A ausência de planejamento urbano em muitas cidades brasileiras entregou a construção das mesmas à iniciativa privada, situação que transformou o território em mercadoria, os cidadãos em consumidores, e os gestores públicos em mediadores entre o capital e o consumo.
Os resultados deste processo conferem um aumento das tensões sociais por conta da constituição de uma sociedade competitiva e pouco solidária, assim como uma perigosa inversão de valores, onde o “ter” é muito mais importante que o “ser” e que o “saber”.
As tipologias arquitetônicas e urbanísticas deste modelo são o edifício fechado de uso residencial exclusivo e excludente, o edifício corporativo e o shopping center. Esta última, por suas implicâncias sociais, políticas, ideológicas e culturais, representa o símbolo da cidade neoliberal, entregue às leis do mercado. Os grandes shoppings viraram, no contexto emergente e periférico, as novas catedrais das cidades: espaços de encontro, de lazer e, obviamente, de consumo, celebrados festivamente por alguns políticos e gestores urbanos que congratulam e agradecem o “esforço e sacrifício” dos empreendedores, que oferecem novos “espaços e serviços” à população.
Esta tipologia, derivada do modelo de sociedade de consumo americano, domina as iniciativas comerciais no contexto brasileiro, apesar da decadência no país de origem. Os valores difundidos e vendidos pela mídia interesseira (conforto, segurança, lazer e concentração) acabam com o espaço urbano como lugar de encontro e usufruto social, destroem e degradam o comércio de rua, desmerecem os mercados populares e promovem uma perigosa discriminação entre quem pode e quem não pode acessar os templos do consumo.
Existem “antídotos” contra a proliferação de shoppings centers, como a construção de parques e bibliotecas. Estas iniciativas, de eficiência social e urbanística comprovada em cidades como Bogotá e Medellín, estão sendo replicadas em São Paulo, em intervenções como o Parque da Juventude e a Biblioteca de São Paulo (no local do antigo presídio Carandirú), e a Biblioteca Villa-Lobos.
Bibliotecas associadas a parques oferecem lazer, educação e desenvolvimento social e urbano, transformando-se em núcleos de referência, especialmente se localizadas nas comunidades mais carentes, como acontece em Medellín, cidade que tem despertado a atenção mundial, precisamente por este tipo de intervenções.
A biblioteca e o shopping representam duas ideologias e dois modelos divergentes de concepção urbana. Enquanto a biblioteca surge da iniciativa pública (normalmente através de concurso de projetos) como centro de referência do desenvolvimento social e urbano em comunidades carentes, o shopping surge da iniciativa privada como projeto dirigido exclusivamente para o interesse empresarial, em áreas de consumo consolidadas ou em vias de consolidação. Enquanto a biblioteca propõe o desenvolvimento da educação e da cultura, ao shopping só interessa o aspecto comercial. Enquanto a biblioteca apoia a integração social, o shopping segrega ricos e pobres. Enquanto a biblioteca promove o acesso livre, o shopping só pode ser usufruído mediante a compra dos bens e serviços oferecidos. Enquanto a biblioteca procura consolidar lugares urbanos, o shopping se apresenta como ilha fechada, sem integração com a cidade. Enquanto a biblioteca estimula os valores sublimes e transcendentes da educação e da cultura, o shopping insiste na futilidade do transitório. Enquanto a biblioteca defende o interesse público através do desenvolvimento social, o shopping apenas representa o interesse e o lucro privado.
Na cidade democrática, a biblioteca e o shopping merecem a oportunidade de se estabelecer e oferecer seus serviços aos cidadãos. As pessoas, em função das próprias necessidades, interesses ou possibilidades, decidirão livremente a utilização de um ou outro. O que resulta inadmissível é privilegiar um em detrimento do outro. O predomínio da cultura do shopping resulta evidente nas cidades do Brasil, assim como uma significativa ausência de iniciativas orientadas à construção de bibliotecas, parques e outros equipamentos destinados a promover o desenvolvimento social e cultural.
Se o conhecimento libera, a sociedade brasileira ainda não parece disposta a soltar as amarras da dependência, que a condena ao subdesenvolvimento. O problema é estritamente político e depende da coragem e ideologia dos governantes. Resulta contraditório que governos ditos “socialistas” ou de origem popular ignorem esta circunstância e continuem em espantosa passividade, assistindo à proliferação de shoppings centers, enquanto bibliotecas e outros equipamentos culturais brilham pela ausência nos programas e intenções de governo.
sobre o autor
Roberto Ghione, arquiteto, é formado pela Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Pós-graduado em Preservação do Patrimônio, Crítica Arquitetônica e Planejamento Urbano pela Universidad Católica de Córdoba. Titular do escritório Vera Pires Roberto Ghione Arquitetos Associados, Recife, PE.