Caríssimos leitores
Volto a vocês sem esperança de ser lido, afinal meus textos são longos demais e sem importância diante do assunto que toma nossos corações e mentes: as eleições do próximo domingo!
Infelizmente o assunto que trago até vocês não pode esperar, é fundamental para a sobrevivência de algumas dezenas de cidadãos que ganham a vida nas calçadas do Bairro da Glória.
Trata-se do destino dos nossos amigos do shopping-chão que, nas últimas semanas, tem sido expulsos diariamente das calçadas da Rua da Glória, impedidos de ganhar seu sustento pela Guarda Municipal e pelos policiais do Rio Presente, possivelmente a pedido das multinacionais que mantêm filiais no bairro e de parte dos moradores da Glória.
Não me surpreendo, pois deve ser muito desagradável para os altos funcionários dessas grandes empresas conviverem com tanta pobreza, ou como é difícil para o morador do bairro, que tem um cantinho para morar e um emprego ou aposentadoria para se sustentar, olhar sem desconfiança para essa gente malvestida, negros na maioria, que teimam em permanecer nas calçadas vendendo "inutilidades" que alguns chamam de lixo.
Em um texto anterior contei algumas das minhas aventuras na Rocinha e que, à medida que eu conseguia identificar pelos nomes os becos e escadarias da grande favela, eu dispensava os guias que, até então, evitavam que eu me perdesse naquele intricado tecido viário (1). A segurança que passei a sentir, a partir desse momento, permitiu-me descobrir qualidades insuspeitas nas estreitas passagens em que, a princípio, só via defeitos.
O mesmo me aconteceu quando passei a chamar de Carmem, a negra alta e bonita que ocupava, com seu comércio, a calçada da Casa de Estudos Urbanos, ao conhecer o Rogério, sempre caprichoso ao arrumar na calçada tudo o que garimpara na véspera pela cidade, ou quando botei o apelido de Roberto Carlos no baixinho que é a cara do Rei, e que me contou, numa tarde ensolarada, o orgulho de dividir a atividade de garimpeiro urbano com a de figurante de telenovelas.
Foi aí que tudo mudou, compreendi a importância do Garimpo Urbano para a cidade, retirando do lixo tudo o que ainda tem alguma serventia, numa atividade diuturna de reciclagem que, mais eficiente do que tantas outras práticas igualmente sustentáveis, não consome energia além da despendida pelos incansáveis garimpeiros urbanos do Shopping-Chão (2).
Com eles entendi melhor o que um outro negro, o geógrafo Milton Santos, chamou de circuito inferior da economia, conceito importante para entender a realidade brasileira nesses tempos de globalização neoliberal.
Ao chama-los pelos nomes de batismo e apelidos, recuperei a mesma sensação de segurança que senti na Rocinha, a cidade especialmente perigosa para um portador de necessidades especiais como eu, tornou-se mais bonita e menos ameaçadora, porque sei agora que dezenas de olhos me vigiam nas minhas curtas andanças pelas calçadas da Glória.
Deixa comigo, eu abro a porta, me fala um preocupado Rogério, cuidado com o buraco Toledo, grita a Carmem, aflita com a minha desatenção.
Não é que eles também sabem o meu nome! Voltem logo meus queridos, sinto muita falta de vocês!
notas
NA – Texto originalmente publicado na página Facebook do autor.
1
TOLEDO, Luiz Carlos. Vamos falar da Rocinha. Aprendendo com a comunidade. Drops, São Paulo, ano 19, n. 132.06, Vitruvius, set. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/19.132/7110>.
2
TOLEDO, Luiz Carlos. Crescimento das favelas cariocas, Shopping Chão, Indisciplinas Urbanísticas e Cidade Oculta, tudo junto e misturado. Minha Cidade, São Paulo, ano 19, n. 218.02, Vitruvius, set. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/19.218/7101>.
sobre o autor
Luiz Carlos Toledo, arquiteto, mestre e doutor pelo Proarq UFRJ, diretor da Mayerhofer & Toledo Arquitetura, autor do Plano Diretor Sócio-Espacial da Rocinha (2006) e diretor da Casa de Estudos Urbanos. Recebeu do IAB-RJ o título de Arquiteto do Ano em 2009.