Os graves e recorrentes problemas de ordem geológico-geotécnica-hidrológica que têm vitimado milhares de brasileiros, como processos de enchentes, deslizamentos de taludes e encostas, solapamentos de margens de curso d’água e orlas litorâneas, têm tido sua principal origem na incompatibilidade entre as técnicas de ocupação urbana e as características geológicas e geotécnicas dos terrenos onde são implantadas.
No caso dos deslizamentos, ou são ocupados terrenos que por sua alta instabilidade geológica natural não deveriam nunca ser ocupados – é o caso comum das expansões urbanas sobre a Serra do Mar e outras regiões serranas tropicais, ou são ocupadas áreas de até baixo risco natural, perfeitamente passíveis de receber a ocupação urbana, mas com tal inadequação técnica que, mesmo nessas condições naturais mais favoráveis, são geradas situações de alto risco geotécnico – é o caso de São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife e tantas outras cidades brasileiras.
No caso das enchentes prevalece a cultura técnica da impermeabilização, das avenidas de fundo de vale com extensiva retificação/canalização de córregos, do espraiamento urbano horizontal, fatores causais básicos dos crescentes volumes de águas pluviais cada vez mais rapidamente aportados ao sobrecarregado sistema de drenagem.
No caso de solapamentos de margens de rios e orlas litorâneas revela-se a indevida e inconseqüente ocupação de locais nitidamente sujeitos a processos naturais cíclicos de alto poder destrutivo.
O fato é que, ao lado das deficiências crônicas de nossas políticas habitacionais, o que acaba obrigando a população mais pobre a buscar solução própria de moradia em áreas geotecnicamente e hidrologicamente problemáticas, não possuímos no país uma cultura técnica arquitetônica e urbanística especialmente dirigida à ocupação de terrenos de acentuada declividade, à redução dos coeficientes de escoamento hidrológico superficial e a outros atributos naturais críticos. Isso se verifica tanto nas formas espontâneas utilizadas pela própria população de baixa renda na autoconstrução de suas moradias, como também em projetos privados ou públicos de maior porte e perfeitamente regulares que contam com o suporte técnico de arquitetos e urbanistas. Em ambos os casos, ou seja, no empirismo popular e nos projetos mais elaborados, prevalece infelizmente uma cultura técnica urbanística e arquitetônica em que não se nota a devida preocupação com as características geológicas naturais dos terrenos ocupados. Esse tem sido o cacoete técnico que está invariavelmente presente na maciça produção de áreas de risco no país.
Ou seja, em que pese a excelência e indispensabilidade dos instrumentos técnicos de boa gestão urbana produzidos pela Geologia de Engenharia e pela Engenharia Geotécnica, não serão unilateralmente suficientes para a solução dos graves problemas urbanos associados ao meio físico geológico. A complexa essência causal desses problemas exige uma abordagem multidisplinar, com papel destacado para a participação da Arquitetura e do Urbanismo. Enfim, é imperativa a necessidade da arquitetura e do urbanismo brasileiro incorporarem em sua teoria e sua prática os cuidados com as características geológicas dos terrenos afetados. Essa nova cultura automaticamente levaria a uma mais estreita colaboração entre Arquitetura, Urbanismo, Geologia e Engenharia Geotécnica.
Seria assim por demais oportuno que nossas associações, nomeadamente a ABGE e a ABMS, tomassem a iniciativa de buscar entendimentos com as associações representativas de arquitetos e urbanistas, IAB - Instituto de Arquitetos do Brasil e CAU – Conselho de Arquitetura e Urbanismo, para a promoção de eventos técnicos comuns, indispensáveis para a soma articulada das diferentes abordagens.
sobre o autor
Álvaro Rodrigues dos Santos, geólogo, ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT e Ex-Diretor da Divisão de Geologia, autor dos livros Geologia de engenharia: conceitos, método e prática, A grande barreira da Serra do Mar, Cubatão e Diálogos geológicos, consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente.