A presente crise ultrapassa o campo financeiro e é daquelas que, justificando as raízes etimológicas que associam este termo a “decisão e mudança”, exigem a reflexão de todos: economistas, antropólogos, sociólogos, filósofos, intelectuais, artistas, politólogos, urbanistas. Reflexões e até previsões, aliás, tem havido há alguns anos: desde as veementes denúncias de favelização mundial de Mike Davis, às restrições de Peter Drucker à forma como o capitalismo privilegiava finanças tornando-o autônomo; das teses de transformações reflexivas do capitalismo de Back, Giddens e Lash, segundo as quais o progresso pode tornar-se auto-destruição, às críticas de Baumann sobre a gravidade do abandono dos trabalhadores; das denúncias de Rifkin de que a finança estava abandonando a economia, às de Roubini vaticinando a proximidade do estouro da “bolha”. Não adiantaram os avisos. Cobiça, lucros imediatos, negação e fraudes, apoiados em políticas neo-liberais, ausência de transparência e de regulamentação, levaram a melhor. Melhor? Por ora só há falências, desemprego e recessão, um panorama aparentemente catastrófico.
Porém crise desta amplitude e profundidade, mesmo quando traumática, também constitui uma oportunidade a não ser desperdiçada. As civilizações se urbanizaram, as favelas cresceram, espaço e tempo encolheram graças à conectividade global, as desigualdades e injustiças sociais e de direitos tornaram-se insuportáveis, a “saúde” do planeta foi posta em perigo por ações predatórias do mercado. Isto constitui uma pauta nova. Para atender à emergência, há que investir recursos públicos em defesa do trabalho digno e da diminuição das desigualdades, na contramão da nefasta ação dos bem remunerados job-killers da última década. Porém há que fazê-lo com critério: auto-montadoras seriam socorridas somente se firmassem compromisso de acelerar a fabricação de veículos que consumam menos combustível, não poluidores, provavelmente elétricos com baterias de hidrogênio; o crédito bancário ao consumidor final a juros baixos, teto para os altos salários, transparência e controle acionário social, seriam condições para bancos receberem recursos públicos. Ajuda financeira pública à habitação deveria implicar em um mais regulado e limitado uso do solo urbano, substituindo a voracidade que consome o espaço das cidades por uma maior qualidade de vida para todos. E, em todos os casos, financiamentos públicos devem ser ponderados por critérios ambientais, em função do número de empregos mantidos ou gerados e depender de um entendimento prévio entre empregados e empregadores.
Além das emergências, há no entanto uma questão básica de fundo: o que está em jogo nesta década, é, a meu ver, qual o processo e mecanismo social e político mais adequado para hoje operar a economia de mercado. Suas leis básicas – oferta e demanda, excedente de produção, acumulação e valor – foram estabelecidas muito antes da invenção do capitalismo e mesmo antes da criação da moeda. Se o capitalismo, seus bancos, originários da Itália renascentista, seus juros e demais jogos financeiros desenvolvidos no mercantilismo fizeram do capitalismo um operador ágil para o financiamento da revolução industrial do século 19 e sua expansão comercial, isto não quer dizer que ele continue sendo, no formato atual, o operador ideal da economia do mercado do século 21 em diante. Encerrado dramaticamente o triste episódio do neoliberalismo, cabe ao Estado e à sociedade reverem, em nova articulação, quais os limites de ação do mercado. Esta nova articulação, a resultar em uma economia de mercado de nova gestão, coerente com o interesse público, socialmente monitorada embora mantendo sua criatividade, é, no fundo, o desafio da crise que explodiu quando ocorreu o transtorno causado por uma das pontas do iceberg: a aventura financeira irresponsável , desnudada pela queda, no setor imobiliário, da primeira pedra de dominó.
Concluindo: para planejar no século 21 devemos encontrar as sementes de inovação que se encontram nas dobras das múltiplas rupturas que ocorreram na última década do século 20. Inclusive na atual ruptura entre finanças e economia, entre lucro e trabalho. Devemos considerar a crise como “o fim de um mundo” e torná-la fecunda, com criatividade e ousadia. Esta é a tarefa intelectual e política a que devemos, todos, nos dedicar.
notas
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Artigo originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo, 05 mar. 2009, p. 3.
sobre o autor
Jorge Wilheim é arquiteto e urbanista.Jorge Wilheim, São Paulo SP Brasil