O corredor, espaço que serve para comunicar ambientes, é o pesadelo dos arquitetos. Uma planta que tem corredores longos é pouco eficiente. Um prédio de escritório com muita área de circulação é um prédio mal resolvido. Um corredor comprido, escuro e deserto é causa de um horror vacui, um espaço claustrofóbico, anônimo, desconcertante. Mas um apartamento de muitos quartos e sem corredores é um apartamento de aproveitamento máximo e sem desperdício de área ou, num mundo onde o espaço sempre é mercantilizado, um “bom” apartamento.
Arquitetos do mercado imobiliário sempre lutam contra ele, mas Rafael e todos os arquitetos que viveram antes do século XVII já tinham resolvido essa questão: eles projetavam palácios enormes, de 500, 1000, 5000 m2, sem nenhum corredor. Área de circulação: 0%, área útil: 100%. Assim eram as plantas dos palácios renascentistas: uma porta para cada cômodo vizinho, e tanto mais portas melhor.
Conceitos hoje considerados óbvios como conforto e privacidade não estavam naqueles palácios. Para se chegar ao último quarto era preciso passar por todos os outros que o antecediam, fazendo das plantas uma matriz de quartos conectados. Alberti disse que “é conveniente locar as portas de modo que elas liguem o maior número possível de partes de um edifício”, o que prova que essa solução, menos que impensada, tinha suporte teórico de um grande intelectual também renascentista. Poderíamos assim chegar a um cômodo determinado por vários trajetos, já que tudo era permeável aos inúmeros membros da família, aos empregados e aos visitantes, todos eles obrigados a entrar nos outros cômodos que estavam no meio de seu caminho. As portas deveriam estar alinhadas (enfilade) para que fosse possível a visão ininterrupta de um lado da casa ao outro, e isso era sinônimo de bom projeto arquitetônico.
Ao facilitar a comunicação entre quartos e permitir o trânsito independente pela casa, o corredor, um distribuidor de movimentos que apareceu por volta do século XVII, separou as pessoas e passou expressar a idéia de privacidade. A partir daí, aquele que entra sem pedir licença poderia estar invadindo o espaço do outro, confirmando o quanto o corredor foi importante para o uso individual e recluso do quarto.
Ao contrário de tudo que define uma casa – a sala, o quarto, a cozinha – o corredor é o indutor de uma atividade bem específica – circular, e sua especificidade é que o leva a ser considerado um desperdício de espaço: o lugar que deve sempre permanecer vazio; um vazio indesejado, porém inevitável. Poucos espaços são tão desconfortáveis quanto o corredor do Edifício JK, um típico conjunto residencial onde não foi possível resolver o problema do corredor. Como um horror vacui da arquitetura, esses locais sufocantes são quase que a materialização espacial da claustrofobia; um paradoxo onde a ausência de eventos, a falta de coisas e o excesso de perspectiva geram um horror ao vazio.
O inglês Robin Evans, um dos poucos críticos que atentaram para o modo de ocupar a casa ao longo dos tempos, considera o corredor um lugar do evento desimportante (de fato, ninguém se lembra do tempo que já passou no corredor). Mas se olharmos o corredor mais que um vazio permanente, podemos considerá-lo como algo tão sujeito a outros usos quanto outros lugares da casa. Um quarto pode virar uma sala, uma sala pode virar um escritório, um banheiro pode virar uma estufa. E um corredor, esse distanciador de pessoas para Robin Evans, pode reaproximá-las.
Antes, os cômodos eram polivalentes; nunca monofuncionais. Para os aristocratas do período barroco, o banheiro deveria ir a eles, e não o contrário. Não havia banheiros em Versalhes, e certo era que os criados deveriam trazer uma latrina móvel para os quartos, ou “cadeira de retrete” que, logo depois de usada, era recolhida pelos criados. Nas casas dos plebeus, tudo podia mudar de função do dia para noite: de dia, escritório ou oficina; de noite, o quarto da família.
As coisas foram mudando, e a especificação contínua das plantas culminou com a máxima ”a forma segue a função” da arquitetura moderna, o corredor sendo o mais funcional dos espaços arquitetônicos. E tudo passou a ser mais previsível: aqui, dormir; ali, jantar; lá, trabalhar; aí, circular. Se hoje essa separação de atividades é possível mesmo em apartamentos populares, antes ela não ocorria nem mesmo nos chateaux, nos palazzi, nas villas.
Uma das interpretações do horror vacui é a compulsão para ocupar todos os espaços como reação ao medo do vazio. Como o escultor Arman fazia em suas instalações, como o gravador renascentista Jean Duvet fazia em suas gravuras, como os egípcios escreviam seus hieróglifos: sem espaços brancos na tela ou na estela ou na sala da galeria.
nota
NE
Texto e fotos previamente publicados no livro (do autor) Entre, Instituto Cidades Criativas, 2009
sobre o autor
Carlos Moreira Teixeira é arquiteto pela EA-UFMG e mestre em urbanismo pela Architectural Association. Publicou os livros História do Vazio em BH (Cosac Naify), Espaços Colaterais (Instituto Cidades Criativas) e é sócio do escritório Vazio S/A.