“Se a Torre de Babel tivesse sido concluída, não haveria arquitetura. Somente a impossibilidade de completá-la tornou possível à arquitetura, assim como a multidão de línguas, ter uma história.” (Derrida)
A curadoria de Rem Koolhas para a Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza 2014 (1), Fundamentals, é, antes de tudo, um exercício de metalinguagem. A seção da mostra intitulada Elementals of Architecture é a alma desse exercício. Nela, elementos da arquitetura como portas, janelas, escadas e varandas são divididos em salas e suas variações ao longo do tempo, exploradas.
Elementals of Architecture atravessa a história da arquitetura sem pudores, discursa sobre inúmeras histórias, origens, diálogos, diferenças e similaridades entre os elementos apresentados. Perpassa, assim, os séculos à procura de uma linha narrativa em meio aos mais variados elementos para apreender a arquitetura. Como se o curador procurasse uma reconciliação com Deus, aquele que confundiu as línguas quando pronunciou “Babel” e tornou a arquitetura e as demais línguas possíveis, pela desconstrução do projeto dos descendentes de Noé. Sendo a Torre de Babel o desejo mais palpável do homem de atingir o céu e de totalizar os discursos, a limitação imposta sobre o término da Torre e o consequente desmantelamento de uma linguagem universal acarretaram na ruptura de um plano de dominação política e linguística do mundo, nos informando, portanto, sobre a impossibilidade de uma única tradução universal. Koolhas, portanto, compactua com o divino em sua mostra na medida em que alicerça sua exposição na diversidade arquitetônica, na diversidade das formas de contar e interpretar a história, somente possível pela desconstrução, antes de tudo, da tentativa do homem de construir uma só linguagem.
Se toda linguagem sugere uma espacialização, como coloca Derrida em entrevista dada à Eva Meyer, em 1986, isso significa que dela podemos nos aproximar e, assim, desbravá-la, tal como desbravamos caminhos de espaços habitáveis e seus percursos interiores. Se a linguagem não pode controlar por si só os trajetos, isso significa que a própria linguagem está implicada nesses caminhos e que, portanto, está também em movimento. A exposição, assim como a linguagem, se configura como um caminho a ser explorado, uma armadilha, um dispositivo com elementos a serem reinterpretados. A micro-narrativa desbravada primeiramente por Koolhas, enquanto curador, possível graças aos dois anos de empenhada pesquisa em acervos e arquivos, traz à arquitetura e à sua história uma nova via de acesso, um novo caminho a ser percorrido através dos elementos que materializam os costumes, materiais e técnicas de cada período e lugar.
Koolhaas, ao contrário de Ícaro que procurava sua liberdade através da visão totalizante, ou seja, da visão de Deus do mundo, da erótica da leitura do cosmos, do prazer de ver o conjunto, e da superação e totalização todas as perspectivas, ata seu corpo ao chão, desbravando, abrindo e inventando uma nova maneira de ver a arquitetura, até então inexplorada nas anteriores edições da Biennale. Ícaro desenlaça o corpo da Terra e o faz girar segundo uma lei anônima que subverte as práticas discursivas; Koolhas as encara e faz delas o mote de sua curadoria.
O fato de essa Bienal de Arquitetura ser também uma desconstrução do modo de ver e escrever a arquitetura nos informa sobre a impossibilidade de uma tradução universal, assim como uma construção historiográfica única e engessada. A exposição, entre outras características, é uma expressão de desacordo com a história da arquitetura contada pelos manuais a partir de períodos e obras icônicas. Ao apresentar elementos que são pretensamente universais e que trazem à exposição a tensão que é intrínseca à memoria, Koolhas permite aos visitantes uma leitura aberta e composta por retóricas. Essa exposição é, certamente, uma aula de curadoria e de arquitetura; a história é o poder de barganha, a arquitetura, no âmbito tectônico, mantém a promessa de realidade, carregando em sua materialidade os múltiplos significados e enunciados.
nota
A exposição fica aberta ao público até dia 23 de novembro de 2014.
sobre a autora
Anne Capelo é graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela UNICAMP. Foi formadora na Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da mesma universidade, além de ter colaborado como assistente de pesquisa na exposição Exílio e Modernidade: O Espaço e o Estrangeiro na Cidade de São Paulo. Atualmente, é bolsista de Iniciação Científica no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.