O costumeiro hábito de virar a página da história, relegando ao esquecimento assuntos que deixaram de ser destaque principal no noticiário, não pode prevalecer no caso dessa tragédia que vitimou centenas de pessoas na região serrana do Rio de Janeiro. A solidariedade presenciada durante e após os acontecimentos não foi suficiente para aplacar a nossa revolta com o descaso ou a má fé daqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para agravar os atuais acontecimentos.
Como não se pode atribuir a desgraça aos desígnios divinos, a alternativa que resta é avaliar cuidadosamente os fatos para melhor compreender as causas e suas conseqüências. Querer justificar esse acidente apenas pela presença de construções precárias nas encostas dos morros é, no mínimo, uma atitude preconceituosa e leviana. Afinal, os trechos desbarrancados, geralmente, estavam cobertos de vegetação e não possuíam construções dento dos seus limites. A principal causa dos deslizamentos se deve à chuva intermitente que infiltrou e encharcou as encostas tornando-as frágeis para resistir ao forte temporal que lhe sucedeu. A imensa camada de terra que se desprendeu do alto dos morros arrastou casas e tudo que encontrava pela frente. Por sua vez, a força devastadora da água dos rios invadiu vales habitados e destruiu totalmente o que ainda restava nas áreas atingidas.
Que fique claro que esse esclarecimento não diminui a nossa indignação diante da permissividade com que é tratada a ocupação do solo urbano. A falta de transparência nos processos burocráticos acaba criando dificuldades para se vender facilidades e, com elas, as práticas ilícitas de diversas naturezas. Uma delas se reflete no crescimento desmesurado e descontrolado da ocupação irregular do solo urbano. Esse fenômeno adquiriu proporções que extrapolam os limites do que se pode considerar razoável. A própria Presidente da República evidenciou recentemente esse fato ao afirmar que, hoje, no Brasil, a moradia informal é a regra e não a exceção, como deveria ser. E o que fazer diante dessa constatação? Seguramente, o melhor caminho é apreciar a questão sem recorrer aos velhos clichês que reduziram a discussão da política urbana brasileira a uma mera disputa ideológica. Seria muita desfaçatez continuar repetindo a mesma retórica sem nada propor para atenuar o problema habitacional das camadas mais pobres da população. Muito menos continuar de braços cruzados argumentando que a informalidade é a única alternativa viável para resolver o déficit de habitação popular.
Na verdade, este é um tema complexo que não pode ficar restrito a aplicação de conceitos ultrapassados que se esgotaram ao longo das últimas décadas. Sem um programa habitacional subsidiado pelo governo e incorporado às áreas urbanas dotadas de infra-estrutura, dificilmente se alcançará uma oferta de imóveis regularizados que seja compatível com a demanda de moradia popular. Não será, também, por meio da implantação de modelos convencionais de habitação que iremos reverter o déficit existente. Paralelamente, temos que cobrar investimentos em pesquisas habitacionais e na capacitação técnica dos profissionais que atuam nessa área específica de interesse social.
No que diz respeito à prevenção de acidentes, como o que aconteceu na região serrana, é necessário investir nos sistemas de monitoramento dos fenômenos da natureza, através da aquisição de equipamentos tecnológicos de última geração que ajudem a identificar e delimitar as áreas efetivamente de risco. Nos locais apontados, além da contenção de encostas e do reflorestamento, deverá ser feito o remanejamento das habitações irregulares ali existentes, assentando os seus moradores na própria comunidade ou em áreas disponíveis no seu entorno.
Além da demarcação das áreas de risco e de proteção ambiental, é necessário realizar os projetos de macro-drenagem, as barragens de contenção, a canalização das águas pluviais, a desocupação das margens de rios e canais, a sistematização da coleta de lixo, o controle da estabilidade do solo e das construções existentes nos assentamentos populares. Esses aspectos, associados à implantação dos sistemas de infra-estrutura local, não podem ser menosprezados, sob o risco de assistirmos novas tragédias com proporções semelhantes.
Não basta, portanto, nos atermos apenas às particularidades das leis que indicam o que é certo e o que é errado. É necessário ter a convicção de que o nosso papel como cidadãos extrapola os limites legais impostos pela sociedade e nos impele a interferir efetivamente na preservação dos ambientes onde vivemos. É através desse comportamento solidário que conseguiremos enfrentar os desafios da natureza e as arbitrariedades praticadas por aqueles que tratam a cidade como se fosse terra de ninguém.
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Publicação original: JANOT, Luiz Fernando. A revolta com o descaso. O Globo, Rio de Janeiro, 18 jan. 2011.
sobre o autor
Luiz Fernando Janot é arquiteto urbanista, professor da FAU UFRJ.