Achei interessante o texto de Ana Luiza Nobre sobre a Bienal de Arquitetura de Veneza (1). Acompanho a obra e a carreira da autora e nossos percursos chegaram a se cruzar quando ambos participamos, cada qual com seu texto, para o livro organizado pela Claudia Estrela Porto sobre o Lelé (Olhares, visões sobre a obra de João Filgueiras Lima, Ed. UnB, 2010) e, também, para o livro organizado por Kykah Bernardes e Lauro Cavalcanti sobre Sergio Bernardes (Artviva Editora, 2010).
É normal que não tenhamos a mesma opinião sobre vários temas e estou certo de que só há debate interessante se houver visões diferentes. Alguns dos comentários de Ana Luiza são críticas a escolhas que fiz conscientemente como curador do Pavilhão do Brasil na busca de uma narrativa que achei interessante diante do tema proposto por Koolhaas (“Absorvendo a modernidade: 1914-2014”).
Os curadores dos pavilhões nacionais, ao escolher suas prioridades, sabem que qualquer outro crítico abordaria de maneira bem diferente o tema. Uma exposição pode provocar curiosidade ou debate, pode surpreender, divulgar, informar... Mas não conseguirá fazer tudo isso junto, pois, como Ana Luiza bem sabe, no caso da Bienal de Veneza, a média de permanência dos visitantes nos pavilhões é curta e a quantidade de pavilhões e exposições visitadas é enorme.
Tinha a opção de fazer um pavilhão mais “conceitual”, mas tenho plena consciência de que, dado o limitado conhecimento do público internacional sobre o Brasil, só pessoas muito informadas sobre nossa arquitetura entenderiam, as demais, provavelmente, sairiam com uma visão reduzidíssima da nossa extraordinária contribuição no período entre 1914 e 2014. Minha idéia era de, em um mar de informações que é uma bienal com duas mega exposições e mais de 60 representações nacionais, contribuir para que a arquitetura de qualidade seja mais conhecida. Não há debate sem conhecimento. As informações a partir da seleção crítica de obras, fotos, textos etc. poderiam provocar curiosidade e conhecimento. Não queria que se dissesse “vá ao pavilhão do Brasil porque está brilhante”, e sim “vá ao pavilhão do Brasil porque a arquitetura brasileira é brilhante”.
Adorei o pavilhão do Japão e o da França, mas funcionam porque pelo menos 70% dos visitantes têm amplo conhecimento da relevância internacional da arquitetura desses países. No caso do Brasil, no entanto, há idéias preconcebidas sobre nosso país e enorme – repito, enorme – relutância em atribuir a relevância e influência da nossa arquitetura para o século XX, que você e eu concordamos, mereceria. Você mesma comenta o quanto o Brasil está ausente da exposição geral (Fundamentals). Não me surpreende, uma vez que é só folhear os livros de arquitetura do século XX que estamos incrivelmente sub-representados.
Os pavilhões do Chile e da Coréia são ambos muito bons, mas acabam reforçando a percepção de que esses países entre 1914 e 2014 se limitam cada um a uma questão central já conhecidas do grande público: Allende, no Chile, e a divisão entre Coréias do Norte e do Sul. Ambos fenômenos afetaram a arquitetura mas não são arquitetura.
O Brasil, na minha opinião, não devia seguir esse caminho pois teve papel infinitamente maior na arquitetura moderna. Não precisava desviar do tema de Koolhaas. A concentração sobre duas ou três questões centrais era tentadora, mas achei que era desperdiçar uma oportunidade de lembrar da nossa real influência e do quanto estivemos integrados à corrente dominante (mainstream) da evolução da arquitetura mundial em período fundamental de sua evolução. Minha primeira decisão, portanto, foi de não ser “conceitual” e sim de ser mais informativo e cheio de provocações para quem quisesse ler os textos e observar com mais detalhe o que era apresentado. Essa primeira decisão poderia tornar o Pavilhão – e sabia disso – quase redundante para quem, como Ana Luiza Nobre, conhece profundamente o que está sendo apresentado, se não tivesse uma narrativa muito clara do quanto passamos de periféricos a centrais no debate internacional a partir dos anos 1930 e de como setores da crítica internacional decidiram combater a relevância da nossa arquitetura a partir de 1954.
Diante de tantas dimensões que podiam ser apresentadas, procurei:
– respeitar o tema escolhido por Rem Koolhaas, “Absorvendo a modernidade: 1914-2014”, pois o tema nos favorece e, como digo no texto introdutório, o Brasil é um dos países que absorveu os princípios da arquitetura moderna da maneira mais interessante, e pode-se dizer, inclusive, que a arquitetura moderna contribuiu para o fortalecimento da identidade nacional brasileira; daí o título: Modernidade como Tradição.
– informar, com seleção crítica de obras e textos, sobre a evolução e os debates da nossa absorção da modernidade, tendo em conta que 99% do público não é brasileiro;
– apresentar, sempre que possível, fotos de grande qualidade, revelando as obras da melhor maneira possível;
– mostrar que há muitos projetos e muitos arquitetos de qualidade para acentuar que não é um país com alguns poucos talentos e sem continuidade, como tanto se diz nas publicações internacionais;
– criar um percurso em corredor que impediria o público de apenas atravessar sem atenção o Pavilhão, e sair sem nenhuma informação e apenas uma “sensação” do pavilhão;
– permitir que houvesse várias leituras da exposição: a) uma rápida, com a constatação da quantidade e da qualidade da nossa produção, b) outra com novas informações e focos específicos, como a Casa Fontes do Lúcio Costa (com uma assonometria e reconstituição das plantas desse projeto essencial e subvalorizado), e as superquadras de Brasília (inclusive com a criação das plantas Nolli que, acredito, ajudam a mostrar o quão brilhantes são as superquadras);
– textos adicionais para cada painel acessíveis por qualquer celular, em três línguas – português, inglês e italiano – por código QR.
– uma seleção de trechos de textos importantes sobre a arquitetura brasileira por diversos autores, brasileiros e estrangeiros.
Não podia fazer a exposição dirigida a acadêmicos ou arquitetos brasileiros: não é o objetivo de um pavilhão em Veneza. A exposição, ao meu ver, devia favorecer prioritariamente o seu possível impacto sobre o público estrangeiro interessado em arquitetura, boa parte do qual não tem a mínima idéia da importância da arquitetura brasileira. Além do mais, como você comenta, na exposição de Koolhaas o Brasil é relegado a terceiro plano, o que levou um dos visitantes a me perguntar se sabia que estaríamos tão mal representados na mostra geral, e de que se havia sido por isso que me havia levado a ter tantos projetos que provavam a riqueza e variedade de obras de qualidade brasileiras. Não sabia, mas era previsível para quem acompanha as publicações internacionais de maior impacto. Ouvi de vários visitantes que estavam impressionados – alguns envergonhados – por não saber que a arquitetura do Brasil pudesse ser tão rica.
O design da exposição sempre poderia ser mais original e inovador, é claro, mas acho também que a nossa arquitetura bem fotografada (Cristiano Mascaro, Nelson Kon, Leonardo Finotti e outros talentosos fotógrafos brasileiros) não precisava de artifícios.
Quanto a alguns comentários específicos de Ana Luiza Nobre, entendo que se possa achar que havia muita coisa, em ordem e por categorias com as quais ela não concorde. Quanto a dividir por tipos de construções, gosto muito de Aldo Rossi, mas temo que seus brilhantes escritos – tão influentes dos anos 1960 a 1980 – não conseguiram abolir a classificação por tipo de construção. Aliás quase todos os arquitetos (inclusive Koolhaas) em seus websites classificam suas obras por tipos.
Apresentei um mapa Nolli de Brasília pois considerei que usar essa técnica de representação revelava qualidade adicional das superquadras e acho que cabia, sim, um lembrete sobre sua origem, apesar de ser um ícone para a literatura arquitetônica e urbanística. Quanto a fazer isso na Itália, a exposição é na Itália mas não é para italianos apenas: Veneza recebe 365 turistas por habitante, a maioria estrangeiros, sobretudo nos meses da Bienal...
Discordar de minhas prioridades e do aspecto geral da exposição, é perfeitamente compreensível. A crítica arquitetônica dá espaço para amplas diferenças e adoro ser convencido por outro de que estava vendo algo por um ângulo limitado ou incompleto. Posso ter pecado por minhas opções, mas não por “desconsiderar o enorme esforço crítico e historiográfico que tem sido feito no país nas últimas décadas” ou “imaturidade crítica” ou falta de pesquisa. Não creio que caiba na crítica arquitetônica manifestação de desprezo quando se procurou honestamente contribuir para a divulgação da qualidade da nossa arquitetura e acentuar o quanto a melhor produção brasileira merece ter uma presença infinitamente maior na história da arquitetura mundial.
notas
NE – Ver texto curatorial da exposição e a entrevista do curador para o portal Vitruvius:
LAGO, André Correa do. Brasil, 1914-2014: modernidade como tradição. Pavilhão do Brasil na Bienal de Arquitetura de Veneza 2014. Arquitextos, São Paulo, ano 15, n. 175.04, Vitruvius, dez. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.175/5380>.
RETTO JUNIOR, Adalberto da Silva. Entrevista com André Corrêa do Lago. Curador do Pavilhão Brasileiro comenta a XIV Bienal de Arquitetura de Veneza. Entrevista, São Paulo, ano 15, n. 058.02, Vitruvius, jun. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/15.058/5210>.
1
NOBRE, Ana Luiza. Brasil: modernidade sem crítica na Bienal de Veneza. Arquitextos, São Paulo, ano 15, n. 173.00, Vitruvius, out. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.173/5308>.
sobre o autor
André Correa do Lago, curador da exposição brasileira da 14ª Bienal de Arquitetura de Veneza, é diplomata e economista formado pela UFRJ, André Corrêa do Lago é também crítico de arquitetura e membro do Comitê de Arquitetura e Design do MoMA (Museum of Modern Art, em Nova Iorque). Autor de Residências do Rio de Janeiro; Estocolmo, Rio, Joanesburgo: o Brasil e as conferências das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Ainda Moderno? – Arquitetura Brasileira Contemporânea, escrito em conjunto com Lauro Cavalcanti, atualmente trabalha em Bruxelas, Bélgica, na Missão do Brasil junto às Comunidades Europeias.