Thomaz Farkas criou um bordão que repetia sempre em eventos e palestras de fotografia, sentado nas primeiras filas como gostava de fazer. Na primeira oportunidade ele exclamava, para júbilo da plateia, Viva a fotografia! Ao que era seguido por um sonoro coro dos presentes: Vivaaaaaa!
Viva! É mesmo viva e assim permanecerá a sua fotografia através dos tempos. Ao mergulhar em seu acervo no IMS para selecionar as imagens deste livro, tivemos a rara oportunidade de observar como a sua obra se firmou na ambivalência entre o poético e o político.
A partir de seu ingresso no Foto Cine Clube Bandeirante, em 1942, a fotografia de Farkas conheceu a vertigem da busca por uma autonomia da linguagem. Com apuro estético, criou composições que enfatizam as relações geométricas entre os planos e a superposição da sombra sobre os volumes da metrópole, por exemplo. Em um segundo momento, como veremos na seleção a seguir, sua obra ganhou contornos mais humanistas. O enfoque recaiu então sobre pessoas menos afortunadas, excluídas do projeto desenvolvimentista capitaneado por Juscelino Kubitschek e que culminou na construção de Brasília.
Nascido em Budapeste, na Hungria, em 17 de setembro de 1924, o garoto Thomaz mudou-se para São Paulo com a família em 1930, cidade em que seu pai Desidério abrira a primeira loja Fotóptica. A fotografia já era o ramo de atividade dos Farkas antes da emigração. Thomaz começou a fotografar aos oito anos de idade e, como sempre dizia, tornou-se um amador apaixonado pelo resto da vida, posto que nunca fotografou profissionalmente. A partir dos anos 1960, sua prioridade passou a ser a produção e direção de documentários cinematográficos.
Este livro traz uma inédita seleção de seus trabalhos, que flagram a cidade de Brasília em dois momentos: a construção e inauguração, entre 1958 e 1960, e também fotografias realizadas por Farkas 40 anos depois, em 2000.
A iniciativa de fotografar a construção de Brasília nasceu de uma sugestão do arquiteto Jorge Wilheim e do sociólogo Pedro Paulo Poppovic, amigos de Farkas e proponentes do concurso que resultou na edificação de Brasília. Ao contrário de fotógrafos como o francês Marcel Gautherot e o alemão Peter Scheier, contratados para registrar a construção, Thomaz Farkas realizou as fotografias por interesse pessoal, financiando-as também por conta própria.
Já a nova série de fotografias, realizada em 2000, resulta de um convite feito pelo jornal Correio Braziliense, que publicaria um caderno especial comemorativo aos 40 anos da inauguração da capital federal. A ideia dos editores era que Farkas voltasse aos mesmos lugares, após quatro décadas, para fazer imagens comparativas.
Se à época da construção e inauguração de Brasília o interesse de Farkas já estava nitidamente mais direcionado ao Núcleo Bandeirante, aos trabalhadores apelidados de "candangos", às suas moradias improvisadas e muito simples e ao comércio popular, ao invés da monumentalidade da arquitetura de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, o mesmo ocorreu no seu retorno em 2000. Em entrevista ao caderno especial do Correio Braziliense, Farkas diz em tom crítico: "a cidade mudou nas aparências. Mas, para o povo, a vida continua praticamente a mesma". O jornalista TT Catalão analisou desta forma as imagens realizadas pelo fotógrafo, em texto publicado na mesma edição de 20 de abril de 2000:
"Farkas revisitou o mesmo conflito tenso que oprime as pessoas simples, mas não castra o lirismo, o repouso, a sensação de plenitude mesmo na pobreza. Mudaram governos, ditaduras, aparatos repressivos, planos econômicos, moedas, discursos, marketing, embalagens; mas há uma coerência íntegra em Farkas que não o provoca ao monumental ou ao supérfluo do que passa. Ele quer a alma, a medula do modelo, a raiz. Ele não se assusta com movimentos pois sabe que é o eixo fixo, centrado, calmo, generoso que permite a roda girar".
Apesar do olhar crítico, uma das emblemáticas fotografias que ajudaram a formatar a ideia de Brasília como o maior e mais arrojado projeto arquitetônico modernista do mundo, é justamente de Thomaz Farkas (p. xx). Nela, o fotógrafo lança mão de seu repertório e preceitos modernistas para gerar uma imagem com acentuado contraste entre preto e branco, com a eliminação de parte dos tons cinzas e a utilização de um enquadramento clássico, que engloba o prédio do Congresso Nacional, seus arredores e o imenso céu aberto do Planalto Central.
O contraste carregado faz com que a parede do prédio tenha tonalidade semelhante à do céu. A luz branca estourada parece roubar a ilusão de tridimensionalidade com a qual a fotografia costuma representar a paisagem. Em virtude dessa estratégia, nossa percepção visual fica embotada: o monólito de linhas retas que configura o prédio surge como se fosse ainda um desenho na prancheta do arquiteto e não um volume no espaço em seu dia de glória.
Ao retornar em 2000, Farkas parece não se preocupar em repetir essa imagem-ícone do Congresso. No lugar de uma tomada de caráter totalizante, como um cartão postal, opta por fotografar (p. xx e capa) uma canhestra gambiarra, colocada em uma das extremidades do prédio na provável tentativa de evitar invasões de manifestantes. Essa gambiarra torna-se assim uma metáfora potente das mal aparadas relações de força entre um projeto de cidade idealizada e a vida real que a espreita, que reconfigura o espaço urbano a partir das incongruências de um país de grandes desigualdades sociais.
A pesquisadora Juliana de Arruda Sampaio, em seu texto de qualificação para o mestrado intitulado Construção: imagens, discursos e narrativas na Brasília de Thomaz Farkas, apresentado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, cita o teórico Georges Didi-Huberman para falar da “subversão humanista” de autores como Farkas:
"Apoio-me, sobretudo, numa discussão proposta por Georges Didi-Huberman, na qual o autor reivindica a subversão humanista do fotógrafo em redimensionar o enquadramento da câmera, trazendo para dentro deste aqueles que há muito foram colocados repetidamente para fora do campo visual, e consequentemente para fora do campo da representação: os sem-nome, o homem-ordinário, o homem do comum. Segundo o autor, o fotógrafo e o aparelho fotográfico são capazes de colocar em crise o próprio aparelho institucional, apenas jogando com o enquadramento".
Ao jogar ideológica e apaixonadamente com o enquadramento, Farkas pensou a fotografia dentro do cânone da subversão, do não conformismo com os discursos oficiais e negligentes. Porém, assim como na imagem da gambiarra no Congresso, a crítica surge revestida pelo humor e elegância que sempre marcaram a sua trajetória. Diante dos camelôs que se ajeitam como podem entre estruturas de concreto armado, Thomaz Farkas escolhe celebrar a pulsão de vida que revigora o espaço de convívio em vez de destilar discursos inflamados. A fotografia silenciosa e ao mesmo tempo vigorosa é o seu libelo. Fotografia subversiva e elegante. Viva a fotografia!
notas
NE – Texto de apresentação do livro de fotografias CHIODETTO, Eder (Org.). Thomaz Farkas. Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira, volume 4. São Paulo, Ipsis, 2014. Os textos publicados mesma coleção são os seguintes:
CHIODETTO, Eder. Araquém Alcântara. Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira. Drops, São Paulo, ano 15, n. 087.05, Vitruvius, dez. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/15.087/5368>.
CHIODETTO, Eder. Nelson Kon, o fotografo cronista. Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira. Drops, São Paulo, ano 15, n. 087.06, Vitruvius, dez. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/15.087/5369>.
CHIODETTO, Eder. Cristiano Mascaro, fotogenia e latências. Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira. Drops, São Paulo, ano 15, n. 087.07, Vitruvius, dez. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/15.087/5370>.
CHIODETTO, Eder. Thomaz Farkas, subversivo e elegante. Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira. Drops, São Paulo, ano 16, n. 097.02, Vitruvius, out. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/16.097/5730>.
sobre o fotógrafo
Nascido em 1924 em Budapeste, Farkas mudou-se com a família para São Paulo em 1930. Chegando aqui, seu pai que já atuava no ramo de fotografia na Hungria abre a primeira loja Fotóptica. Vivenciando este histórico familiar e o contato direto com a loja, o menino Thomaz começa a fotografar aos oito anos de idade quando ganha de seu pai sua primeira câmera fotográfica. Em 1942 ao ingressar no pioneiro Foto Cine Clube Bandeirante, Thomaz Farkas inicia um processo de busca por uma linguagem independente. Com esmerado apuro estético prioriza a leitura de composições geométricas entre planos, linhas, volumes, ângulos raros e os efeitos da sombra sobre estes elementos. Deste período, uma de suas primeiras fotos, hoje um clássico, é "Autorretrato com gato", obra do acervo do fotógrafo que se encontra sob a guarda do Instituto Moreira Salles em regime de comodato. Posteriormente sua obra ganha outra vertente com contornos mais humanistas: com absoluto prazer Farkas fotografava pessoas, segundo ele, a parte mais importante dentro da fotografia. Com abordagem elegante, afetiva, sem alarde, se aproximava das pessoas e sem mirá-las diretamente, o fotografado surgia em sua fotografia. Em sua segunda passagem por Brasília, declara ao jornal Correio Braziliense: "Gosto de gente, como vivem e o que fazem. A imagem é o que me liga com o mundo, com a realidade. O Brasil ainda vai ser descoberto e isso vai partir daqui de Brasília".
sobre o organizador
Eder Chiodetto é mestre em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Atuou como repórter-fotográfico (1991-1995), editor (1995-2004) e crítico de fotografia (1996-2010) no jornal Folha de S.Paulo. Hoje, reúne as funções de jornalista, professor, curador e pesquisador de fotografia.