Há muito, muito tempo, no século XVI, os jesuítas levaram alguns índios às margens do rio Pirajuçara, hoje rio Pinheiros, bem longe do Colégio de Piratininga, para ali fazerem sua aldeia, época em que se trocou o nome do lugar, Ibirapuera, para Santo Amaro. Na linguagem dos bugres, o local referia-se a alguma grande árvore dali que morrera por qualquer motivo. “Ibira” era a denominação das árvores em geral, e “puera” queria dizer velha, estragada, deteriorada. Essa acepção estendeu-se a toda a região e, mesmo após deixar de ser empregada na referida povoação dos índios afastados pelos padres, perdurou nos campos ao seu redor. Até hoje subsiste, identificando o parque que os paulistanos tanto amam, mas que até cinquenta anos atrás ainda tinha suas bordas sendo invadidas, apossadas impunemente por gente que jamais temeu represálias.
Ali ninguém reclamou das construções do Exército a partir da rua Tutoia, das obras do Instituto Biológico da Secretaria de Agricultura, do Hospital do Servidor Público, do Hospital Prof. Edmundo Vasconcelos ou da instalação do Tribunal de Contas do Município. Tudo resolvido, no entanto, por escrituras de comodato. A própria Prefeitura, num dos cantos da grande gleba disponível, para abastecer seus jardins instalou o celebrado viveiro de plantas Manequinho Lopes, que até hoje presta inestimáveis serviços. Enfim, a grande área descuidada que restou dos invasores foi lembrada para sediar uma das mais ambiciosas comemorações do Quarto Centenário da cidade, marcadas para 1954.
Tive a oportunidade de trabalhar na equipe de arquitetos comandada por Oscar Niemeyer, o autor do projeto do nosso parque, porque era eu justamente o responsável pelo seu escritório paulistano encarregado de desenvolver os trabalhos referentes aos condomínios incorporados pelo Banco Nacional Imobiliário, dirigido por Roxo Loureiro e por Octavio Frias. Meu título, nos papéis oficiais, era de simples colaborador do grupo de titulares, também composto, além de Niemeyer, por Zenon Lotufo, Eduardo Kneese de Mello, ambos paulistas, e por Hélio Lage de Uchoa Cavalcanti, amigo carioca de Oscar. Trabalhar ali me envaideceu bastante e logo fui encarregado de desenhar o perímetro do lago imaginário para captar as águas dos córregos que atravessavam a gleba, visando antes de tudo estabelecer e localizar a curva de nível das imagens, isto é, a cota ideal para garantir a drenagem dos locais charcosos e o posicionamento dos edifícios acima do percurso das águas pluviais que corressem normalmente pelo terreno.
Trabalhou-se dia e noite desenhando, detalhando e calculando os prédios esboçados por Oscar em seu escritório do Rio de Janeiro. Éramos permanentemente açulados por Ciccillo Matarazzo, o infatigável presidente da Comissão do Quarto Centenário de São Paulo, que tinha somente cerca de um ano e meio para começar e terminar as obras programadas dos pavilhões de exposições. Isso me faz lembrar hoje de Juscelino construindo Brasília a toque de caixa, sendo auxiliado pelo mesmo arquiteto: Oscar, o homem mais calmo do mundo.
Niemeyer de início tinha nas mãos uma lista de edifícios programados pela comissão. Três ou quatro para sediar exposições temáticas, além de temas culturais como a história da cidade, parece que imaginada por Jaime Cortesão, especialmente vindo de Portugal. Até um teatro e um grande restaurante foram imaginados. A grande sacada de Oscar foi imaginar uma vasta cobertura de concreto armado com vários braços alcançando e unindo entre si os vários prédios, qual um polvo estendendo seus vários tentáculos por todo o terreno. O nome equivocado de “marquise” pegou e hoje todo mundo assim denomina o grande espaço coberto a proteger do sol e da chuva o povo que transita daqui para ali em busca de diversão e saber.
Dentre os edifícios destinados a abrigar exposições destacou-se a atual sede da Bienal de São Paulo − construção enorme; imaginem vocês que ela é mais larga e mais comprida que a rua Barão de Itapetininga, que vai do Teatro Municipal à praça da República, no centro da cidade. Visitando andar por andar, indo e voltando, entrando e saindo dos estandes dos vários artistas dos variados países, a gente acaba andando quilômetros, daí a conotação: a Bienal não é para um dia só. Programe-se e vá de tênis.
Hoje, o prédio da Bienal não é exatamente como era no dia de sua inauguração, e é impossível retorná-lo à sua fisionomia antiga, por serem irreversíveis as intervenções ali efetuadas. Essa dificuldade decorreu de uma imprevidência ou, digamos, do mau uso da edificação. Conto agora como foi o desastre, porém antes devo explicar como Oscar imaginou a cobertura do prédio.
Naquele tempo de tecnologia ainda incipiente quanto à impermeabilização de grandes lajes, o modo mais “moderno” de cobrir as construções era o uso de telhas onduladas de fibrocimento. Um telhado normal com aquele tipo de cobrimento iria ter significativa altura, e, dadas as dimensões fora do normal da obra, a cumeeira resultante seria altíssima, comprometendo as visuais horizontais das construções de todo o parque. Então, o telhado alto foi substituído por quatro panos baixos que despejavam as águas pluviais em duas calhas paralelas situadas sobre as duas fieiras de colunas internas de sustentação das lajes. Com esse fracionamento em gomos, a altura do telhado reduziu-se significativamente. Tais calhas, por sua vez, conduziram as águas da chuva para dutos verticais instalados dentro das colunas ocas e dali elas escorriam por uma deflexão em ângulo reto situada nas fundações para a galeria subterrânea. Solução inteligente com todos os condutores escamoteados.
Alguns anos mais tarde surge o imprevisível: quilos e mais quilos de cinza proveniente da queima de fogos de artifício entopem para sempre os cotovelos nas bases das colunas levados pelas águas da primeira chuva ocorrida depois dos festejos dos cinquenta anos da Revolução Constitucionalista de 1932. É que usaram as bordas do nosso prédio para amparar os dispositivos pirotécnicos destinados a reproduzir por longo tempo as cataratas do Iguaçu, cujas águas luminosas desciam faceando os vidros enquanto ao céu subiam estrelas multicoloridas num espetáculo verdadeiramente grandioso. O vento levou as cinzas para as calhas e dali transportadas colunas adentro pela chuva. Novo telhado que exigiu alterações nas empenas e condutores nas fachadas que hoje estão prejudicando a ideia inicial.
Por dentro, no entanto, a beleza continua e há de se louvar, sobretudo, o trecho das rampas situadas dentro do vazio do perímetro sinuoso, onde as colunas estendem braços para amparar as lajes afastadas, tudo graças à imaginação de Niemeyer e à sensibilidade do calculista Gustavo Gam (sim, necessariamente os bons calculistas têm de ser sensíveis às coisas da arte), que, ali, foi um coautor do projeto. Seu nome está naturalmente esquecido, como está o de Joaquim Cardozo, grande poeta e calculista dos prédios de Brasília. No entanto, na verdadeira história da arquitetura brasileira serão sempre lembrados, porque exemplares acólitos da infatigável imaginação de Oscar Niemeyer Soares Filho.
nota
NE
Artigo publicado na revista Daslu Arte, edição especial, jun. 2003. Republicado no livro LEMOS, Carlos Alberto Cerqueira. Da taipa ao concreto – crônicas e ensaios e sobre a memória da arquitetura e do urbanismo. São Paulo, Três Estrelas, 2013.
sobre o autor
Carlos Lemos é arquiteto, artista plástico e professor no Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.