Não é a primeira vez na história, nem mesmo na história do Brasil, que expressões de insatisfação por parte da sociedade em relação à forma como esta é governada acabam por ser capturadas exatamente pelo objeto de sua indignação, transformando as múltiplas vozes que protestam em uníssono simplificador e totalitário. A medida em que avançamos na crise política brasileira, vai ficando mais evidente como a expressão da insatisfação em relação à perversa relação histórica entre o mundo dos negócios econômicos e o dos negócios políticos no Brasil foi sendo astutamente transformada em um espetáculo midiático de construção de um grande algoz – Lula, transformando este líder político e seu partido em “chefe da quadrilha” e, portanto, em objeto de ódio.
Na verdade, o “modo brasileiro de governar”, que historicamente submete os processos decisórios sobre o que e para quem serão usados os fundos públicos às lógicas de lucro de certas empresas e de reprodução de mandatos de políticos, vai sendo assim protegido e blindado. Embora claramente o Partido dos Trabalhadores (PT) tenha aceitado esta regra do jogo e apostado nela para realizar seu programa desenvolvimentista e de redistribuição de renda, é impressionante como rapidamente não apenas Lula e o PT, mas tudo que se refere ao imaginário social do trabalhador e suas lutas por emancipação, transformaram-se no “bode da sala”.
Como muitos já apontaram, mais do que a crise em si, trata-se de uma disputa de narrativas sobre a crise, disputa esta que tem permitido assistirmos ao fortalecimento de todo tipo de intolerância e abuso de poder, em nome da eliminação definitiva deste suposto algoz – assim como do imaginário cultural que este carrega. Desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, que acertadamente muitos classificam como golpe, até medidas como conduções coercitivas espetaculosas, humilhações públicas e prisões sem conclusão de julgamento, vale tudo para alimentar o espetáculo da perseguição aos supostos culpados e, assim, criar uma potente cortina de fumaça para evitar “o pior”, ou seja, explicitar de fato quem ganhou e quem perdeu com a promiscuidade entre o mundo político e o mundo dos negócios. E mais: numa confluência perversa entre um moralismo autoritário e um liberalismo econômico, busca-se radicalizar justamente a histórica concentração de renda e de poder.
A arquitetura brasileira não passou incólume a essa onda de intolerância e caça às bruxas que o país está vivendo. Um dos exemplos é o projeto do Museu do Trabalho e do Trabalhador, de São Bernardo do Campo. Ali estão presentes vários dos elementos que apontamos: um escritório reconhecido nacional e internacionalmente que já havia projetado vários museus e centros culturais – Brasil Arquitetura – foi contratado por uma gerenciadora, a serviço de uma prefeitura, para projetar um museu dedicado ao registro da memória do mundo do trabalho, desde a chegada dos portugueses até os dias de hoje.
O escritório cercou-se, então, de uma rede de profissionais experientes e capacitados para poder pensar da museografia às fundações e ao paisagismo (como sempre ocorre em empreitadas deste tipo), entregou o projeto, e a obra foi iniciada e quase finalizada, quando uma ação conjunta entre o Ministério Público e a Polícia Federal – a Operação Hefesta – apontou supostos indícios de superfaturamento do projeto de arquitetura, paralisando as obras, prendendo arquitetos, bloqueando seus bens e de seus familiares e – sem julgamento nem sequer andamento do processo até hoje! – Impedindo estes profissionais de trabalhar.
Além disso, os 5,5 mil metros quadrados já construídos no centro de São Bernardo estão abandonados e a população do ABC e de São Paulo está sendo privada de usufruir de um importante espaço cultural.
A intervenção midiático-judicial consistiu em forjar, de forma sistemática e errônea, a narrativa de que um projeto de registro museográfico do mundo do trabalho é o “museu do Lula” e, assim, justificar, aos olhos do público, a imposição de penas a todos os arquitetos e engenheiros envolvidos, antes mesmo de qualquer processo. Aos amantes da arquitetura, convidamos todos a conhecer o projeto e sua museografia no portal Vitruvius (1), a lutar para que o museu seja concluído, que São Bernardo e seus cidadãos ganhem esta obra, e que os profissionais envolvidos possam continuar trabalhando e tocando suas vidas em paz.
A corrupção deve ser investigada e os responsáveis, punidos, mas, como aprendemos nas escolas de engenharia e arquitetura, não se derruba uma obra antes de construí-la. Imagino que seja assim também que se ensina nas faculdades de direito.
notas
1
PORTAL VITRUVIUS. Museu do Trabalho e dos Trabalhadores. Projetos, São Paulo, ano 18, n. 207.04, Vitruvius, mar. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/18.207/6924>.
sobre os autores
Paulo Mendes da Rocha, arquiteto (Mackenzie, 1954), é autor de diversos projetos que se tornaram marcos urbanos – Pinacoteca do Estado, Museu da Escultura, Sesc 24 de Maio em São Paulo; Museu dos Coches em Lisboa; Museu e Teatro Cais das Artes em Vitória – e ganhador das principais láureas na área de arquitetura: Prêmio Pritzker em 2006, Leão de Ouro da 15aExposição Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza 2016, Prêmio Imperial 2016, Medalha de Ouro 2017 do RIBA – The Royal Institute of British Architects, dentre outros.
Raquel Rolnik é arquiteta (FAU USP, 1978). Foi relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada (2008-2011, 2011-2014), diretora de Planejamento da Cidade de São Paulo (1989-1992), coordenadora de Urbanismo do Instituto Pólis (1997-2002) e secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-2007). É autora dos livros A cidade e a lei, O que é cidade , Folha explica: São Paulo e Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças.
biblioteca tempos temerários
Tempos Temerários é um projeto de Abilio Guerra e Giovanni Pirelli, produzido pela equipe do Marieta (portal Vitruvius + Irmãos Guerra Filmes + produtora Cactus), que visa ser um momento de debate sobre temas da atualidade, como um laboratório permanente para pesquisar técnicas, ações e ideias de resistência e transformação politica, social e cultural.
ADFAUPA, Diretoria Colegiada. Dia(spora) de arquitetos. Drops, São Paulo, ano 18, n. 123.07, Vitruvius, dez. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.123/6815>.
BRUM, Eliane. Gays e crianças como moeda eleitoral. El País, Madri, 18 set. 2017 <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/18/opinion/1505755907_773105.html>.
COLI, Jorge. Erotismo em tempos de cólera e boçalidade. Drops, São Paulo, ano 18, n. 120.04, Vitruvius, set. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.120/6703>.
COLI, Jorge. Por moralismo torpe, pessoas decidem eliminar a reflexão e neutralizar a arte. Drops, São Paulo, ano 18, n. 121.06, Vitruvius, out. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.121/6734>.
COLI, Jorge. Toda nudez será castigada. Drops, São Paulo, ano 18, n. 122.02, Vitruvius, nov. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.122/6756>.
FONSECA, Ricardo Marcelo. Um ano de ataques contra as universidades públicas brasileiras. Nota do reitor da UFPR. Drops, São Paulo, ano 18, n. 123.02, Vitruvius, dez. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.123/6800>.
GUERRA, Abilio. Notícias dos tempos temerários. Resenhas Online, São Paulo, ano 17, n. 189.04, Vitruvius, set. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/17.189/6706>.
LIRA, José. Tempos sombrios. Drops, São Paulo, ano 18, n. 121.01, Vitruvius, out. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.121/6713>.
LUZ, Afonso. Lygia Clark: todo bicho tem articulações. Drops, São Paulo, ano 18, n. 121.03, Vitruvius, out. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.121/6719>.
LUZ, Afonso. Trolagem institucional. Resenhas Online, São Paulo, ano 17, n. 190.01, Vitruvius, out. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/17.190/6718>.
MARTINS, Carlos A. Ferreira. Quem quer acabar com a universidade pública? Drops, São Paulo, ano 18, n. 123.04, Vitruvius, dez. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.123/6805>.
MEDEIROS, Afonso. Sobre o ataque do MBL à exposição Queermuseu em Porto Alegre. Drops, São Paulo, ano 18, n. 122.08, Vitruvius, nov. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.122/6786>.
MIYADA, Paulo. Carta ao prefeito de São Paulo. Sobre o nu no MAM-SP. Drops, São Paulo, ano 18, n. 121.02, Vitruvius, out. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.121/6714>.
PINHEIRO-MACHADO, Rosana. A nova direita conservadora não despreza o conhecimento. Carta Capital, São Paulo, 10 out. 2017 <https://www.cartacapital.com.br/politica/a-nova-direita-conservadora-nao-despreza-o-conhecimento>.
ROCHA, Paulo Mendes da; ROLNIK, Raquel. Cortinas de fumaça, obscurantismos e seus efeitos colaterais. Sobre o Museu do Trabalho e do Trabalhador, do escritório Brasil Arquitetura. Drops, São Paulo, ano 18, n. 127.01, Vitruvius, abr. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.126/6934>.
TIBURI, Marcia. Como seria o julgamento de Lula se estivéssemos em uma democracia. Drops, São Paulo, ano 18, n. 124.03, Vitruvius, jan. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.124/6836>.
TIBURI, Marcia. Sobre os últimos acontecimentos. A arte, a alma, os inquisidores. Drops, São Paulo, ano 18, n. 121.05, Vitruvius, out. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.121/6732>.
TOURINHO, Emmanuel Zagury. Agressão à liberdade de expressão. Nota oficial da UFPA. Drops, São Paulo, ano 18, n. 122.09, Vitruvius, nov. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/18.122/6787>.