A primeira vez que vi Marco do Valle foi um momento inesquecível. Estávamos ambos na mesma sala e ele era o centro das atenções. Sem camisa e em estado de quase fúria divina, rasgava papéis com as mãos, juntando os bocados de forma inusitada. Quase todos estavam atônitos ou intimidados com sua performance; parecia um louco, segundo alguns. Era um pouco mais velho do que todos nós, jovens praticamente imberbes disputando vagas para o curso de arquitetura e urbanismo. Eu o olhei com interesse e admiração. Decidi ser seu amigo antes mesmo que ele soubesse de minha existência.
Iniciava-se o ano de 1978. Ambos fomos aprovados na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Campinas e calhou de ficarmos na mesma turma. Nas semanas seguintes, ao nos agruparmos para os trabalhos coletivos de uma disciplina, dei um jeito de ficar na mesma equipe do que ele. Não me lembro mais o nome do curso, mas o titular era o escultor José Resende, auxiliado pelo fotógrafo Antônio Saggese. Na época, já eram artistas conhecidos, mas eu, no alto da minha ignorância, só conseguia perceber o quanto eram inteligentes e articulados.
O trabalho proposto era muito interessante: nos apropriarmos, com total liberdade, de um terreno ainda desocupado dentro do campus universitário, encravado no meio de uma fazenda em área rural de Campinas. Pedregoso, com evidentes dificuldades em ser aplainado – o que justificava seu abandono, apesar da situação privilegiada –, o terreno estava forrado por mata baixa que crescia nos bocados de terra que sobravam entre as rochas. Uma delas chamou a atenção de “Do Valle”: ela tinha um “olho”, um furo esférico perfeito, provavelmente para receber uma banana de dinamite.
A pedra furada virou duplamente o centro do trabalho: geograficamente, de onde todas as medidas eram tiradas; e conceitualmente, pois de seu orifício produzido pelo esforço humano se irradiariam cabos de aço como uma cabeleira serpentina. Foi meu primeiro contato com a materialidade da arte, da relação entre a virtualidade da matéria inerte e a potência da ideia e do processamento artificial. Marcão se apaixonou tanto pela pedra que a levou para casa. Creio que a guarda até hoje.
Não sei quando conheci Guto Lacaz, como também não me recordo quando conversamos pela primeira vez. Ele fazia parte do time de artistas convidados para o Arte/cidade 2, que era formada por uma constelação radiosa, com nomes como Waltercio Caldas, Rubens Mano, Arhtur Lescher, Arthur Matuck, Carlos Reichenbach, Iole de Freitas, Regina Silveira, Tadeu Jungle, Walter Silveira e vários outros.
Algumas revistas que eu editei na época chamaram a atenção de Nelson Brissac, o curador do evento, que me convidou para participar do grupo, uma decisão arriscada, pois eu era um completo desconhecido. Inseguro diante de desafio tão grande, convidei meu amigo mais experiente, em quem confiava plenamente para assuntos artísticos. Brissac aceitou na hora minha sugestão e o convite foi estendido a Marco do Valle, formando-se assim o único coletivo desta edição do Arte/cidade.
O processo era a grande questão para o curador. Reunir tantos egos em uma roda de discussão constante, onde as ideias eram trocadas e os projetos iam se montando, se desenvolvendo, se desmontando e se remontando ao sabor de discussões acaloradas, não era um trabalho para um homem qualquer. Brissac era talhado para o papel que se atribuiu. Com energia hercúlea, liderou todo o processo, onde espaços e recursos eram disputados ou partilhados conforme a conveniências de arranjos efêmeros e acordos provisórios.
Foi nesse redemoinho que Guto Lacaz surgiu na minha vida. Sua proposta era incrível: construir três periscópios gigantes na fachada do Edifício Alexandre Mackenzie, na época a abandonada sede de extinta empresa de energia elétrica, a Light. A ideia era surpreendente: as pessoas que estivessem passando na calçada, indo ou vindo em direção ao Viaduto do Chá, poderiam ver as obras dos outros artistas, expostas em pavimento superior, através das três engenhocas que funcionariam aos moldes de um periscópio de submarino, com cada uma contendo dois gigantes espelhos inclinados em 45 graus.
Lacaz trouxe primeiro uns esquemas, depois desenhos técnicos, apresentava tudo com rigor e precisão que combinava com seu look de cientista amalucado. Mas não convencia o monte de sabichões que o cercavam. Eu, por exemplo, tinha certeza que não ia dar certo. Ora, era um edifício com sete pisos, cerca de trinta metros de altura graças aos pés direitos avantajados. “Não tem luz suficiente para se ver, vai ficar tudo na penumbra”, pensei alto ou falei baixinho... Os altos custos envolvidos com os tapumes e principalmente espelhos de grande precisão implicou na redução ao mínimo: um único periscópio seria construído, mas para minha surpresa e dos demais, ficou perfeito e se transformou em uma das principais obras do Arte/cidade 2, seguramente a minha preferida.
Eu e o Marco do Valle não fizemos feio. Na época, ele já tinha realizado várias obras em vídeo-arte e eu estava muito envolvido com tecnologia informatizada, que estava no início de sua trajetória no Brasil. Nossas discussões se encaminharam para este campo um tanto nebuloso onde vídeo e informática dialogavam de forma muito restrita, e é provável que o caminho se mostrasse rapidamente estéril não fosse um fato fortuito. Sonhei em uma noite com um grande plotter a desenhar sobre a superfície aquática de uma piscina. Foi desta imagem onírica improvável, impossível de se viabilizar no mundo real, que fomos desenvolvendo a instalação, que se materializou em um robô desenhando em um tapete de areia (1).
A condição efêmera e provisória da condição humana, que processa sem parar o território natural, para logo ver seu esforço sendo solapado e retomado pelas forças telúricas infinitamente superiores, passou a ser a nossa questão. Para termos um plano histórico mais próximo e não ficarmos apenas no âmbito mitológico ou metafísico, estabelecemos uma comparação entre as cidades de São Paulo e Palmanova, praticamente da mesma idade, mas com desenvolvimentos históricos distintos. A primeira, uma das maiores megalópoles do mundo, esgarçada, dispersa, sem fim. A segunda, uma cidade fortificada planejada aos moldes renascentistas, aspirando – com sua forma estelar de nove pontas – a perfeição de uma mandala. Seus arruamentos estruturadores seriam desenhados e apagados ininterruptamente pelo robô.
Concebemos uma segunda instalação, uma grande tela suspensa no ar onde se projetou imagens realizadas em computação gráfica, que se alternavam aleatoriamente. Em São Paulo, edifícios e monumentos de grande importância simbólica para a população – o Masp, o Copan, os Edifícios Banespa e Itália, a estátua do Borba Gato, o Viaduto Santa Efigência, o Obelisco e o Monumento às Bandeiras no Parque do Ibirapuera etc. – se dissolviam. Em Palmanova, abruptamente aparecia uma passarela que transpassava a cidade em cota superior à média do casario e se transformava em escada-mirante em uma das pontas (2). Os signos de identidade da metrópole convulsionada eram suprimidos, enquanto na cidadezinha excessivamente homogênea surgia um marco referencial que quebrava as simetrias redutoras, uma proposta de confronto de avessos, realizada com efeitos visuais canhestros, dentro do que era possível a partir dos softwares daquela época (3).
O consórcio das duas instalações recebeu o batismo um tanto enigmático de Cidade e seu duplo. Citar o pequeno texto que consta do catálogo da época é uma boa forma de explicar o sentido geral da obra, a partir de três referências: o mito de Sísifo, o adágio de Ovídio em Metamorfoses, e o texto magnífico de Sigmund Freud sobre o Estranho.
“Tempus edax rerum... O tempo que a tudo consome, corroendo, corrompendo, triturando. Veritas filia temporis... E o tempo que se projeta no território, soerguendo a terra, difundindo luminosidades e sombras. Entre eles, o homem empurrando a pedra colina acima, que rolará novamente, indiferente ao suor, solícita aos apelos da gravidade. Civilizações. Depois, as ruínas. Sortes distintas para homens sempre iguais ou mesma fortuna para homens muito diferentes? O estranho muitas vezes é o familiar escuso. ‘Heimlich (familiar) – diz Freud – é uma voz cuja acepção evolui até a ambivalência, até que termina por coincidir com a de sua antítese, Unheimlich (estranho). Unheimlich é uma espécie de Heimlich’.” (4)
Em 1994, a convite de Nelson Brissac, aconteceu o primeiro encontro entre Abilio Guerra, Marco do Valle e Guto Lacaz durante os preparativos e realização do Arte/cidade 2 – a cidade e seus fluxos. No dia 15 de agosto de 2015, pouco mais de vinte anos depois, recebo os dois para um café na abertura da programação do projeto Marieta. Vamos ter alguns assuntos em comum para recordar e muitas informações novas a atualizar (5).
notas
1
Os enormes custos envolvidos e a operação logística complicadíssima para transportar um robô de indústria automobilística pesando 10 toneladas até o sétimo pavimento demandou uma incrível determinação por parte de pessoas e instituições envolvidas. O robô, emprestado pela empresa DFV Telecomunicações e Informática S/A, só foi capaz de desenhar e apagar na areia graças à programação desenvolvida em empresa de alta tecnologia de Campinas e ao empenho dos engenheiros responsáveis. O sistema de segurança para desligar o robô em caso de invasão do seu campo de ação foi desenvolvido pelo engenheiro Luiz Pirola.
2
O projeto da passarela-ponte foi desenvolvido por Abilio Guerra e Marco do Valle em Veneza, com a valiosa colaboração do arquiteto Renato Anelli, que residia na cidade com bolsa-sanduíche de sua pesquisa de doutorado, dentro do programa de pós do Istituto Universitario di Architettura di Venezia – IUAV.
3
Durante as discussões coletivas, a presença de outros artistas com apostas tecnológicas – casos específicos de José Wagner Garcia, Walter Silveira e Wilson Sukorski – e a particular contribuição de Gisele Beiguelman, do Comitê de Organização, acabou se desdobrando em um CD-Rom com obras desenvolvidas especificamente para este suporte, resultando no primeiro CD-Rom artístico produzido no Brasil.
4
GUERRA, Abilio; VALLE, Marco. Cidade e seu Duplo. In BRISSAC, Nelson (curador). Arte/cidade – a cidade e seus fluxos. São Paulo, Marca d’Água/Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1994.
5
“Café com Guerra”. Guto Lacaz e Marco do Valle batem um papo descontraído e tomam café́ com Abilio Guerra, 15 ago. 2015, a partir das 10h. Filmagem do episodio #0 com direção dos Irmãos Guerra. Programação disponível no link http://www.vitruvius.com.br/jornal/events/read/1460.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.