A cidade não é uma abstração, ela é produto de diferentes sociedades estratificadas em seu território ao longo da história. Com o crescimento estimado da população mundial de 7,2 bilhões para 10 bilhões até 2050 – um aumento da ordem de 40% – acende-se um sinal de alerta para o grave problema da exclusão social e, consequentemente, para os modelos de planejamento das grandes metrópoles. Caso prevaleça o atual descaso em relação às populações de baixa renda, não resta dúvida de que os contrastes sociais irão se agravar progressivamente.
O estigma do medo que permeia a vida nas cidades brasileiras favoreceu a criação de condomínios residenciais fechados e de áreas restritas para o lazer e convívio social. Enquanto estes espaços são mantidos por meio de altas taxas condominiais, os espaços públicos são relegados à míngua pela absoluta falta de recursos para a sua manutenção. Não vemos no Brasil uma política urbana capaz de enfrentar os complexos desafios da cidade contemporânea.
Infelizmente, o velho maniqueísmo ideológico ressurgiu das cinzas para comprometer, cada vez mais, a gestão democrática das cidades. A intransigência que prevalece nos embates políticos impede que novas metodologias sejam utilizadas nos processos de planejamento urbano. Atualmente, assiste-se um difícil dilema envolvendo aqueles que defendem o intervencionismo abrangente do Estado e os que só enxergam qualidade nas ações da iniciativa privada. Na verdade, são faces de uma mesma moeda. Ambos buscam vantagens imediatas e poucos se importam com as consequências nocivas do seu sectarismo político e ideológico. No final das contas quem irá pagar o alto preço desse radicalismo inconsequente é a própria cidade e, obviamente, os seus habitantes.
Alonso Salazar, ex-prefeito de Medellín, alerta para o fato de que “quando se tem um poder absoluto e a capacidade de decidir sobre tantas coisas e tantas vidas, simultaneamente, a relação com a realidade muitas vezes se perde. Os poderosos criam o seu próprio mundo, uma espécie de realidade virtual, do qual não têm como voltar atrás”. Tal comportamento se evidencia na conduta dos dirigentes e empresários corruptos que se envolveram nos escândalos que estão sendo divulgados pela mídia.
Não resta dúvida da necessidade de se criar um modelo de gestão pública mais ágil, mais flexível, mais transparente e menos burocrático, para fazer frente à velocidade com que ocorrem as transformações culturais, econômicas e sociais no mundo contemporâneo. Neste contexto, o atual determinismo financeiro não poderá continuar prevalecendo sobre os valores que atuam na conformação de uma cidade mais justa, equânime e harmoniosa.
Há que se recorrer aos novos recursos tecnológicos para identificar e avaliar as necessidades e anseios da população e, consequentemente, propor diferentes modelos espaciais para a ocupação territorial das cidades brasileiras. Não se pode mais aceitar que o ordenamento espacial seja feito, exclusivamente, por meio de índices de aproveitamento do solo, de densidades ocupacionais abstratas e gabaritos verticais aleatórios. É indispensável que sejam incorporados os projetos urbanísticos e o desenho urbano no planejamento das cidades.
Para que se alcance a eficácia desejada na elaboração e implantação dos Planos Diretores há que se aperfeiçoar e atualizar permanentemente os instrumentos de planejamento e, sobretudo, deixar de lado a ortodoxia ideológica que tende a comprometer a sua aplicação. Caso contrário, os planos se tornarão ultrapassados antes mesmo de serem aplicados. Fixar diretrizes de longo prazo, com metas específicas de médio e curto prazo, constituem elementos indispensáveis para se alcançar um desenvolvimento urbano resiliente e sustentável.
Sobre a polêmica envolvendo o Uber e os taxis do Rio, o que de fato me preocupa é o aumento progressivo desse número de veículos – sem regulamentação – circulando pelas ruas para atender unicamente aos que podem pagar por este tipo exclusivo de serviço. Imagine se a população de baixa renda reivindicar o mesmo direito em relação à volta das vans piratas que utilizavam como alternativa ao precário sistema de transporte coletivo. Em ambos os casos, a falta de regra é um fator prejudicial aos interesses da cidade.
nota
NE
Publicação original: JANOT, Luiz Fernando. Cidades ameaçadas. O Globo, Rio de Janeiro, 01 ago. 2015.
sobre o autor
Luiz Fernando Janot, arquiteto urbanista, professor da FAU UFRJ.
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Habitação de interesse social em área nobre da Zona Sul, Rio de Janeiro, projeto de Affonso Reidy
Foto Abilio Guerra