A agressividade que permeou a última campanha eleitoral se alastrou de tal modo pela sociedade brasileira que ainda hoje se nota a sua presença nas discussões mais banais. Parece que exteriorizar o ódio está se tornando um comportamento natural e corriqueiro. Agridem-se os adversários como se eles fossem inimigos a serem abatidos a qualquer preço. Essa intolerância é uma velha conhecida desde os tempos sombrios da ditadura. Estou convencido de que toda espécie de radicalismo ideológico obscurece a compreensão da realidade.
No âmbito das discussões políticas, o Rio de Janeiro voltou a ser a bola da vez. Diante do recrudescimento da violência urbana os debates se voltaram para o papel desempenhado pelas Unidades de Polícia Pacificadora. A permanência do secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, no próximo governo pressupõe ajustes e avanços para corrigir rumos e ampliar os resultados positivos alcançados ao longo dos últimos seis anos. Merece toda a atenção a sua afirmação de que a polícia, por si só, não pode assegurar, no longo prazo, a ordem institucional nos territórios pacificados.
De fato, o estado de direito nessas comunidades só será alcançado quando forem implementados programas sociais, educacionais, culturais e de saúde pública com qualidade. Estas iniciativas deverão ser acompanhadas, obrigatoriamente, da reestruturação da polícia militar e da transformação completa do nosso sistema carcerário. Caso contrário, estaremos enxugando gelo enquanto a marginalidade continuará fazendo a festa pelas ruas desta cidade da beleza e de caos.
Mas quando se aborda a questão da urbanização de favelas surgem, de todos os lados, ranços ideológicos das mais diferentes naturezas. Infelizmente, as favelas ainda são olhadas com desprezo e preconceito. Recentemente, tem sido divulgado que a urbanização de favelas implica necessariamente a abertura de ruas com dimensões semelhantes às que existem na cidade. Trata-se de um equívoco a ser corrigido, principalmente quando essas vias se localizam em morros de solo frágil e com acentuada declividade. Essa história de abrir ruas largas em nome da necessidade de circulação de caminhões de lixo, de carros do corpo de bombeiros e de viaturas da polícia é uma visão reducionista do problema e que despreza, de antemão, a possibilidade de serem formuladas soluções criativas e sustentáveis para responder satisfatoriamente a tais necessidades. Basta um olhar atento para as velhas cidades medievais para perceber o leque de soluções empregadas para a mobilidade da população nas condições mais adversas.
É preciso ficar bem claro que os projetos de urbanismo em favelas exigem conhecimentos especializados das condições locais e uma apropriação minuciosa dos valores culturais e sociais existentes em cada comunidade. Não há como generalizar processos de intervenção urbana em favelas desconsiderando esses condicionantes e o aproveitamento da mão de obra local.
A aplicação da Lei Federal de 2008 que assegurou às famílias de baixa renda a assistência técnica pública e gratuita para o projeto e para o acompanhamento das obras de reforma e construção de habitações de interesse social permanece em compasso de espera, enquanto são construídas as indefectíveis casinhas populares em série e os conjuntos habitacionais financiados pelo programa “Minha Casa Minha Vida”. Tudo ao gosto das grandes empreiteiras e dos governantes mais interessados em divulgar números do que projetos de boa qualidade. E assim se estabelece um círculo vicioso no qual as novas construções, com o passar do tempo, acabarão se transformando em favelas semelhantes a aquelas que queríamos urbanizar.
nota
NE
Publicação original: JANOT, Luiz Fernando. Hora de cobrar. O Globo, Rio de Janeiro, 22 nov. 2014.
sobre o autor
Luiz Fernando Janot, arquiteto urbanista, professor da FAU UFRJ.