Despesas da Ordem Terceira do Carmo da Cidade de São Paulo. Ver CERQUEIRA, Carlos Gutierrez. Tebas Vida e Obra na São Paulo Colonial (op. cit.).
13
CERQUEIRA, Carlos Gutierrez. As torres das igrejas de Itu. 2020 <https://tinyurl.com/ytasz5u3>.
14
Ver “O acervo em taipa de pilão em minas gerais e novas estratégias de conservarção”. 2016 <https://tinyurl.com/bdfabe6x>. Foram catalogadas 29 construções em meio ao imenso acervo de edificações coloniais existentes no Estado de Minas Gerais que possuem paredes em taipa de pilão. ... A pesquisa foi feita por amostragem e devido ao recorte da área de pesquisa e a falta de documentação referente a alguns municípios e ou distritos, possivelmente existem exemplares ainda não catalogados.
15
Construída em adobes e taipa, sua construção realizou-se em tempo recorde, já estando praticamente concluída em termos arquitetônicos em 1733, ano do “Triunfo Eucarístico”, procissão solene que assinala a volta do Santíssimo Sacramento e Imagens para a Matriz do
16
Essa nota tem o propósito de chamar a atenção para a necessidade de se estabelecer o melhor possível a correlação entre o bem cultural e intervenções de preservação (tombamento, conservação e restauração) mediada pelo tempo histórico — fator fundamental para os ajuizamentos e definições levados a efeito para o seu acautelamento e restauração, se adulterada sua feição original. Atibaia está compreendida, entre muitas outras cidades paulistas, no quadro geral do bandeirismo de caça e escravização do indígena e de descobrimento do ouro do século 17. No caminho de São Paulo a Minas Gerais, a povoação deve sua origem ao bandeirante Jerônimo de Camargo que se fixou na região para dedicar-se à criação de gado, tendo erguido em suas terras uma capela dedicada a São João Batista no ano de 1665. Nos séculos 18 e 19 sobretudo, sua pecuária e agricultura de gêneros alimentícios, contribuíram para a formação do que Paul Singer denominou hinterland da cidade de São Paulo, conferindo-lhe uma condição importante no cenário econômico paulista quando é edificada a Câmara e Cadeia de Atibaia. SINGER, Paul. Economia política da urbanização. São Paulo, Brasiliense, 1985.
17
É bom que se esclareça, entretanto, que o fato de Luís Saia não ter promovido em seu tempo o tombamento dessas três igrejas setecentistas que remanesceram no núcleo histórico de S. Paulo (as duas franciscanas e a Terceira do Carmo), elas resistiram, com suas configurações setecentistas quase inalteradas, às transformações urbanas de 1937 em diante e permanecem em cena até os dias de hoje, tendo o Iphan de São Paulo assegurado a proteção da carmelitana em processo que terminou em 1996, já sob a ótica que aqui procuramos apresentar acerca da inovação ocorrida no sistema construtivo tradicional da taipa de pilão associado à pedra de cantaria, a que também se tem denominado atualmente de arquitetura mista, e também em razão de possuir pinturas de grande valor documental e artístico que ornam o seu interior (especialmente as dos forros da capela mor, nave e coro executadas entre 1796-1798 por Padre Jesuíno do Monte Carmelo e as da sacristia, por José Patrício da Silva Manso e a mais antiga, do consistório, feita por Manoel José Pereira de 1758). Quanto às igrejas das Ordens Terceira e Primeira de São Francisco esclarecemos que já estão concluídos os processos de tombamento, à espera da apreciação do Conselho Consultivo do Iphan desde 2020. Por fim, é bom lembrar o que é por demais conhecido: a situação calamitosa em que se encontra o órgão federal de preservação atualmente, submetido a ingerências de toda ordem nesses últimos anos, que o fragilizaram e tem impedido que exerça livre e plenamente o papel que lhe foi destinado pelo Decreto-lei n. 25, de 30 de novembro de 1937.
18
ANDRADE, Antonio Luiz Dias de. Um estado completo que pode jamais ter existido. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 1993 <https://tinyurl.com/4ux2scd2>.
19
O amigo arquiteto Luís Magnani foi quem me esclareceu sobre a composição descrita, ensinando-me ainda que “antes do cimento, usavam a cal em várias gradações... em geral 1:3 (uma parte de cal e três de areia”. Acrescentando: “As pedras de cantaria usadas nos portais e janelas eram peças autoportantes. As molduras argamassadas, em geral, revestem estruturas de tijolos ou outros materiais, mas sem função estrutural — apenas acabamento. Quando tem efeito decorativo, com relevos, frisos etc., poderiam ser moldadas e aplicadas posteriormente”.
20
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de São Paulo. Arquivo Fotográfico: Cadernos de Obras. Anotações de Luís Saia conforme sequência das fotos acima: “Porta de entrada. Detalhe mostrando a posição da primitiva ombreira”; “Salão do pavimento superior. Revestimento primitivo sobre parede de pau-a-pique” e “Lado direito detalhe. Notar a parte de pedra e de tijolos”.
21
E se examinarmos fotos da São Paulo Antiga, de 1860 em diante, assim como de outras cidades interioranas paulistas, o que vemos ainda são muitas residências urbanas, assim como prédios públicos, apresentarem feições resultantes desse sistema misto que, já no início da construção, encamissava a taipa com tijolos para receber a argamassa como elemento decorativo em suas fachadas.
22
A respeito de Tebas existe razoável material disponível em artigos e crônicas já muito conhecidas, como a de José Jacinto Ribeiro, Cronologia paulista; Afonso de Freitas, Tradições e reminiscências paulistanas; Nuto Sant’Anna, Thebas: subsídios inéditos para a reconstituição da personalidade do celebre arquiteto paulistano do século XVIII e Tebas, o escravo (lenda paulistana do século XVIII). Mais recentes e ainda pouco conhecidos são os artigos dos autores Wagner Ribeiro, “Tebas o escravo arquiteto do século 18” (Revista Leituras da História, n. 50, abr. 2012); Carlos Gutierrez Cerqueira, Tebas — Vida e Obra na São Paulo Colonial” <https://tinyurl.com/3vc87zee>; Carlos Gutierrez Cerqueira, Tebas e o Dia da Consciência Negra” <https://tinyurl.com/bdfkn48h>; Carlos Gutierrez Cerqueira, “Tebas Negro Arquiteto” <https://tinyurl.com/4zpebbnz>; Abílio Ferreira, “Tebas e o tempo” (In Tebas, um negro arquiteto na São Paulo escravocrata [abordagens], Idea/CAU SP, 2018 e Luís Gustavo Reis, A trajetória de Joaquim Pinto de Oliveira, o Tebas: trabalho, escravidão, autonomia e liberdade em São Paulo colonial (1733-1811). Dissertação de mestrado. São Paulo, Unifesp, 2021 <https://tinyurl.com/2p9xwa67>.
23
Progresso, porém, que carrega consigo algo a se lamentar relativamente a qualidade dos materiais que compõem a configuração da construção; sua feição exterior deixa de apresentar a qualidade escultural da pedra de cantaria, substituída por ornatos fabricados de argamassa, não contando mais com o trabalho artístico do artesão, oficial ou mestre, agora substituído por artífices ou operários que se valem de formas ou moldes para fabricação dos ornatos utilizados na configuração das fachadas dos edifícios.
sobre o autor
Carlos Gutierrez Cerqueira é formado em História (FFLCH USP, 1975) e Técnico em Pesquisa da Superintendência Regional do Iphan/SP desde 1983.