Havia um tempo em que a terra era mais perto do céu. E havia um homem que sonhava com esse céu, com suas imagens, com seus anjos e santos, em um permanente transe artístico, místico e religioso. Esse homem era Antônio Francisco Lisboa, conhecido como "Aleijadinho", filho de um arquiteto e mestre de obras português, Manoel Francisco Lisboa e de uma escrava de nome Isabel. Considerado por muitos, entre eles Germain Bazin – restaurador chefe do Louvre, biográfo do nosso artista e autor de obras de referência sobre o barroco brasileiro, como Arquitetura religiosa barroca no Brasil (1) – como o maior artista das Américas no período colonial, revolucionou os cânones do barroco/rococó e produziu extensa obra de arquitetura e imaginária. No próximo dia 18 de novembro de 2014 será celebrado seu bicentenário de morte, com atividades em várias cidades brasileiras, especialmente em Ouro Preto.
Figura quase mítica, padeceu de uma enfermidade deformante que dificultava sua locomoção e trabalho. Graças a ele e outros tantos artistas, muitos deles anônimos, mestiços sem formação regular já que não existiam academias ou universidades no Brasil à época, o nosso barroco assumiu identidade própria e singular, superando as regras rígidas estabelecidas por Roma.
Reconhecido pelos modernistas como Mário e Oswald de Andrade, Lucio Costa e Manoel Bandeira, e alçado a condição merecedora de herói nacional, Aleijadinho conseguia quase que extinguir o paradoxo entre o céu e a terra, trazendo a nós nos templos por ele riscados e nas inúmeras imagens esculpidas, o fulgor divino que amortecia as paixões terrenas e que nos conduzia a intensa religiosidade de sua época. Entre sua extensa obra destacam-se as igrejas de São Francisco de Assis em Ouro Preto e São João del Rei e os profetas e a via sacra do Santuário de Bom Jesus do Matosinhos em Congonhas do Campo.
A historiografia atual considera que o século 18 em Minas Gerais extrapola os limites da centúria. Inicia-se em 1693 com a descoberta do ouro e se encerra com seu declínio em 1810 e o início do vice-reinado. Neste período segundo várias fontes como Noya Pinto, Roberto Simonsen e Eschwege, foram extraídos cerca de mil toneladas de ouro. Grande parte dessa riqueza foi parar em mãos estrangeiras, em função dos acordos comerciais estabelecidos por Portugal com a Inglaterra e outras potências europeias.
A arquitetura civil e a religiosa marcaram a aliança entre o mundo dos homens e o divino. As casas de intendência, de fundição, de câmara e cadeia e o paço dos governadores em Ouro Preto são os exemplares mais significativos do aparato fiscal e administrativo. O pelourinho simbolizava a justiça, quase sempre aplicada apenas aos deserdados da sorte, aos escravos e libertos. As igrejas ao abrigo das quais se desenrolava a vida religiosa, a educação e a previdência, o lazer e a sociabilidade, enfim a vida cotidiana, assume dimensão tão importante quanto das cidades litorâneas como Salvador, Olinda, Recife e Rio de Janeiro, embora as ordens religiosas não tivessem autorização para se instalar na capitania. As ordens terceiras desempenharam seu papel, abrigando desde as classes abastadas, aos escravos e libertos, em uma sociedade altamente estratificada. Ao mesmo tempo cenário de organização e vida social dos chamados então “homens bons”, comerciantes, mineradores, altos funcionários da coroa e proprietários rurais, e de evangelização de libertos e escravos de ascendência africana para aceitar as agruras da vida terrena. Um dos templos mais arrojados desse período, a igreja de Nossa Senhora do Rosário em Ouro Preto, que destaca-se por suas formas elípticas de influência borromínica, foi eregida por uma ordem terceira de cativos e libertos.
De simples capelas de taipa como a do Padre Faria em Ouro Preto e de Nossa Senhora do Ó em Sabará, posteriormente ricamente ornamentadas às Igrejas Matrizes como a Sé de Mariana, a Nossa Senhora do Pilar de Ouro e Nossa Senhora da Conceição de Antonio Dias, ambas em Ouro Preto e a Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Catas Altas, a aparência exterior sóbria é contrastada com um interior rico na profusão de detalhes, douramentos, altares, alfaias, pinturas de motivos devocionais e imaginária, onde se abrigavam várias capelas das diferentes irmandades. É o período onde o estilo barroco assume sua maior intensidade e magnificência, na primeira metade do século 18.
A metáfora da vida celestial, em oposição à vida terrena, caracterizada pela passagem de um exterior singelo e despojado, para a exuberância da talha dourada, das pinturas e da visão perspectiva, em um sutil jogo de convergências, que permite a antevisão do paraíso, foi em muitos casos utilizada com especial maestria, exibindo aos fiéis uma antevisão do mundo espiritual, como nos lembra Myriam Ribeiro em sua obra O rococó religioso no Brasil (2). Affonso Ávila, outro eminente historiador do barroco brasileiro, recentemente falecido, contextualiza de maneira igualmente precisa esta finalidade: “O novo estilo, caracterizado pela exuberância de formas e pela pompa litúrgico-monumental, atuaria como instrumento ao mesmo tempo de afirmação gloriosa do poder temporal da Igreja e de impacto persuasório sobre uma mentalidade social que se debatia entre os valores da tradição católica e a filosofia renascentista que liberava suas novas verdades” (3).
Na segunda metade do século o estilo rococó, com influências francesas e germânicas passa a dominar e a tornar as fachadas mais rebuscadas e as naves mais iluminadas, mas também ricas em detalhes e pinturas de forros e capelas, onde se mesclam elementos tanto do barroco como do rococó. Neste contexto social, econômico e cultural nasce em 1738, Antônio Francisco Lisboa, denominado “o Aleijadinho”. É iniciado nas artes do desenho, da arquitetura e escultura por seu pai Manoel Francisco Lisboa e pelo abridor de cunhos da Casa da Moeda de Lisboa, então foragido em Vila Rica, João Gomes Batista. Este foi o primeiro a reconhecer o excepcional talento do nosso artista.
Dentre sua extensa produção como já destacado, tem importância fundamental pelas inovações arquitetônicas, como o recuo e convexidade das torres sineiras das igrejas de São Francisco em Ouro Preto, a de mesmo nome em São João Del Rei e o fantástico conjunto dos Profetas e Passos de Bom Jesus de Matosinhos, composto por 64 peças em tamanho natural que formam as seis estações da via sacra, talhadas em cedro e concluídas, em 1799, e os doze profetas talhados em pedra, concluídos em 1805. A influência da arquitetura e estatuária do norte de Portugal é evidente quando o comparamos ao Santuário do Bom Jesus de Braga, guardadas as diferentes proporções. Encontramos obras do Aleijadinho em diversos outros municípios mineiros. São riscos de igrejas, portadas, oratórios, imagens e medalhões. Entre 1752 e 1810, segundo Ivo Porto de Menezes, o artista produziu centenas de obras em cidades como Mariana, Ouro Preto, São João Del Rei, Congonhas do Campo, Sabará, Barão de Cocais, Caeté, Tiradentes, Catas Altas, Nova Lima.
Já idoso muito doente e com dificuldades de locomoção, o “Aleijadinho” conta nessa tarefa monumental, com o concurso de artífices de sua oficina, e de seu “fiel” escravo Maurício. Sua obra tão vasta e peculiar foi produto de um tempo de religiosidade intensa, onde a arte e a arquitetura desenvolviam papéis intimamente relacionados à manutenção do status quo, como ainda hoje ocorre. Todavia, a arte estava bem mais presente no cotidiano e apropriada socialmente, do que na atualidade. Aleijadinho faleceu em 1814 clamando que o Senhor “sobre ele pusesse os seus Divinos Pés”.
Importante salientar o papel desempenhado pelo movimento modernista e posteriormente pelo Iphan, na revisão de paradigmas e de ressignificação da herança cultural brasileira. O resgate do barroco e do rococó e de suas manifestações artísticas até então relegadas a um segundo plano, valoriza aos olhos do país e do mundo um legado que embora de origem ibérica, revela a contribuição própria e singular de arquitetos, artistas, mestres e músicos, muitos deles mulatos e escravos, em condições muito peculiares, produziu um conjunto de realizações de grande beleza e apuro técnico. Antônio Francisco Lisboa, “o Aleijadinho”, é o mais célebre deles, mas Mestres como Manoel da Costa Ataíde, Francisco Xavier de Brito e Valentim da Fonseca e Silva, entre tantos outros, nos deixaram um legado indissociável de nossa arte e cultura. Foi a redescoberta de um Brasil que se mantinha quase invisível, de construção de uma independência cultural, em contraste com os padrões europeus, que até as primeiras décadas do século 20, eram a referência de um país que se urbanizava e procurava no academicismo de além-mar sua feição civilizatória.
notas
1
BAZAIN, Germain. Arquitetura religiosa barroca no Brasil. 2 volumes. Rio de Janeiro, Record, 1983.
2
OLIVEIRA, Myriam Ribeiro. O rococó religioso no Brasil e seus antecedentes europeus. São Paulo, Cosac Naify, 2003.
3
ÁVILA, Affonso. Ensaio introdutório. In ÁVILA, Affonso. Barroco Mineiro – glossário de arquitetura e ornamentação. 3. edição. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 1996, p. 5.
sobre o autor
Luiz Philippe Torelly é arquiteto e urbanista. Trabalha no Iphan.