Perambular pelas ruas dos velhos bairros da capital paulista pode ser bem instrutivo. Porém, diferentemente dos “flaneurs”, no estilo de Baudelaire, não se trata simplesmente de constatar tipos urbanos que cruzam caminhos individuais através da multidão, pelo contrário, é o susto de uma cidade que sofre de tumores graves. Por isso, não é uma arte de flanar, mas o risco do caminhar em regiões de não-direito, áreas inteiras na malha urbana que demonstram claramente sofrer de uma desapropriação do poder citadino.
Quem quiser sentir o risco, pode caminhar, mesmo à luz do dia, por ruas do Pari próximas do rio Tamanduateí, por exemplo. Galpões industriais abandonados ou ocupados por uma população largada à própria incúria, pois não há poder municipal, estadual ou federal que se ocupe delas. É uma população que sofre de um poder negativo, sendo grande parte feita de enjeitados pelo sistema econômico. Consequentemente, as áreas que ocupam também são enjeitadas. Empresas, cidadãos, poder público se afastam destas áreas como locais enfermos, como se fugia, até o século dezenove do ar miasmático ao qual imputavam ser manancial de doenças.
Regiões de miasmas que são abandonadas, enquanto outras da cidade caminham rapidamente para esse tipo de doença urbana. É como se áreas inteiras gangrenassem e a única solução possível seria a amputação. Pior, amputar-se-ia simplesmente excessos: excessos da urbanização, excessos populacionais. Áreas que não teriam mais nenhuma serventia a não ser como potenciais parques ou ocupações pontuais de instituições de poder mas que somente criam estranhos quistos em tumores urbanos como a Estação Júlio Prestes, mas que não cria nova ocupação ou “revitalização” (palavra que indica o grau de decrepitude de uma área).
Não se trata de locais ou de populações que não foram integrados ao sistema econômico, pelo contrário, são excessos do sistema. Foram explorados até a última força e agora se tornaram descartáveis. Não fazem parte de estatísticas e ficam nas franjas, nas margens da cidade, da cidadania.
Estranhamente são áreas que possuem toda a infraestrutura urbana e receberam, no passado, pesados investimentos para sanar problemas da ocupação original como obras contra enchentes, por exemplo. Depois de livres do problema, degradaram-se.
Perguntar por que chegaram a esta situação é obter uma resposta ligada à própria forma de ocupação das cidades brasileiras após a Segunda Guerra Mundial. O modelo de urbanização deixa de ser europeu e passa a ser americano e, no pior sentido. É uma mudança significativa. A metropolização de São Paulo levou à criação de áreas específicas e a separação entre as atividades. O maior exemplo deste tipo de urbanização é Brasília. Dividida em setores, as áreas comerciais, sem vida após o expediente, se tornam um lugar de rejeição.
São Paulo antiga era mista (pode-se discutir o modelo, mas ele era um modelo). Comércio, residência e indústria conviviam (evidentemente que não pacificamente), mas davam outro caráter à ocupação. Os bairros comportavam, por exemplo, residências populares e de classe média (é claro que a alta burguesia sempre criou seus quistos, mesmo na Europa), mas isso os tornava locais para serem vividos e não somente resididos.
Hoje, vemos a transformação de bairros em guetos por categorias sociais e nacionalidades, algo que se evitou ao longo do século 20. O Itaim Bibi, por exemplo, lembra um filme já antigo mas sintomático: “Blade Runner, o caçador de androides”. No nível do solo, uma população compósita, prestando serviços para os moradores dos andares superiores de condomínios com nomes franceses (os edifícios comerciais geralmente recebem nomes ingleses emulando, talvez, uma sensação de negócios ou lucro), ou de praias idílicas, no entanto, os prestadores de serviços não habitam ali. São obrigados a se deslocarem longamente pela cidade ou, no limite, procurarem moradia em áreas candidatas à gangrena urbana entorno do antigo centro.
Enquanto isso, o Pari, pelo menos parte dele, torna-se um bairro de bolivianos. Podemos, de longe, achar exótico bairros formados por nacionalidades, mas isto não implica integração, pelo contrário. O caso da Liberdade é exemplar no caminho inverso. De sua origem como bairro “japonês” se torna um “bairro oriental”, mais folclórico do que um gueto (a coabitação de etnias é notável), ou ainda o Bom Retiro que de médio-oriente só tem a mistura, onde convivem diferentes nacionalidades e diferentes etnias (cf. Jeffrey Lesser, Negotiating National Identity. Duke University Press, 1999). Já a reocupação de áreas abandonadas pela classe média e parte dos antigos moradores está sendo feita de acordo com categorias sociais ou nacionais.
O problema é que esta reocupação não ocorre devido a alguma revitalização provocada. São áreas enjeitadas que restam para uma população desterritorializada, ocorrendo uma espécie de favelização. A área degradada se degenera mais ainda, apesar de oferecer equipamento urbano de boa qualidade (metrô, ônibus, escolas, hospitais). São áreas consolidadas que entram em degenerescência. Se houver alguma dúvida, basta “flanar” pela região da antiga rodoviária.
O modelo adotado no pós-guerra exige um esforço constante de capitais para evitar a degradação. Pode funcionar em cidades ricas, como Nova York ou São Francisco, nos Estados Unidos, mas não há capital suficiente para fazer a “reciclagem” constante tornando as áreas antigas mais requisitadas pela média e alta burguesia. Cidades como Detroit, Atlanta, Tampa, ou mais próxima, Buenos Aires (Boca) e Santiago do Chile (Barrio Brasil) nos mostram que não há interesse do capital em um urbanismo orgânico, pois sofrem o mesmo processo de degenerescência em determinadas áreas. Não há dinheiro suficiente para manter a cidade em pleno funcionamento, mesmo porque, o capital é migratório, ou melhor, parasitário.
A ocupação das cidades lembra uma praga de gafanhoto, como foi o platantion no nosso período colonial. Esgotados os recursos de uma nova frente é aberta outra. São Paulo sofre do mesmo problema. O centro antigo, a Paulista, a Berrini e agora a Vila Funchal. Assim que der sinais de esgotamento, novo local será encontrado para que ocorra uma nova sobre exploração urbana. Áreas inteiras, voltadas para a pura especulação, serão ocupadas parasitariamente.
Investimentos contínuos de capitais podem evitar que as áreas mais antigas degenerem. Isso aconteceu com Nova York nos anos 1980. Grande região em Manhattan estava degradada e recebeu altos investimentos públicos e privados. A especulação ganhou mais uma vez, tornando os preços dos imóveis altíssimos, provocando a migração da população “indesejada” e atraindo novos investimentos.
Porém, não há capitais suficientes para manter a máquina urbana em pleno funcionamento, por isso áreas inteiras se degeneram e se tornam zonas de não-direito, apesar de consolidadas em termos urbanos. As áreas mais antigas sofrem a degradação e poderão chegar a ponto de terra arrasada, como no entorno da antiga rodoviária.
Talvez, parte da solução seja a retomada por parte do poder público dessas áreas, investindo numa ocupação por zonas mistas com grandes áreas verdes, preservando alguns imóveis de interesse histórico e derrubando a maioria, mesmo porque, só utopicamente é possível tornar imóveis antigos em centro culturais. No entanto, não é desejável que capitais usem antigas áreas como zonas de plantation urbano, pois a especulação não leva a uma ocupação minimamente humana e democrática.
Se o poder público patrocinar a reocupação de áreas degradadas, poderíamos ter uma reurbanização de parte do centro antigo, Luz, Bom Retiro, Pari, Mercado Central e Brás. O poder público poderia se ocupar de criar áreas de interesse permanente voltadas para o habitat e não simplesmente se morar.
sobre o autor
André Luiz Joanilho é professor assistente de História Cultural – UFPR.