Em constante processo de reinvenção e reconstrução, a obra de Thiago Szmrecsányi (1) se situa num terreno instável, impreciso, de referências cruzadas. Como no jogo Successful Slippers, no qual propõe ao espectador que reordene um conjunto de imagens retiradas de um manual, que demonstram passo a passo como trocar o revestimento de uma poltrona, o artista parece tentar um permanente exercício de reordenação das coisas, ressignificando objetos, invertendo usos e buscando extrair novos significados poéticos e conceituais de coisas banais do cotidiano.
Materiais que muitas vezes passam despercebidos na cena urbana e por algum motivo chamaram sua atenção, adquirem novos significados por meio de uma ação quase obsessiva. Espumas, grampos, molduras vazias, cavaletes de madeira, telas plásticas, com as quais o transeunte se depara no cotidiano esvaziado de sentido, tornam-se elementos essenciais para novas articulações nas mãos do artista. Não há nem ponto de partida nem ponto de chegada. A escolha não parece ser guiada apenas pelas características físicas dos elementos explorados, mas sim por uma articulação entre procedimentos e narrativas. “Uma coisa leva à outra. Trata-se de um fluxo entre gesto e pensamento”, sintetiza ele.
Nada é oculto. As torsões, amarras, emendas e escoras se apresentam sem artifícios ou truques. Mesmo assim – ou apesar dessa transparência – o desafio de compreensão se mantém como elemento central da produção de Szmrecsányi, como se ele estivesse querendo convidar o espectador a um processo coletivo e estendido de criação, oscilando entre polos aparentemente opostos e por isso complementares. Ora o resultado é seco, sem maiores apelos aos sentidos, ora Szmrecsányi cede espaço à potencialidade sedutora das cores e formas. Dentre as obras selecionadas para esta mostra é possível encontrar trabalhos de uma simplicidade e elegância únicas, como o pequeno jogo de equilíbrio proposto em Lay Out, até peças complexas como Artivistas, em que a luz interfere no espaço e há um deslocamento de sentido de elementos como o cavalete, os sinais de sinalização e as luminárias, que adquirem um aspecto de megafones. Outra peça complexa e central na exposição é I Handle, um trabalhador sem cabeça e completamente oco, feito de estofamento de automóvel, cercado de ferramentas e materiais, que repousa no centro da galeria como uma espécie de alter ego do artista.
A simplicidade e o despojamento dos elementos dos quais se apropria remetem a movimentos importantes da arte contemporânea, como a Arte Povera e o Neoconcretismo. Mas para além da necessidade de manipular e extrair significados dos descartes da cultura de consumo urbana, outras camadas de significado, leituras pessoais, biográficas existenciais, parecem aderir-se às suas obras. Não é necessário saber que Szmrecsányi é um brasileiro que vive há anos em Nova York, nem tampouco que trabalhou muito tempo por lá como assistente de artistas, esticando telas, ajudando em montagens de exposições. Mesmo assim tais histórias estão evidentemente embutidas em obras como Common Thread, uma surpreendente composição de chassis vermelhos vazios e telas brancas ou cruas que se espalha por uma das paredes de “Território transitório”. Como um colecionador de objetos e imagens, que remete ao flaneur do século XIX e se encanta com a riqueza e mutabilidade das grandes cidades, Szmrecsányi se vê como uma espécie de lixeiro, capaz de descer de um ônibus para coletar a espuma utilizada em Superior Protection.
Mexe com o lixo dos outros e também com o seu próprio lixo, remontando obras, reaproveitando idéias e elementos. É o caso por exemplo de Cadernos de Campo, criada especialmente para a galeria a partir de acúmulos de memória anteriores, e de Mutatis Mutandis. A instalação Cadernos de Campo parte de um trabalho desenvolvido em 1992 para revista dos alunos de pós-graduação em Antropologia da USP e contrapõe o rigor da plástica construtiva à base conceitual de discussão sobre o mundo das artes. Já Mutatis Mutandis lida com o mundo das palavras e dos conceitos. Se a primeira se corporifica numa torre mambembe de exercícios construtivos, que aproximam arte indígena e arte concreta, a segunda é representada por um calhamaço disperso de papéis: press releases, textos de divulgação e xerox de estudo, numa clara referência aos anos em que se dedicou ao estudo de Letras e Filosofia na USP.
Sem expor no Brasil desde 1997, Szmrecsányi propõe em “Território transitório” mais do que um panorama de sua produção recente – algo difícil de ser feito porque com frequência seus trabalhos são desmontados para dar lugar a novas reinvenções; por trás desse título intrigante, que remete tanto ao ricochetear de seu processo criativo quanto à ambiguidade territorial sobre a qual repousa, há um evidente desejo de diálogo, a busca de uma relação de troca com a cena brasileira e de uma expansão de suas fronteiras de ação.
notas
NE – Texto crítico feito para a Exposição Território Transitório, de Thiago Szmrecsányi. Sé Galeria, de 8 de novembro a 19 de dezembro de 2015.
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Thiago Szmrecsányi nasceu nos Estados Unidos, foi criado no Brasil e desde 1994 voltou a residir em Nova York, onde mantém seu ateliê. Cursou Filosofia, e cursos em Literatura, Artes Visuais e Arquitetura na Universidade de São Paulo. Fez o Bacharelado em Artes na City University of New York, Hunter College, o treinamento Artists in the Marketplace (AIM) do Bronx Museum e o Professional Development do Creative Capital.
sobre a autora
Maria Hirszman é jornalista e crítica de artes e colabora com diversas publicações, como o Estado de S. Paulo, a Enciclopédia Itaú de Artes Visuais e a Revista Pesquisa Fapesp. É mestre em história da arte pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA-USP.