Visitar a ESMA – antiga Escuela Superior de Mariña Armada – em Buenos Aires, atualmente "Espacio Memoria y Derechos Humanos", foi destas experiencias que mudam a forma de olhar para o mundo. Não é possível sair de uma visita a este edifício sem repensar tudo. É de embrulhar o estomago. Entretanto, traz esperança já que se confirma que os fatos acontecidos neste local, e em tantos outros, venham sido devidamente pesquisados, julgados e condenados. Mais do que isto, fazem pensar e evidenciam a necessidade de ações efetivas no nosso caso brasileiro.
O antigo Casino de Oficiales, um dos 36 edifícios do enorme conjunto da ESMA, é atualmente o “Museu de la Memoria”, antiga moradia dos militares onde ocorreram muitas das torturas, assassinatos e outras barbaridades que o governo militar argentino (1976-1982) conduziu de forma sistemática e organizada.
Não pretendo escrever o que aconteceu ali durante a ditadura. Já existem relatos e documentos, senão suficientes, porque nunca serão, pelo menos em grande quantidade e que continuam crescendo. Trato, então, da forma como esta questão e este edifício vêm sendo abordados pela sociedade argentina.
A ideia de mínima intervenção é levada ao extremo, de forma brilhante. O lugar não pode ser alterado para atender às demandas de restauro, de recuperação de algum estado anterior ou de espetacularização, como foi feito em vários lugares de caráter semelhante, como por exemplo o Memorial da Resistencia, no antigo edifício onde funcionou o Dops, na Luz. Pelo contrário, trata-se de um edifício vivo, que abriga ainda inúmeras informações a descobrir, um documento que vem sendo pesquisado por diversas áreas do conhecimento, como a arqueologia, a arquitetura e a história.
Quanto mais se procura, mais se encontra. O conhecimento dos partos e sequestros de crianças a partir dos depoimentos dos poucos sobreviventes levou diversos médicos à cadeia. A confirmação dos voos da morte, que levavam muitos dos prisioneiros da Esma, ainda vivos e sedados, para serem jogados no mar também condenou os pilotos dos aviões. Neste momento, aquilo que ainda não era considerado tortura, como por exemplo as violências sexuais, também já é enquadrado como tal. A Argentina entra no seu quarto julgamento ampliando o conhecimento dos fatos e, consequentemente, as punições.
O projeto de visitação ao Casino de Oficiales não pretende mostrar o que aconteceu nos quatro pavimentos do edifício. Não reproduz cenas. Conta a história nos seus espaços sem lançar mão de fotos de vítimas, equipamentos de tortura e outros artifícios que sempre sensibilizam o espectador. Ao contrário, a visita faz que, com acesso às informações, passemos o tempo todo envolvidos com aquilo que não vemos, mas que está presente: a barbaridade de um governo que ultrapassou todos os limites.
E a banalização desta maldade não foi absorvida pela sociedade argentina em seu processo de democratização. Se num primeiro momento houve um movimento por uma conciliação, que inclusive pretendia demolir este edifício “que não tinha maiores interesses”, as mães de Mayo e outras organizações como a Asociación de ex-Detenidos Desaparicidos e a H.I.J.O.S. – Hijos por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio – não permitiram que os fatos não fossem apurados – e seguem até os dias de hoje atrás de informações. O trabalho de grupos como o Memória Abierta vem reconstruindo a rede de espaços da cidade e de toda a Argentina que serviram de base para as ações do governo militar. Uma rede gigantesca que se espalhou pelo país e que vem sendo reconhecida – mesmo quando as demolições de alguns edifícios já tenham tentado apagar parte desta história.
Foi a sociedade que, organizada, com diversas ações na justiça e apoio do congresso, impediu a demolição proposta pelo presidente Menem.
Uma sociedade que não permitiu uma suposta “pacificação” do país e que neste sentido tem condições de elaborar sua história recente com muito mais maturidade e reponsabilidade.
No Brasil, passamos da hora de ações mais contundentes. A lei de anistia e conchavos políticos entre grupos outrora opostos inviabilizou esta discussão. Pouco foi feito, sem desrespeitar os trabalhos da comissão da verdade. A nova onde conservadora que estamos vivendo também é resultado deste processo que não se aprofundou, não julgou e não puniu.
O tombamento do DOI CODI pode ter sido tardio, principalmente porque não houve até hoje uma retratação pública a altura dos fatos. Mas ainda há tempo de tratar deste tema e recuperar informações importantes.
Neste sentido, faz-se aqui um alerta. Os lugares de memória são extremamente importantes, mais do que como monumentos, como documentos vivos. São fonte de informações essenciais para a reconstituição da história. Arquitetos acostumados a intervir em edifícios com valor cultural com projetos de restauro e intervenções contemporâneas tem que entender que nestes casos a abordagem é outra. Todo cuidado é pouco. Ou, em jargão arquitetônico, menos é mais.
sobre o autor
Silvio Oksman, arquiteto, doutor pela FAU USP, foi conselheiro do Condephhat entre 2013 e 2016 e do Conpresp em 2017.